terça-feira, 14 de agosto de 2012

Dia 20, poltrona 3, 8h15min.






Dormi a tarde inteira ontem. Tenho feito isso todos os dias, nos últimos dois meses, depois que fiquei desempregado. Uma coisa que sempre pensei: devia ser direito líquido e certo, com um artigo independente, com incisos e tudo, impetrado entre as garantias fundamentais naquela merda que chamamos com ignorante reverência de Constituição: é garantindo a todo o cidadão brasileiro dormi depois do almoço. O desemprego garante esse direito. Ainda bem que existe desemprego. É, eu sei, isso parece opinião de classe média que está cagando para o mundo, mas é quase isso, sou classe média, não estou cagando para o mundo, tenho consciência social, mas ajo como se estivesse cagando, no final, penso que não cago, mas cago – pensar desta forma traz algum alento, mesmo com ledo engano, é bom ter a consciência tranquila, alienação, ideologia, eu sei de tudo isso, tive acesso ao ensino superior, e nos momentos convenientes, sou até marxista, sou classe média, afinal. 

Um dia desses, que não lembro bem, sempre tive problemas de memória, sempre esqueço senha de cartão, email, rede social, enfim, quem se importa, ficar muito tempo dentro de casa, lendo, comendo, dormindo, me faz perder a noção dos dias, das horas, da vida, enfim, voltando, sempre me perco nestas digressões, estava discutindo sobre questão indígena com um amigo.

A discussão partiu do texto, que mandei pra ele, via hiperlink, num bate-papo desses de email, como eu não tenho mais rede social, tenho vivido um ostracismo virtual, voluntário e terapêutico, estava cansado daquela privada entupida de comentários-curtir-compartilhar, de um colunista da Folha que apresentava uma visão pondera de classe média com consciência social sobre a questão indígena.

Disse pra ele, achei bom, e ele disse achei uma merda, o texto com aquela redação de colunista que quer ser cool, coloquial, reflexivo, conciso, defendia a idéia razoável de quem os índios devem ter seus direitos garantidos pelos governos, ter o direito a manutenção da sua cultura, caçar, pescar, plantar, andar pelado, essas coisas, qualquer pessoa, com o mínimo de bom senso concorda com esta formulação, eu tenho bom senso, meu amigo também, mas ele achou o texto uma merda, porque o texto demonstrava o bom senso de quem não conhece a realidade concreta da vida dos povos indígenas, alguém que conhece os índios pela televisão, pelas aulas de período colonial, que seu professor defasado, com carga horária lotada, sem tempo e formação para ler e planejar uma aula melhor, meses sem fazer sexo, em processo de separação, ariscando algumas alunas cheirando a leite e hormônios, nas quais os povos ameríndios eram apresentados como vítimas, mão-de-obra escravizada nos primeiros anos de colonização, depois substituída, devido à preguiça, pelos negros africanos, mais aptos ao trabalho braçal, na lavoura, no ciclo da cana-de-açúcar, depois substituído pelo ciclo do ouro, demonstrando nisso o sentido da colonização, segundo Caio Prado Jr, cita com orgulho de si mesmo por saber aquilo e se alinhar a uma visão historiográfica datada e amplamente criticada pela historiografia atual, que postula o índio como agente histórico com cultura própria e criativa, com projetos e interesses próprios, que faz leitura de sua situação social e se movimenta com relativa margem de autonomia, o índio é objeto da dominação, mas também é sujeito que se move segundo suas possibilidades e interesses, historiadores acadêmicos, não partilham daquela representação idílica que suas teses criticam, mas índio bom é índio morto do século XIX, afinal, é classe média também, a relação centro-periferia, colônia-metrópole, a razão fundamental do nosso subdesenvolvimento, o professor defasado trinta anos em seus conhecimentos, conclui, fazendo relação passado-presente, saber histórico escolar, achando que está cumprindo seu papel, talvez esteja, nunca saberemos, então, voltando, estas malditas digressões, nestas aulas o índio era idealizado, vitimizado, panteonizado, com traços românticos, o bom selvagem rousseuniano, como aquele que caçava, pescava, plantava, andava nu, em paz com a natureza, servindo de argumento para um colunista formar a opinião de milhões de pessoas com esta representação social de classe média sobre a questão indígena: indulgente, idílica, ponderada, bom senso, mas, ela é totalmente destruída quando se entra em contato com os índios reais do mundo atual, não são Iracemas, Ubirajaras e Peris encontrados nas aldeias atuais, são índios obesos, calçados de havaianas, com shorts de taquetel, vendo a novela das oito, querendo colocar crédito no Nokia, que foi comprado na promoção com tocador de mp3, para ouvir as músicas da novela e reclamar da Tim, que na maioria dos casos, vivem na mais abjeta miséria, morrendo de doenças do homem branco, cólera, gripe, difteria, etecetera, sofrendo os agravos do alcoolismo, vendendo ilegalmente madeira de suas reservas, enfim, uma merda, concordei com ele, depois, ele ainda levantou a questão que toda essa merda está relacionada a educação, de não se fornecer os meios para que o indivíduo, o cidadão médio comum, veja problemas e não fatos, concordei com ele, mas disse que não era apenas a educação, ela é uma das instâncias que reprodução de toda a merda social que vivemos, mas ela sozinha não produziu toda a merda, e não é ela sozinha que vai limpar, a educação, de acordo com que eu ia digitando, é moldada por múltiplas determinações sociais, tendo um caráter indelevelmente dialético, ora de subversão, ora, via de regra, de reprodução da ordem social, fazer pensar, desbanalizar, autonomia de pensamento, visão crítica do mundo, não é algo fácil e rápido e previsto nas planilhas de planejamento do Ministério da Educação, ele concordou comigo, já estava na hora do almoço, me despedi e fui comer.

Comi muito, minha comida favorita: purê de batata com picadinho. A sesta foi proveitosa, eu até sonhei, faz muito tempo que não sonho, nem lembro mais, talvez tenha nascido sem a capacidade de sonhar, não sei. Fazia muito calor na tarde de ontem, em Belém é sempre assim, os trópicos são sempre assim, na linha do Equador é sempre assim. Acordei assustado e suado. Sonhei com ela deitada ao meu lado, seu corpo branco como um copo de leite, não importava se integral, desnatado, em pó, industrial, tirado fresco da teta da vaca, que eu bebia e me saciava, que eu bebia e necessitava, que eu bebia, que eu bebia, que eu bebia alimentando o meu coração, pensei que fosse coalhar ao meu lado, mexendo no meu bigode e dizendo que meu cheiro é doce.

Acordei, tomei banho, me masturbei, lavei os cabelos. Apesar de não ter muita caspa, eu gosto do frescor que fica no cabelo depois de lavados, talvez seja por causa do comercial. Eu sempre me esqueço de lavar atrás das orelhas, quando lembro, ouço a voz da minha mãe, dizendo amável, como se disso dependesse a minha saúde: meu filho, não esqueça as orelhas. Além das orelhas, esquecia a toalha: mããêêê, esqueci a toalha. De novo, meu filho, ela dizia sorridente, feliz pela dependência, feliz por não me perder. Como é boa a sensação de estar limpo, cabelos limpos, cheiro de sabonete, cheiro de shampoo.

Eu tenho planos. Considero ser importante ter planos. Talvez seja um problema meu, mas sempre desconfiei de pessoas que não têm planos, que vivem um dia de cada vez, sei que a vida transcorre assim, mas considero ser importante ter planos, quando penso nisso, sempre me vem a mente uma frase do Woody Allen: interessa-me o futuro porque é o lugar onde vou passar o resto da minha vida, concordo com ele, eu gosto do Woody Allen, me vejo nele mais velho, talvez eu fique parecido com ele, talvez não, talvez eu morra daqui a uma hora, quem sabe, não sei.

Então, como dizia, considero ser importante ter planos, meus planos, nós próximos cinco anos, pelo menos, é fazer a minha vida valer a pena, não que ela não tenha valido até o momento, mas sempre fiz o que era esperado de mim, sempre cumpri as expectativas, do alto do meu um quarto de século, está mais que na hora de pegar as rédeas da minha vida e comandá-la. Fazer, nestes cinco anos, a vida valer algo, não sei o quê, mais algo diferente do que está posto. Depois, quando me sedentarizar de vez, casar, oito horas de trabalho por dia, ficar careca, engordar, ter uma amante, achar meu trabalho uma merda, querer me separar, ter algumas histórias para contar aos meus filhos e netos: os cinco anos áureos da minha vida.

Uma vida sem planos é um grande desperdício. Ela não tinha planos. Foi embora, coalhar longe de mim, meu copo de leite. Minha postura política é me importar com aquilo que depende da minha ingerência direta, o que não depende dela, nada será feito. Eu vou morar com uma amiga, uma quase irmã, compartilhamos planos: fazer doutorado e viajar a América Latina. Fizemos uma promessa, se até os quarenta e sete anos, porque nesta idade não se espera muita coisa da vida, além, é claro, a morte, a aposentadoria, pagar as dívidas adquiridas em uma vida, não encontrarmos ninguém minimamente qualificado para compartilhar a vida, nos casamos. Cinismo compartilhado. Quando lembro, rio comigo mesmo, aquele riso de quem te vê, pensa que és doido. Uma das coisas mais importantes da vida é compartilhar, talvez esse seja um dos seus sentidos, não sei. Uma das coisas mais difíceis da vida é encontrar alguém com quem se possa compartilhar genuinamente a vida, eu sei. A vida é difícil.

Ontem, depois que acordei, tomei banho, saí de casa, passei no banco, fiz um depósito de um livro que comprei na internet, começou a chover, passei no banco novamente, tirei dinheiro, continuou a chover, dei um tempo no supermercado, comi um lanche, a chuva cessou, peguei um ônibus, calor, lotado, trânsito, desci, andei um pouco, fui a rodoviária, destino Natal, pagamento a vista, perguntou o vendedor ao ver o dinheiro no guichê, acenei positivamente com a cabeça, o vendedor não sabe, mas ele me disse porque ele é vendedor de rodoviária, comprei a passagem.
Gosto de Belém, gosto muito mais da minha vida, a vida em Belém não é vida, a vida dos meus próximos cinco anos áureos. Pensava isso em quando estava no ônibus, indo para um bar, tomar uma cerveja, comemorar o início dos planos, lia na passagem:

Dia 20, poltrona 3, 8h15min.