sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Romanos 12:19





Lourdes despertava assustada e inquieta, ao cacarejar do galo, todos os dias de sua miserável vida. Banhada de suor no seu barraco quente e úmido, com aquela dor de cabeça antecipada e a vontade de dormir eternamente. Antes de sair, arrumava, com demasiado zelo, a casa e o almoço. O picadinho com batatas, muito cheiro-verde e nervo de carne de terceira, a melhor refeição da semana, que geralmente restringia-se a conservas, ovo e salsicha, era cozinhado com muito esmero e carinho. Dormia pouco – antes de repousar, sempre lia o Salmo 91 e fazia suas orações. O cansaço era uma dura herança ancestral, um fardo intolerável que a sua condição feminina suportava, como se fosse uma mártir em uma multidão de mártires desvalidos, uma horda de vencidos, aqueles ombros que carregam a ordem social, encerram fileiras do mesmo lugar no mundo. Mais uma segunda-feira, mais uma enfastiosa semana, amanhecem no Tapanã.

Ouvem a mesma música, compram no mesmo supermercado a crédito, bebem a mesma cerveja, fumam o mesmo cigarro, fodem da mesma forma, todos tem a mesma vontade de ganhar na loteria, querem ser celebridades da televisão, sobrevivem sob o mesmo sol que tosta a pele, inalam a mesma poluição que apodrecem os seus pulmões, agradecendo a Deus pelo salário mínimo, frequentam a igreja todos os domingos, fazem suas meia dúzia de rezas, pagam seu dízimo mensal, morrem nas horrendas filas de hospital; esta vida feliz tem nas batidas, no treme-treme, na dança frenética do tecnobrega, a trilha sonora de amor e de morte.

O almoço era única alimentação do dia dos filhos e do marido desempregado. Há seis meses é do fruto do seu suor diário que se sustenta a casa. O marido não podia mais trabalhar como pedreiro, vitimado por um derrame. Ele aprendeu com destreza os penosos afazeres domésticos: cozinhava bem, lavava mais ou menos, passava mal e limpava razoavelmente. Sentia-se um pouco humilhado por não fazer seu papel de macho e prover o sustento. Resignado, apoiava a mulher em tudo. Deixou de beber, de fumar e de madrugar. Abandonou as amizades de mesa de bar e do samba.

Pontualmente, Lourdes embarcava no ônibus das quatro horas da amanhã. Depois, o das sete horas. Chegava sempre às nove horas ao trabalho.

A casa de uma de suas inúmeras patroas ficava no centro da cidade.

As pernas cansadas pela artrite, as costas doendo pela hérnia de disco, um pouco de torcicolo, no mesmo velho ônibus desconfortável e lotado, na companhia de dezenas de trabalhadores. Aquele odor acre de suor, poeira, fumaça e perfume barato formava uma massa gasosa que lhe provocava uma profunda náusea. Devido a uma toalhinha gasta, em farrapos, que embebia de perfume, livrava-se do suor e daquele odor, conseguindo aguentar a viagem até o fim. Ela agradecia a Deus por vir sentada. Isentava-se dos suplícios da corrida a pé. Calor, aperto, muita gente com o mesmo objetivo: sobreviver. Dava Glória a Deus e Aleluia toda vez que descia do ônibus. Mais uma viagem vencida. A vida era feita de pequenas batalhas, era necessário pelejar para alcançar a vitória – dizia seu o pastor nas pregações dominicais.

Dois quarteirões necessitavam ser vencidos a passadas ora rápidas, ora vagarosas de pernas velhas e enfastiadas para alcançar, como se fosse uma missão dos escolhidos, a primeira casa do dia. Passava pela mesma calçada, desalinhada, esburacada, entre chão de terra e concreto quebrado, com mato rasteiro denunciante do abandono, era seu caminho tranquilo. Cantando hinos da harpa cristã na sua mente fadigada, que apenas processava as funções vitais para mantê-la viva. Essa espécie de mantra cristão lhe trazia profundo alento. Ela estava em contato com Deus.

Contudo, nesta segunda-feira, chegou atrasada pela primeira vez naquele mês. O seu relógio, daqueles importados made in china, com prazo de validade, comprado no ver-o-peso à custa de uma boa pechincha, marcava dez horas da amanhã. Já ensaiava em sua cabeça a desculpa que ia dar, não teve muito trabalho, diria apenas a verdade: o trânsito. Ouviria a mesma resposta implacável de sua patroa: saia mais cedo, cumpra seu horário.

“Bom dia, dona Lourdes. Mais uma vez atrasada. Não vou mais tolerar isso. Eu faço o favor de te dar emprego e abusas da minha boa vontade. Toda vez é a mesma desculpa. ‘Trânsito, trânsito, trânsito’. Sabes que tens horário a cumprir, pensas que o mundo gira ao teu redor? E não me olhe com esses olhos de pobre coitada, a minha paciência se esgotou. Cansei da tua preguiça, sua favelada, morta de fome! Sua vagabunda que abusa da minha paciência e caridade! Não vou mais tolerar isso. Tu estás despedida! E não me peça referência e nem nada. Se qualquer pessoa vir me pedir referência, vou-te desindicar como preguiçosa e não cumpridora de horários, que vive dando desculpas e querendo tirar proveito da sua pobreza pra atrasar a vida dos outros. Cansei, não tenho mais tempo a perder com a sua insignificante pessoa e seus parcos e sofríveis serviços”.

A patroa de Lourdes vocifera isso aos berros ficando vermelha e com a boca seca. Seus olhos vidrados expressavam toda a histeria do seu corpo. A sua estirpe de mulher de classe média, na meia idade, professora universitária, nascida em berço de ouro e bem educada, luxuosamente maquiada, roupas de grife, cabelo bem cortado, unhas feitas, não justificava, nem quiçá explicava, aquele tipo de comportamento. Não era de bom tom tratar a criadagem assim. Lourdes ouviu a tudo calada e com o olhar altivo. Pensava: “Senhor me livra e me guarda debaixo do teu sangue, contra todo mal e contra todo perigo”. E disse de maneira amável, humilde e resignada:

“Desculpe, patroa. Desculpe o atraso. Não queria causar problemas. Espero que Deus entre em sua vida e a transforme em uma nova criatura em Cristo. Deus lhe abençoe, tu e a tua casa”.

A patroa olhava-a com um rosto desfigurado pelo asco e pela insolência daquela mulher que julgava ser um pobre diabo analfabeto que dependia de seus favores. Lourdes virou de costa, vagarosamente dirigindo-se para a porta, culpando-se pelo atraso, interrogando-se se havia feito alguma coisa errada em sua vida, se este fato era resultado de algum pecado, alguma maldição, algum provação de sua fé, algum castigo divino. Lágrimas escorriam sobre as maçãs ressecadas do seu rosto, que prontamente limpava – não gostava que a vissem chorar. Era frágil. Mas não uma pobre coitada. Seu pranto representava resignação e expiação. Deus tinha algo melhor para a sua serva – esta ideia domina seus pensamentos. Os planos divinos são mais altos e misteriosos que a sua limitada vontade humana – lhe reconfortava diante de mais uma derrota.

“O Senhor é meu pastor; nada me faltará” – acalmou-a, dando-lhe refrigério na alma.

Quando, subitamente, na fração de segundo própria das situações trágicas, um ataque fulminante do miocárdio acometeu o coração fumante de décadas e décadas de sua patroa. Ela tombou inerte no chão, com as duas mãos à altura do peito, lutando contra aquela dor mortal. Lourdes ouviu o barulho de algo caindo no chão. Virou-se e ficou olhando com um olhar sereno e impassível o sofrimento terminal da patroa. Ela lutou dez eternos minutos contra aquele dor. Seu corpo sem vida ficou estirado no chão. Um leve sorriso de felicidade e contentamento tomou conta do rosto de Lourdes, que imediatamente ligou para a ambulância, para a polícia, para os bombeiros, para quem fosse. Estavam somente as duas em casa. A ambulância chegou depois de meia hora.  

Por sua vez, o que lhe vinha a mente era apenas o tema da pregação do dia anterior, baseado no texto de Romanos 12:19, que diz:

“Não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas daí lugar à ira, porque está escrito: Minha é a vingança; eu recompensarei, diz o Senhor”.

“Glória a Deus e Aleluia!! Tu falaste com a tua serva! Tua é a vingança, Senhor! Tua é a recompensa!” – dominava os pensamentos de Lourdes.

Ela sentia a presença de Deus no seu coração.



terça-feira, 30 de julho de 2013

A conversa


I
(TESE)

“Preciso te ver”

“Quem é?”

“Sou eu. Sabes quem é”

“Como conseguiu meu número?”

“Achei que fosse o mesmo”

“Sou sempre previsível”

“Posso te ver?”

“Sim, por que não”

“Hoje. 18h. Ainda moras naquele apartamento?”

“Sim. Não pode ser 19h?”

“Tá bom, 19h”


II
(ANTÍTESE)


“Por que isso agora? Depois de três anos?”

“Precisava te ver”

“Para quê?”

“Por que sonhei contigo e senti a tua falta. Precisava saber o que isso significava. Então, pensei, nada melhor do que uma visita”

“Depois de três anos?”

“Não gostou?”

“Confesso que fiquei surpresa com a mensagem”

“Na verdade, eu precisava me testar”

“Como assim?”

“Primeiro, entender porque senti a tua falta. Depois de tanto tempo. Porque isso não aconteceu antes, só agora. Nada melhor, pensei, seria a tua presença física na minha frente e ver o que isso, o frente a frente, o olho no olho, me provocaria. Ver o teu corpo na minha frente, no teu apartamento, no qual vivemos vários momentos, e saber concretamente quais reações isso me provocaria. Ver a tua vida na minha frente e saber que tipo de repercussão isso teria na minha vida. Eu sei de todos os riscos que estou correndo aqui, sobretudo de trair a mim mesma, os meus sentimentos e a pessoa que amo. Contudo, eu precisava colocar à prova, tudo que considero ser honestidade, lealdade, fidelidade a mim mesmo e ao que sinto”

“E a que conclusão chegou?”

“Sem conclusão. Apenas sei que não vou transar contigo”

“(...)”

“Calma, não é esta vulgaridade que estás pensando. Aquela vulgaridade que faz parte de todos os animais humanos. No entanto, não é apenas isso. Vim testar princípios que me diferenciam destes animais. Vim, principalmente, testar o meu coração”

“Compreendo. Pelo visto, algumas coisas não mudam. Fiquei feliz ao receber a tua mensagem e uma esperança infeliz invadiu-me novamente”

“(...)”

“Eu pensei que as minhas preces tivessem sido atendidas”

“Preces? Não és religiosa”

“Não tens noção das modificações que fizestes no meu ser, no meu interior, no meu pensamento, no meu espírito, desde que nos separamos. Nem lembro mais os motivos de nos separarmos. Enfim, não importa. Nada importa quando foi pretérito imperfeito. Tenho a certeza somente do espaço vazio, tão longínquo, inóspito e gelado quanto a Sibéria, que deixaste no meu peito, no qual eu havia criado um pequeno vilarejo de uma casa só, com uma igreja sem Deus, sem autoridade, sem Estado, ao lado de campos, bosques e florestas pujantes e idílicos duma eterna primavera quando habitávamos tal qual um casal de mujiques e agora resistem ao pavoroso inverno. Me fizeste ver a vida sob outros pontos de vista. Duros, secos, áridos, concretos da realidade dos homens. Ao mesmo tempo, fui invadida com teu modo de sentir o mundo, o qual me encantou imediatamente, duro e doce, amargo e terno, desassossegado e contente, cômico e trágico, convencendo o meu juízo com teus argumentos, acalentando o meu coração entre os teus braços, beijos e carícias. Sabe, por muito tempo, amaldiçoei o dia que te conheci. Mas tenho certeza agora, neste momento, que desfiguro a alma na tua frente. Eu sei que foi o que me manteve viva até agora. Viva no sentido mais legítimo e genuíno e verdadeiro que a vida. A existência de uma pessoa que ainda não sucumbiu diante da vulgaridade do mundo. Eu conheci a vulgaridade, sei do que estou falando. Me livraste dela, sou totalmente grata, porém me ofereceste um remédio sem antídoto, sem medida, sem volta. Perguntaste de prece. Então, toda vez, quase sempre, não sei, que a saudade apertava, devotamente ia até a igreja sem deus fazer preces para que a primavera voltasse, rogava para que outro habitante fosse digno de morar naquele vilarejo, ou que o antigo dono regressasse. No entanto, nunca obtive resposta até receber aquela mensagem”

“(...)”

“Fico feliz em saber que estás feliz e amando”

“Sim...”

“Espero que teu teste tenha terminado”

“Sim...”

“E o teu coração?”

“Sente que errou”

“É muito tarde”

“Eu sei...”


III
(SÍNTESE)


“Fique tranquila. Volte em paz para os braços da sua amada. Seu senso de dignidade foi testado e aprovado. Seus princípios são irrepreensíveis. Esta conversa, na verdade, este tipo de conversa, é fundamental para esclarecimentos e avaliações. Além do teste, tenho certeza que fizestes uma avaliação. O que acaba dando no mesmo. Eu também fiz a minha avaliação, com extraordinários esclarecimentos. Sinto que os fardos da tua ausência foram aliviados de maneira definitiva. As correntes que me prendiam foram quebradas. Vejo o remorso que estás sentindo agora. Que teu coração sente. Por ver, pessoalmente, que mudei. E é visível no teu olhar o arrependimento. Este era o verdadeiro teste, ver a mudança. Este é o último contato, não me procure. Enfim, a conversa acabou. Abra definitivamente seu coração nas mãos da amada. O meu definitivamente fechou”.



Não há pior barulho do que um coração que se fecha. 

sexta-feira, 5 de julho de 2013

CHUVA, PORCOS E FARELO




Amanhece mais um extraordinário dia em Belém do Pará. 

Choveu bastante de madrugada. 

Chuva forte com rajadas de vento e água por toda a noite. 

Todos os habitantes da cidade foram atingidos. Ninguém ficou impune. As lambidas ora fortes ora macias da chuva foram de igual impacto sobre os belenenses. Todavia, os efeitos foram diferentes. A água que corria pelo asfalto e concreto não tem a mesma ação sobre os moradores da cidade: de alguns acalenta o sono, de outros é a razão do drama insone.

Alagamentos, ruas inteiras sob a água. 

A periferia da cidade contabiliza seus prejuízos, fogão, geladeira, colchão, a dignidade vendida na última eleição: tudo embaixo da água. Nos bairros centrais, algumas ruas cobertas d’água. Ao amanhecer apenas restam a lama e a razão da dor de cabeça de seus moradores: sapatos sujos depois de uma revigorante noite de sono.

Ocorreram assaltos, latrocínios e mortes. 

Pessoas beberam, se divertiram e voltaram para suas casas. Outras apenas dormiram, aproveitando o frio da noite. Houve aquelas que ficaram acordadas salvando eletrodomésticos, chorando a desgraça, pedindo a Deus dias melhores. Estas pessoas assistiram à televisão, umas como telespectadores, outras como notícias. A culpa é da chuva. Sempre culpa da chuva. A natureza domina tudo e todos.

Rebeca Lemos acorda atrasada. 

É jornalista e trabalha no principal emissora de televisão da cidade. Está feliz porque engravidou depois de anos de tratamento. O marido conseguiu uma grande causa para defender. Rubens Carvalho é advogado e está feliz com gravidez, sua amante também quer engravidar. Rebeca e Rubens, semana que vem, estão de mudança para o apartamento novo.  Só uma coisa lhes preocupa agora: os sapatos sujos.

Chega ao prédio da emissora. 

Uma hora de atraso. Chuva, trânsito. Tinha desculpa. A pauta do noticiário, mais uma vez, é a ação das chuvas na cidade. Pensa consigo que sempre é a mesma coisa. Mas não era apenas isso. Aconteceu um grande crime no Jurunas: uma chacina. Oito pessoas mortas. Executadas sumariamente. Briga entre traficantes. Moradores haviam enviado para a redação imagens de celular do confronto. A polícia entrou em contato com a emissora. Um grande furo de reportagem. Dois repórteres e um cinegrafista foram designados para cobrir a situação. Rebeca tinha que editar todas essas informações em notícias. Os sapatos sujos era o que preocupava Rebeca.

Na sua mesa estavam todas as informações em vídeos, textos e fotos. 

Ficou nauseada ao ver tanta violência. Otávio Barata, chefe da redação, ao vê-la, brilhou os olhos de satisfação, chegou a hora de testá-la: seu batismo de fogo. Pesava sobre ele a fama de ser muito exigente, rigoroso e severo. Rebeca sempre editava as notícias mais amenas, relacionadas a variedades, direito do consumidor, assuntos de saúde, ou as premeditadas consequências do caos urbano depois da chuva daquela madrugada. As notícias traduziam o seu desconforto em ter os sapatos sujos. Naquele dia a edição ia ser diferente. Otávio entregou em suas mãos a tarefa de editar a chacina do Jurunas. Com uma recomendação: dê aos porcos o farelo que eles querem comer. Ela sabia o que ele queria. Ela foi preparar o farelo.

O fato ficou conhecido como “A chacina dos porcos”.

Todos os telejornais da emissora veicularam a notícia com a tarja de “exclusividade”. Rebeca foi quem cunhou o nome para a chacina. As imagens e depoimentos convergiam para um verdadeiro relato de carnificina. Todos os oito homens mortos estavam visivelmente acima do peso e foram assassinados a tiros e golpes de facão. Todos os corpos foram esquartejados e os pedaços foram jogados por toda a extensão da passagem onde ficava a boca de fumo. Dos oito, três eram menores de idade. As imagens lembravam muito a carne e o sangue de um matadouro. Rebeca arrumou textos e imagens como um espetáculo da carnificina necessário imprescindível para a manutenção da ordem e paz social. “Bandido bom é bandido morto, que todos esses porcos morram” – ela pensava. Contudo, o que há mais incomodava eram os sapatos sujos. Aquilo era inadmissível: sapatos tão caros e sujos de lama.

No programa “O porrete do povo”, a notícia foi saboreada como um manjar.

“Exclusivo! Temos notícias inéditas! Totalmente exclusivas da Chacina dos Porcos! Nesta madrugada de chuvas, aconteceu um assassinato brutal no bairro do Jurunas. Oito homens foram encontrados mortos num beco onde tinha uma boca de fumo. Mortos a tiros e golpes de facão! Todos os corpos foram esquartejados! Cortados em picadinho! E espalhados por todo o beco! A polícia acredita que seja briga entre traficantes pelo controle do tráfico no bairro e que os requintes de crueldade seja para dar exemplo e deixar claro quem manda. Estas observações foram feitas pelo investigador Pereira, do setor de narcóticos da Polícia Militar, mas o inquérito policial ainda está em andamento. Meu povo, eu quero é que eles se matem mesmo! O mal por si só se corrói! Eu quero que eles se matem devagarinho!! Eu quero imagens!! Olhem só!! Pernas e braços jogados na sarjeta!! Sangue, muito sangue!! Sangue e lama!! Parece a imagem de um matadouro de porcos!! Eu quero que todos eles sejam sacrificados mesmo!! Eu quero todos eles mortos!! Olhem as imagens!! Porcos, eu quero todos esses porcos mortos e enterrados!! Vou ter um prazer de noticiar mais morte desses marginais, vagabundos, meliantes!! Esses enviados do demo para destruir as famílias!! Você mãe que tem filho viciado e vive esse inferno dentro de casa, fique feliz!! Você cidadão de bem que paga todos os seus impostos e que anda dentro da lei, fique feliz!! Você policial que arrisca todos os dias a sua vida para garantir a paz e a segurança de toda a sociedade de bem, fique feliz!! Toda a sociedade, fique feliz, são menos vagabundos fazendo mal e desviando nossas crianças e jovens do caminho do bem!! Eu espero com fé em Deus que todos eles se matem, um por um, e que possamos viver em paz, sem violência e sem drogas!! É a justiça divina sendo feita!!”

A notícia foi um sucesso de audiência. 

Rebeca, promovida, agora edita as notícias da pauta policial. Ela prepara o farelo para os porcos comerem. Porcos com televisão de plasma. Porcos com smartphone. Porcos que gostam de UFC. Porcos que gostam de ver outros porcos apanhando, sofrendo, morrendo. Porcos gordos e satisfeitos na frente da televisão. Porcos que choram suas perdas no alagamento. Receba faz com que todos vejam a violência com o mesmo incômodo de seus sapatos sujos. 

Afinal, o que importa é o farelo. 

terça-feira, 21 de maio de 2013

Qualquer paixão me diverte, eu dizia.





Havia um copo de cerveja em minha frente, meio vazio, meio cheio. Era a síntese da minha vida. É tudo mais ou menos desde a pré-história da minha humanidade. Enquanto houver cerveja, cigarros e um pouco de saúde, a vida sempre vale a pena. Tenho pensando ultimamente nisso, se a vida tem valido a pena, parece que sim, até o momento. A vida tá bacana, sem problemas, tomando uma cerveja e preguiça de viver.

Estava menstruada. Realmente deus demonstrara toda a sua truculência com esse castigo por um ato de independência. Toda subversão será castigada – o único mandamento com promessa. Queria trocar o absorvente, porém o banheiro é um lixo. É foda beber em pé sujo, cerveja barata é diretamente proporcional a condições insalubres no banheiro. Ainda bem que sempre levo absolvente e papel higiênico. Não é higiene, é sobrevivência mesmo. Não é frescura, é preservação. Detesto sair de casa neste estado.

Este é um dos inconvenientes de ser mulher. Os outros são: viver numa sociedade machista e não ter um falo, ter a obrigação de ser mãe, viver como esposa e morrer avó. Não preciso me designar de vadia para foder com quem quiser, me vestir da maneira que quiser e ser independente de qualquer homem, antes disso trabalho e estudo, antes disso pago as minhas contas. O resto é vadia com discurso político vazio. Vazia, vadia. Sou prática. Prezo pela autodeterminação de ser mulher independente a Beauvoir.

Estou com um grupo de amigos no bar que sempre frequentamos. A conversa é sobre várias coisas. Fico feliz de encontrar pessoas queridas. Realmente queridas. Elas são cada vez mais raras. Parece que o mundo habitável resume-se a esse tipo de pessoa. Estou ficando cansada. Um sono leve começa a flertar comigo. É aquele leve torpor alcoólico de alegria, fome e cansaço que faz feliz quem bebe. Felicidade instantânea, momentânea e cada vez mais contemporânea. O mundo dos pixels legais do Instagram.

Até o momento que ele chega. Um cara estranho que estava transeuntando anônimo, incógnito, invisível no meio da multidão, se aproxima da mesa com feições humanas – ele tinha barba, por essa razão que considerei humano, humano bonito. É apenas mais um cara, pensei. Ele é amigo do pessoal da mesa. Conheço de vista. Junto a metade da população de Belém de semi-conhecidos. Estava a fim de sair fora. Comer alguma coisa e ir pra casa e curtir a minha embriaguez dormindo. Estava ficando tarde, ônibus é foda.

Mas aí, ele chegou. Porra, ele inviabilizou a minha saída. Tinha que dar mais um tempo. E isso é aquele tipo de regra social que ninguém explica, apenas se sabe e é necessário cumprir, ainda mais entre pessoas queridas. Fiquei mais um pouco. Tive que ouvir o papo dele. Limitei-me a ouvir a conversa com o pessoal da mesa. Começaram a falar de trabalho, que ele era professor, que mesmo com os problemas, ele gostava de dar aula e blábláblá. Grandes merdas ser professor. Um dia vou ser uma, então, não quero adiantar sofrimentos. Melhor nem pensar nisso. Preocupações desse tipo dissipam-se na ebriedade. Nesse ínterim, olhava o vazio da vida curtindo a minha embriaguez risonha.

Depois, falaram basicamente de literatura, música e cinema. Não era nenhuma novidade o que ele falava, mas a maneira como ele falava era simplesmente contagiante, com sinceridade, detalhe, honestidade e paixão. Apaixonante, diria. Dissertou longamente sobre literatura russa, que os Karamazóvi era a melhor obra escrita por mãos humanas. Interessei. Gosto de literatura russa. Pensei em testá-lo e testei. Perguntei se ele sacava Soljenítsin. Queria ver se ele era bom mesmo. Se não era papo furado. Papo de orelha de livro. Detesto gente idiota disfarçada. Literatura russa é fácil. E Literatura soviética?

Assombrosamente, ele respondeu que sim. Citou toda a obra dele e disse ter lido “Um dia na vida de Ivan Denissovich”, que ficou apenas nela, mas tinha vontade de retomar a leitura das demais. E citou ainda outros três escritores soviéticos dissidentes: Vassili Grossman, Vladimir Voinovich e Boris Pasternak. E que adorava as poesias da Anna Akhmatova. “Canção de despedida” era sua poesia favorita, ao lado de “Réquiem”, mas gosta mais da primeira, porque conseguia contemplar a beleza e sinceridade na tristeza.

Caralho, ele não é foda, é um filho da puta. Sim, somos cultizinhos de merda. Foi aí que a porra aconteceu. Puta que pariu, me fodi. Sei lá, alguma coisa aconteceu quando comecei a ouvir com atenção o que ele falava. Fisiologicamente, alguma coisa aconteceu. Comecei a suar, e ficar meio enjoada, e o coração a disparar. Que porra adolescente era aquela. Respirei fundo. Tomei mais um gole de cerveja. Calma, calma.

E vi com quase lágrimas nos olhos um sentimento estranho queimando em minhas entranhas. Tudo nele era bonito, simples, encantador. Fiquei imaginando como seria beijá-lo e sentir o bigode dele desferindo carinhos em minha face. A maneira como ele limpava o bigode cheio de cerveja. O modo como ele olhava interrogativamente, perscrutando em todos o que ele estava falando, dominando a conversar com tom professoral. Aquilo que poderia parecer pedante e chato era simplesmente encantador.

Neste momento, naquela mesa, eu estava totalmente ausente, inerte, esfumaçada. A inteligência dele começou a dialogar com os meus sentimentos que estavam brotando, aquelas idéias e a paixão com que eram proferidas foram jorrando água fresca e cristalina sobre as sementes de bem querer que estavam a semear um terreno abandonado no meu coração. As estepes siberianas do meu coração estavam em degelo.

Fitava a boca dele e da mesma maneira com que ele vocifera idéias, queria que ele vociferasse os meus seios, com a violência peculiar dos atos amorosos, língua e lábios chupando meus mamilos, sentindo o leve, mas violento roçar do seu bigode sobre a minha pele branca, que machucada com tão firmes carícias, avermelhada a testemunhar os benefícios do amor físico. O meu corpo dominando cada ato, objeto submetendo o sujeito. É a melhor e mais inteligente forma de dominação. É a minha forma de dominação.

Simultaneamente, esta mesma boca vociferante desce pelo meu ventre guiado pela língua, sentindo o cheiro do meu corpo entregue, até chegar ao meu jardim habitado por uma única rosa vermelha, e experimento bem devagar, bem lentamente e suave o seu desfolhar pela boca vociferante, transformando os seus lábios em fiéis vassalos do meu prazer. Ao mesmo tempo, subitamente, sem ser convidado, mas amplamente desejado, venha seu pau transgressor devassar o meu jardim, destruí-lo com fortes e renitentes atos de transgressão que apenas o meu corpo perdoa. Se ele não soubesse fazer nada disso, não há problema, teria prazer de ser pacientemente sua professora, instruindo em cada detalhe, ensinando todos os movimentos, educando de acordo com as demandas de cada centímetro do meu corpo. Sei que ele será um bom aluno. E eu uma diligente professora.

O devaneio dissipa-se com mais um pedido de cerveja. Que calor estava fazendo esta noite. Observo com interesse, e ele me saca. Sacou e gostou. Um sorriso tímido, despretensioso, de quem não saber do que é capaz de provocar. Caralho, como o sorriso dele é encantador. É de dar raiva, por ser totalmente irresistível. Sei que ele é inteligente. Beleza. Será que ele fode melhor que o Armando? O Armando é legalzinho.

O Armando fode bacana, tem um papo legal e dá para o gasto. Embora não saiba foder um cu. Ele tem cara de quem sabe chupar gosto. Todo cara de barba sabe chupar gostoso. Pensado melhor, ele é muito magro. Não gosto de gente muito magra, tem feição de doente. Ele não deve fazer pressão. Foder com força, me pegar de jeito, com umas boas tapas. A violência inerente a qualquer ato sexual. O Armando é fraco, fode gostoso, mas é fraco. Ele é magro, mas deve dá conta. As mãos dele são grandes. Gosto de homem com mãos grandes, eu aprecio um carinho pesado, forte, robusto. Desejei que ele descobrisse de maneira delicada cada parte recôndita do meu corpo, que decifrasse o meu enigma carnal, a partir das disposições do seu espírito, o calor dos seus beijos, o afagar da sua barba, entre as minhas pernas, nas minhas nádegas, no meu pescoço, como um processo judiciosamente científico de descoberta do meu gozo e satisfação.

Agora, nada mais me importa. Ele tem que ser meu. Tudo o que ele representa e todas as sensações e sentimentos que ele provoca em mim tem que ser minha propriedade. Não tem mais volta. Já sinto até a dor de que isso não seja possível. Merda, como é lindo isso, de se sentir atraído por alguém que tu não conheces, não sabe nada a respeito, mas os indícios físicos e espirituais do que aquele ser representa, repercutem em ti de uma maneira instantânea e avassaladora, uma vez sentido isso, se é prisioneira de tal deleite. Um cárcere voluntário em que a chave está em suas mãos. Os grilhões invisíveis dos sentimentos. Algemas e chaves nas tuas mãos. Como é doce ser prisioneira de uma paixão. Qualquer paixão me diverte, eu dizia. Agora é irremediável: sou prisioneira dele.

Copo cheio, uma golada. Preciso ir embora. Já não aguento ficar na presença dele, ele me domina, me machuca, me invade, me sufoca de tanta fascinação. Aquela língua me fodendo. Aquela boca me chupando. Aquele pau me deflorando. As mãos grandes fazendo carinho nos meus cabelos e lendo Akhmatova com a mesma paixão que trata dos Karamazóvi. Sentir afagosamente os carinhos do seu bigode por todo o meu corpo.

Pergunto quanto fica minha parte na conta, e pago. Levanto, me despeço de todos e vou embora. Claro que dele também. Eu precisava sentir o cheiro dele. Uma mistura de perfume e suor, com cerveja e cigarro. Um inebriante cheiro de homem boêmio. Quando olho para trás, vejo o olhar dele, perscrutando o meu corpo, perscrutando o meu espírito. Não sei se houve algo de transcendental. Ou só se foi o álcool e a fome. Quem sabe. Isso aconteceu ontem. Mas senti o doce hálito de tabaco preencher o meu vazio.