domingo, 24 de abril de 2011

Não esqueça sua alma (*)

Estava sentado no boteco. Na verdade, o verbo tem suas limitações. Não é correto afirmar que ele estava sentado no boteco; de fato, ele está sentado no boteco, sentará no boteco e sempre esteve sentado no boteco. As palavras são poucas para expressar algo que se desenrola no tempo com essa continuidade, com a repetição dos dias que se extendem como azulejos no piso da vida dos sentadores de boteco como aquele. Não há uma única forma verbal que explicite o intervalo entre dois nadas que chamamos de existência, quando nos referimos ao homem que senta no boteco, bebe sua cerveja, fuma seu cigarro, sem segundas ou terças-feiras, alheio ao alheamento, com a cabeça cheia das grandes questões da humanidade e vazia das parcas respostas para os problemas que não temos quando sentamos no boteco sem futuro nem presente nem pretérito.

Apesar da linguagem, ele estava sentado no boteco. Seria mais um sentador de boteco se não houvesse, no meio cheio meio vazio do lugar, uma mulher, também sentada no boteco. Sim, porque se este texto simplesmente falasse dos sentadores de boteco, não seria um conto, seria um ensaio, ou algo do gênero, uma dissertação sobre algo que conheço bem e desconheço outro bocado, uma desculpa para tornar relevante e material a minha opinião sobre algo. Não que alguém dê a mínima para opinião de alguém, ou para ensaios, ou dissertações ou crônicas ou mesmo contos. Eles surgem da demanda biológica do ser humano de se distrair da sua própria natureza, esquecer por um instante que é um animal, sujeito à fisiologia dos seres vivos. A uma busca incessante pela homeostase, da concepção à falência múltipla dos órgãos.

Mas apesar da literatura, ele estava numa mesa e ela estava noutra. Sozinhos. Sempre estamos sozinhos, até quando estamos acompanhados de clichês articulados em língua portuguesa, de uso reiterado, burro e simplório. Nada nos sujeita mais à estupidez do ser humano do que os clichês, porque concordamos, como uma espécie de retardo mental comungado pelo inconsciente coletivo, que eles são válidos. Por isso são ridículos. Pela sua validade, pela sua verdade, pela sua insistência em violar nossa pretensão de sermos únicos.  Todo espelho quando olhado com os olhos bem abertos transmite à consciência uma imagem ridícula e real. Algo que não queremos ver. Não somos singulares, somos repetitivos, batidos, somos o jornal de ontem, com as notícias de anteontem e a data de hoje. Somos os cachorros que salvam crianças todos os anos.  Cópias mal feitas do cara que nasceu na África. Do cara que cruzou da Sibéria ao Alasca. Nossos primos se deram bem melhor, porque quando se balançam em árvores não têm nenhuma pretensão, escapam da frustração existencial pelo atalho evolutivo. O clichê é o traço vestigial que comprova o nosso insucesso biológico.

No entanto, apesar dos clichês, o protagonista deste conto, a quem desconheço completamente, levanta-se embriagado e anda em direção à mesa da mulher que está, também, sentada no boteco. Desconheço a mulher. Não sei suas motivações, suas aspirações, suas manias, suas fobias, suas neuroses. Todo mundo tem esses problemas hoje em dia. Como exercício lacaniano de psicanálise, o leitor poderia construir o personagem de acordo com suas próprias frustrações. Seu próprio medo de sentir sozinho num mundo cada vez mais integrado. Perceba que eu também não conheço Lacan, até quem estuda Lacan não conhece Lacan. Por isso me desobrigo a conhecer os personagem deste conto. De que adianta? De que vale construir esses Aquiles, Ulisses, Heitores, Desdêmonas, Otelos? Seres humanos que só são encontrados mesmo em folhas de papel de livros de bolso. Os personagem deste conto são reais. Não têm nome. Não são ninguém. Não são alguém. Perambulam, sentam em botecos e se levantam por razões desconhecidas. Isso é a realidade.

E apesar do mundo real, ele vai ao encontro dela. Chega e se posta do lado de fora do círculo implícito do espaço vital das pessoas. Naquela região onde os indivíduos não se sentem ameaçados pela outros, mas com certeza já detectam pelo periscópio do espírito alguma potencial interferência exógena. Essa pode ser como a brisa do Oceano Atlântico, quando sentida numa rede à beira de uma praia, ou como o 6 de agosto de 1945 em Hiroshima, no calor do epicentro. E assim como os seres humanos são capazes das maiores atrocidades e das menores amenidades contra outros seres humanos, o protagonista  então dispara o rifle de assalto da linguagem, polido e aperfeiçoado num sei-lá-quantos anos de aprendizado social, afetivo, emocional, plural, etílico, sexual e outros adjetivos correlatos, da seguinte maneira:

- Vamos?

A mulher, imbuída deste sentimento vago ao qual nos remete a audição de palavras que não significam nada, mas que sentimos a necessidade de atribuir qualquer significado para que o nosso mundo não seja o plano medieval e sim a esfera achatada nos pólos que aprendemos que é a única forma de aceitar o plano material, olhou para o homem, enquanto tragava a fumaça do cigarro.Ah, os fatos incontestáveis. As formas geométricas. Os bebuns que falam e  fazem besteira, como se não as fízéssemos  ou não as falássemos sóbrios como Papa. Ressalte-se que eu disse sóbrio, não lúcido. A mulher, depois de fitar o bêbado durante alguns minutos, então disse, com a calma de uma daquelas moças que apresentam previsões meterológicas, com a calma de quem prevê uma manhã de sol, com pancadas de chuva no final da tarde, no Mato Grosso de Sul:

-Não.

O homem então voltou ao seu lugar. A mulher já estava em seu lugar. E o mundo foi o mesmo,  real e apreensível a todos os sentidos, um intervalo entre dois nadas, apesar dos botecos, da linguagem, da literatura, dos clichês e das pancadas de chuva.

(Igor Farias)

(*) Este texto é de um colocaborador-simpatizante dos textos, da temática e do tipo de escrita deste blog. Assim que ele tiver um texto de sobra, dando "sopa", fará uma participação especial. Punk, seus escritos são sempre bem-vindos. 

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Maricota

Dois tiros. Jaz um corpo. Esta é a história de Maricota. Maria Joana Costa. Moradora do Jurunas. Mulher de brios, sem papas na língua, tranqüila, altiva e forte. Veio do interior ainda criança, junto aos pais e sete irmãos, para ganhar a vida na cidade grande – a grande Belém. Não foi muito tempo para perceberem o grande engano que haviam cometido. Desemprego. Necessidades. Trabalho duro. Poucas perspectivas. Miséria. Marginalização. Humilhação. Preconceito. Vergonha. A cidade não era aquilo que pensavam. O monstro urbano havia lhes engolido. Sua vida fora a eterna digestão.

Não levou muito tempo para que Maricota, apelido que sua mãe Edileuza havia lhe dado, se visse trabalhando vendendo pupunha nos sinais de trânsito próximo a sua casa. Seu pai, Benedito, conhecido como Biditi, caísse na descrença e na bebedeira. Vivia bêbado. Mesmo que fosse homem reto, íntegro e honesto, as humilhações passadas por ser trabalhador braçal, duro de língua, e rude de maneiras, chacoteado por seu sotaque, não agüentou essa situação, e não mais procurou trabalho. O que sabia fazer de melhor era arar a terra, cuidar das sementes, plantar, produzir. Era um homem do campo. Sabia pescar também. Pescava com destreza camarão. E, de igual modo, apanhava açaí em sua peconha. Uma vez na cidade, nada disso era valorizado, ou fazia sentido no ambiente urbano, no qual a simplicidade e a humildade de homem do campo era sistematicamente explorada e desmerecida.  

Edileuza, mulher calada, sôfrega, assistia essa situação e se esforçava em manter a família unida. Submissa ao marido, criou os filhos obedientes e calados. Seguia fielmente os preceitos da educação cristã em que fora formada – acreditar demais, pensar de menos. Era especialmente severa com as filhas. As quatro filhas, Maricota, Lourdes, Neuza e Marilena, eram criadas para serem ótimas esposas e donas-de-casa. Porém, Edileuza tinha particular implicância por Maricota. Sempre gritava e lhe castigava com mais severidade. Nutria ciúme por conta da grande estima que Biditi tinha por sua caçula. Não era só sua mãe que lhe tinha ciúme, Lourdes também – a irmã mais velha.

Certa vez, Lourdes provocou uma intriga na qual Maricota fora acusada de roubo. Ela apanhou virulentamente do seu pai com vassoura de açaí. Maricota não culpou o pai, sabia que estava apenas fazendo seu papel. Contudo, não agüentou a humilhação. Tinha 15 anos. Foi embora de casa. Sem se despedir e nem nada. Deixou apenas um bilhete, escrito de maneira incorreta e com garrancho: “A humilhação não me deixa ficar. Procurarei meu caminho. Fiquem bem. Adeus”.

Sem instrução, negra e bonita, inevitavelmente, a sobrevivência foi garantida no meretrício. Ela ficou famosa no bordel de Ivanilde – completara 20 anos de idade. A casa de diversões era conhecida por suas festas com serestas, bregas, merengues e cumbias, com fartas porções de bolinhos de piracuí e litros de cerpa. Pagava-se a entrada e o consumo era à vontade. Taxistas, vendedores, trabalhadores braçais, comerciantes eram os freqüentadores. As brigas não eram raras. Quase toda semana havia um esfaqueado, um baleado ou um surrado. Quando não, mortos, mas estes sim eram raros. Até aquela noite.

Em verdade, as festas eram genuínas orgias. As pessoas trepavam no salão da festa. Nas paredes, nos cantos, nos banheiros, no chão, nas mesas, e é claro, nos quatros. O auge da putaria era atordoante para quem estivesse sóbrio e visse o festim. A luz vermelha iluminava. Mulheres chupando falo, e sendo chupadas. Transando em pé nos cantos escuros. Sentando em ritmo frenético. Quando não, de quatro, com cabelos puxados e ao cadenciar das tapas e penetrações. O cheiro de cerpa, de fumaça de Derby e sexo era avassalador. São os homens na condição de animais. Comportando-se como animais. Como vários animais em cópula. Em cio coletivo. Barulho de corpos se chocando, gemidos e gritos. A música toca orquestrando as relações. Os instintos originais tornam-se conscientes e livremente praticados. Gozo e prazer pagos e plenamente satisfeitos.

Nesse ambiente entorpecido, um acontecimento marcaria profundamente o seu transcurso natural. Maricota era disputada por seus clientes habituais. Estava no quarto da noite, de quatro – sua posição favorita. Um tiro. A música pára. Todos param e ficam em posição de sentido, procurando ver o que acontece. A porta do prostíbulo havia sido arrombada com um chute, mas apenas o tiro fazia-se ver a presença de Biditi no festim. Após o tiro, ele procurava bêbado e dominado pelo ódio, o seu olhar avermelhado perscrutava, buscava por sua filha. Tudo foi muito rápido, frações de segundo. Maricota ao ver o pai naquele estado, e ao cair em si, e ver o seu estado, e razão de seu pai estar ali, escorreu uma lágrima do seu rosto, antevendo o seu inevitável destino. Segundo tiro. Jaz um corpo. O Jurunas não foi mais o mesmo. Ficou mais triste.

(Felipov)

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Porque era ela, e era eu. Ponto.


A sua languidez me fascina avassaladoramente. Ela tem um jeito peculiar de me fascinar. É de difícil explicação – e eu sempre tentando explicar. É sensorial demais a forte impressão que a sua simples presença me faz. O bem-estar que provoca o seu cheiro de cabelos limpos ao aroma de condicionador, roupa limpa e alfazema. A cada abraço inocentemente dado, sentia esses cheiros que me tranqüilizavam instantaneamente.

A sua morenice – leia-se: negritude – me fascina. Seu traços fortes, e, ao mesmo tempo, delicados, olhos oblíquos e semi-cerrados. Corpo bem definido, formoso, expressão da flor da juventude, de um misto da beleza negra e traços renascentistas – uma beleza “morenamente” clássica. Um sorriso encantador – acanhado e agressivo. Suas imperfeições são igualmente encantadoras. A meu ver, a beleza se define pela imperfeição, pelo que torna aquela pessoa que a porta única, singular. Rara, portanto. É isso: sua beleza é rara.

Seu jeito de falar é raro. Sempre exitoso, gestual, pausado, apaixonado, com ricas e marcadas expressões de boca e olhos. Sobrancelhas que falam junto com o gesticular de mãos. A defesa do seu ponto de vista com uma inteligência ácida e densa, com argumentos contundentes, com pouca margem de contraponto ou crítica. Simplesmente irritante. Ela me irrita e, a um só tempo, me encanta. Discutimos de tudo, e nos perdemos em nossas discussões.

A nossa última discussão foi tomando café de entrada e cachaça de saída. Encontramo-nos de tempos em tempos. São sempre bons encontros. Sempre que nos encontramos nos perguntamos por que ficamos tão afastados – ninguém tem resposta. Aos goles de capucchino bem quente, com bastante canela e licor, conversamos profusamente, sobre diversos assuntos. Conversamos de perder a noção do tempo e espaço.  Conversamos como se existíssemos apenas nós dois em meio aquele caos urbano do centro da cidade.

Já ébrios de cafeína, fomos, como transeuntes, andar por entre pessoas, carros e arranha-céus. Andando e conversando. Até que chegamos ao outro destino. “Uma dose aqui, meu caro” – digo ao garçom, meu camarada. Sentamos. Compartilhamos a dose – ela não queria tomar uma só, disse que era muito, e que bebida corrompe o espírito. Sentamos e esquentamos o espírito. Enquanto ela falava, fumando graciosamente um cigarro, eu apenas observava.

Observava. Observava. Pedi uma cerveja – estava com sede. Bebemos mais algumas. Ela tinha que partir, havia dado sua hora. Despediu-se de mim, e foi embora. Acabei a cerveja. E parti. Porque era ela, e era eu. Ponto.

(Felipov)