segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Aspásia




Perdido. Estou perdido de amores. Aspásia domina meus pensamentos, domina meus sentimentos. Faz-me sentir vivo. Faz muito tempo que não sinto isso. Esse contentamento, esse desassossego, a alegria e a tristeza repentina, que o sentimento amoroso nos faz sentir. Conheço-a algum tempo, uma amiga me apresentou. Estranhei o nome dela tanto quanto o leitor amigo. Achei-o peculiar e original. Vinte primaveras completas. Cabelos ondulados e amendoados, olhos cor de cobre, ternamente alva, com um sorriso encantador, voz doce, um jeito leve de articular a fala, de arrumar os cabelos, pele macia, tinha cheiro de roupa limpa e alfazema. Provocou-me profunda impressão à primeira vista. Conquistou-me no primeiro contato, ao sentir o seu cheiro, a sua voz, o seu brilho. A minha amiga havia me dado algumas informações sumárias sobre Aspásia. Gosta de música – toca, desde a infância, piano, escaleta, violão, clarinete e trompete. Aprecia, de igual modo, o clássico e o popular, e considera ridícula a divisão arbitrária entre o popular e o erudito, acredita que é mera distinção de meia dúzia de intelectuais metidos a besta. Música instrumental é a sua preferência. Noel Rosa, Cartola, Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Tom Jobim, Miles Davis, Jonh Coltrane, Chopin, Bach, Beethoven são os seus mestres. Rock tem que ser clássico, Chuck Berry, Jerry Lee Lewis, Elvis Presley, e ainda, Led Zeppelin, The Doors, ela viaja nos solos de teclado, e Black Sabbath. Literatura – tem algumas coisas escritas, em poesia e prosa, deixa-as guardadas na gaveta, escreve para si, gosta muito de Drummond, Pessoa e Neruda, bem como Machado de Assis, Graciliano Ramos, Kafka, Virginia Woolf e Máximo Górki. Cinema – gosta de muitas coisas, mas, sobretudo, cinema soviético, cinema italiano, o neo-realismo italiano, e cinema francês, nouvelle vague. Adora sorvete de castanha e frutas silvestres. É uma vegetariana ideológica, no caso, não-praticante. Sopa de ervilha e caldo verde são seus pratos favoritos. Tem um super-nintendo em casa, e é fissurada em mariokart. Ainda ri com as piadas do Chaves, aprecia esse humor ingênuo presente também nos três patetas, o gordo e o magro e no grande carlitos. Não gosta de maquiagem. Nem de calça, e salto. Usa, geralmente, sandálias de couro, sapato de lona e vestidos estampados hippies ou orientais. Tem uma camisa do The Doors surrada, uma tatuagem com desenhos marajoaras na perna, e uma frase nas costas: “Meu tempo é quando” do Vinícius de Moraes. Fala alemão, francês e inglês – lê alguma coisa em italiano e espanhol. Cursa História, pesquisa sobre Estado Novo. É fascinada pelo DIP. Nem preciso dizer que ela é marxista. Pensa em fazer mestrado na Antropologia – quer pesquisar os mecanismos de dominação simbólica através dos meios de comunicação de massa e seus reflexos na cultura política do Estado Novo. Estuda por conta própria psicanálise, se diz lacaniana – leitora voraz de Zizek. Detesta cigarro, e adora tequila. Mora só, em um quarto-sala com o Gregor, seu gato preto. Medo inconfesso de aranha e barata. Metódica, tem mania de organização. O seu quarto é quase um estúdio, com tantos instrumentos, e uma biblioteca, com tanto livros, está pensando em colocar os livros na sala, para ter mais espaço no quarto. De quando em quando, em razão do acúmulo de poeira, sua rinite e sinusite atacam, é o fim do mundo. Caro leitor, preciso dizer por que estou perdido de amores. Tenho pouco contato com ela. Vejo-a nas ruas ao acaso. Ou nas mesas de bar, com os amigos. Ela sempre fala comigo, solicita e amável. Trocamos algumas palavras, rápidas, é verdade, mas me contento, pois todo o contato, mesmo o mínimo possível, é o bastante. Fico olhando-a, de longe, conversando e gesticulando junto a outras pessoas, ela sempre se destaca, com a sua leveza e graça, quase angelicais. Tem uma especial predileção por sebos – adora livros velhos e usados. Soube de sua própria boca, semana passada, encontrei-a no sebo que freqüento toda a semana. Entrei, como de costume, cumprimentei o livreiro, o Seu Faustino, e vi-a, distraída, na estante de Literatura. Fiquei encantado ao vê-la. Parei e recuei, para que não me visse. Tinha que me recompor de tamanha surpresa. Respirei fundo, e fui falar com ela. “Olá, Aspásia” – disse com entusiasmo e tom de surpresa em vê-la ali. “Olá, Andrei, bom te ver, como és um rapaz versado em literatura, estou procurando um livro do Gárcia Márquez, estou querendo iniciar no realismo fantástico” – com a mesma solicitude e graça de sempre. Meus olhos brilharam. Desculpe-me, caro leitor, a minha falta de cortesia, não me apresentei, chamo-me Andrei. Mas isso pouco importa. O que importa é seu interesse em Gárcia Márquez. Era mais um interesse em comum. Começamos a conversar. Ela procurava o “Cem anos de solidão”. Fomos perguntar ao seu Faustino se havia em seu acervo, já que não vimos nas prateleiras carcomidas e empoeiradas. Ele disse que não tinha nada de Gárcia Marquez, mas tinha o “Memorial do convento” de Saramago, com um ótimo preço. Aspásia também não conhecia muita coisa de Saramago. Então, eu disse: “Vou iniciá-la, vai ser um presente meu, não aceito recusa”. “Não precisa, Andrei, estou procurando mesmo o Gárcia Márquez”. “Não, que isso, faço questão, vais gostar muito da história da construção do Convento de Mafra, bem como das desventuras de Baltazar, Blimunda e do Padre Bartolomeu Lourenço”. “Ai, Andrei, contando desta forma, não tenho como recusar”. “Ah, e eu tenho o Cem anos de solidão, te empresto”. “Só tu mesmo, Andrei, me iniciando nos grandes mestres da literatura”. “Que isso, faço com prazer. Temos muito que conversar”. “Temos mesmo”. Ela olhava-me com um ar envergonhado. Percebi o seu interesse. Convidei-a para tomar um café, na verdade, um capucchino para continuarmos aquela conversa. Ela aceitou, de pronto. Havia uma cafeteria ao lado do sebo, que, obviamente, eu também freqüentava. Nessa ocasião, soube de outra preferência dela: o gosto por chá e pão de queijo. Sentamos, fizemos os pedidos, e começamos a conversar. Não demorou muito, chegou o café, pois capucchino estava em falta, o chá, e os pães de queijo. Foi-se desenvolvendo a nossa conversa literária aos goles de chá, café e mordidas no pão de queijo. Olhei-a nos olhos, e não consegui mais disfarçar minha paixão, e peguei em sua mão. Ela apertou a minha, inclinou-se mais perto, afagou-me a barba com todo o afeto, e apenas me disse: “Agora, esta barba é minha, beija a tua boca com teu gosto de café”. Nunca pensei que Gárcia Márquez e Saramago me tirariam da solidão. Aspásia é o seu nome, encantado eu fico, e perdido de amores eu sigo.
(Felipov)

1 comentários:

Juliana Brandão disse...

Como Gárcia Márquez, escreves mulheres ideais quase inatingíveis =]

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