quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Cinema




Cinema Coliseum. Um dos primeiros da cidade, e derradeiro que ainda persiste em nos lembrar dos bons tempos. O velho cinema de rua, do tipo “Cine Paradiso”, abrigado em um prédio antigo, que fora construído em função daquela sala de projeção, nos anos finais da Belle Époque. Paredes encardidas, com a tinta descascando, as extremidades corroídas pelo limo e umidade, testemunham um tempo de glória que passou. Resquícios dos fumos que morreram. 

A mais aterrorizante visão do abandono. Cinemas antigos, quase extintos, que observei no seu auge, no franco declínio, e, agora, na quase extinção. Certamente, esse deve ser um dos últimos cinemas de rua de minha cidade natal. Dos outros tantos que povoaram a minha infeliz infância e venturosa juventude, um a um foram tombando, sendo substituídos paulatinamente por estacionamentos, boates, lojas de departamentos, igrejas.

O simples ato de ir ao cinema sempre foi um dos melhores momentos da minha vida. É o meu lugar no mundo. Sempre que podia, ia com duas razões manifestas: ver a reação das pessoas, e, é claro, assistir aos filmes. Depois de velho, tenho oitenta e cinco anos, eu já havia assistido todas as películas do acervo do velho cinema. Entretanto, continuava freqüentando-o, por que apreciava o espaço e de observar as reações das pessoas. A senilidade dava-me a impunidade, na verdade, concedia-me o anonimato necessário para desempenhar minhas observações dos transeuntes que freqüentavam aquela sala de projeção. Ninguém se importa com os velhos, eles passam despercebidos entre a multidão.  Ninguém se importa com a velhice, todos vivem como se a juventude fosse eterna. Ledo engano, que é revelado muito tarde. Infelizmente.

Na galeria de entrada do cinema, havia um café, no qual sentava-me todas as tardes, para apreciar as minhas xícaras de café intercaladas por tragadas de cigarro, vendo a fila que se formava para a sessão das dezoito horas. Todas as tardes, religiosamente, caso fizesse chuva ou sol, exceto quando estava doente e nas festividades de fim de ano. Meu objetivo era identificar no comportamento das pessoas as razões subjacentes que as motivavam ir ao cinema. Sobretudo, aquele cinema antigo, velho, abandonado, esquecido. Almejava ver a vida em movimento naquele meu lugar no mundo.

Via aqueles pequenos infantes vivendo o período mais feliz de suas existências, acompanhados da presença diligentes de seus pais, elas brincavam de pega-pega ou correriam na frente do cinema, enquanto os progenitores conversavam distraidamente sobre questões cotidianas, contas não pagas, a notícia do jornal, a fofoca da vizinha, e permaneciam repreendendo as peraltices das crianças de longe, de forma displicente, com pouca vontade. Outras crianças comendo pipoca, quietas, caladas, cabisbaixas esperando sua vez na fila, e observando com um olhar triste as outras que corriam alegremente, fazendo barulho e estardalhaço. Elas sabiam que não poderiam fazer aquilo em nenhuma hipótese fora de casa, ou mesmo em casa, eram filhos de pais severos e rígidos. Eu tinha ciência, consternando-me com o que via, porque fui filho de pais da mesma estirpe. Infelizes são aqueles humanos que tiveram pais severos, uma infância austera e séria, pois foram usurpados no momento mais feliz da vida: o da ausência das vicissitudes da consciência e das responsabilidades da vida adulta. Infelizes pequenos como eu fui um dia.
 
Os casais de velhos felizes por terem saído de casa, um ajudando o outro, muletas um do outro por uma vida inteira, agüentando-se mutuamente, achando que isso é amor. Uma vida agüentando absurdos, desaforos, traições, brigas, ciúmes. Uma vida justificada pelo amor. Tudo o que é feito em nome do amor é legítimo, válido, correto. Os silêncios das bocas cansadas de mentir juras de amor. O peito vazio contendo a inércia da existência de quem perdeu a solidão. O corpo fadigado, moribundo de quem é cônscio da vida que viveu, da vida que perdeu. O casal feliz que se reduziu a dois por não ter mais nada e ninguém. Apenas, a tênue imagem de duas almas gêmeas que o amor uniu e destruiu.

A juventude entusiasmada, esperançosa, triunfante, amante de si mesmo, soberba e imprudente, como se não houvesse amanhã que viesse ceifar suas efêmeras vidas. Essa juventude estampava nos rostos dos jovens que eu na via fila. Parece que vivem sem razão em função da paixão. Da forma como se vestem, falam e se portam uns com os outros parece que o senso de ridículo se extinguiu junto com a vergonha na cara. São cada vez mais perspicazes, instruídos, munidos de informações como nenhuma outra geração que habitou a face deste planeta. Faltando-lhes a inteligência necessária para discernirem essa massa de informação em julgamentos plausíveis, razoáveis e coerentes com o seu próprio tempo. Geração que se orgulha de ser estúpida, burra, insensata, como se seus atos fossem imunes a punição, louvam a impunidade da vida sem princípios, cedo ou tarde, a natureza cobra disfarçada de velhice. Narcisos dos tempos atuais, idolatram a si mesmos, e a seu modo de vida blasé, não sabendo que reside em tal atitude a raiz de sua futura ruína. O fim justo para uma vida injustificada. O fim.

Observava a cada individuo com atenção, cada vida com atenção. Considero que o sentido da vida está na observação da própria vida. Em reparar a vida a sua volta, alhures. Na pessoa ao seu lado no ônibus, no colega sentado perto de vocês na sala de aula ou no trabalho, nas pessoas que andam nas ruas, que freqüentam igrejas, bares, puteiros, auto-escolas, shopping centers, livrarias, sebos, repartições públicas, que acreditam em Deus ou não, que fumam, que fodem, que matam, que sobrevivem, que mentem, que sofrem, que choram, que riem, que cagam, que se masturbam, que lêem auto-ajuda, que lêem a Bíblia, que lêem Bukowski, que trabalham, que roubam, que são indiferentes, aquelas que se importam, as que amam, as que odeiam, aquela sua ex-namorada ou ex-namorado, sua mãe ou seu pai, o seu patrão, no banqueiro. Ver o outro como uma dimensão de si mesmo. Sou partícipe desta vida em movimento. Participo de toda esta merda que reparo. A vida que se projeta cotidianamente nas filas daquele velho cinema.

(Felipov) 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Conversa com Camus






Vivo. Existo. Objetivamente. Materialmente. Uma pilha de moléculas, átomos, células, tecidos, órgãos, cérebro, fome, sexo, angústia, sofrimento, chatice, alegria, solidão – e, é claro, um pouco de sacanagem. Existência precedendo consciência. Não sei por qual razão, motivo, ou causa, existo, permaneço, continuo. Talvez, isso, ainda, não esteja clarividente para a minha parcimoniosa inteligência. Contudo, vivo. Vivo pela razão única de não tenho outra opção. A minha inusitada alternativa é viver. Sobreviver – não sei bem. Não sei bem, Camus.

As coisas, a vida, os homens, a natureza, me parecem agora, nesse instante, diferente de qualquer outro, porque neste momento, estou pensando, de modo inescrutável, e, ao mesmo tempo, inefável, da forma própria na qual se movimentam os meus neurotransmissores neuróticos abalados por anos de displicente atividade cerebral, uma grande massa amorfa que procura organizar no meu juízo. Há juízo perfeito sobre a terra, meu caro Camus?

Na verdade, concordo contigo, Camus, a questão filosófica fundamental é o suicídio. A necessidade de desvelar as razões mais profundas em si mesmo, para formar a firme avaliação se esta vida, esta existência, esta cidade, este bairro, este Estado, este país, esta classe social, esta religião, este emprego, este salário, este planeta, esta galáxia, este universo, valem realmente a penosa desventura de viver. Eis a questão fundamental. Tens toda razão, caro Camus.

Amor. Sentimento em extinção. Considero, Camus, o amor nas suas múltiplas manifestações na existência humana. Fraternal. Maternal. Eros. Altruísta. Contudo, ele cada vez mais é confundido com uma procura desesperada pela satisfação desmedida do Ego. Vejo que o amor, os sentimentos amorosos, ou essa masturbação a dois com vomitação de arco-íris, no tempo em que vivo, transformaram-se em um platonismo virtual que se liquefaz na sucessão frenética das imagens que fazemos de nós e dos outros.

Quando as imagens idealizadas não se confirmam no deserto do real, quando esse platonismo romantizado no anacronismo próprio dos sentimentos inventados no mundo etéreo daquilo que se esperada, almeja, deseja, não se confirma, não se contempla, não se satisfaz. Vem, apenas, o masoquista sentimento de frustração daquilo que era ideal e permaneceu ideal. O Ego não satisfeito destila sua dor em atos infantis de recalque e afetação. Diga-me, caro Camus, quando os humanos compreenderão que não há metafísica e sim apenas o terreno árido da existência em matéria amorosa?

Solidão. A antítese por excelência do amor. É rejeitada, ignorada, renunciada. Estar só é visto com tristeza e temor, como algo ruim e reprovável. A simples possibilidade de ficar sozinho provoca em algumas pessoas um sentimento de vazio, vácuo, ausência. Em oposição a dimensão virtual das relações humanas, a solidão é uma das extensões da existência, um desafio que nem sempre é fácil enfrentar: encontrar a si mesmo. A solidão, a meu ver, é simplesmente, estar consigo mesmo, conhecer a si mesmo. É, em si, um exercício de maiêutica. Conhecer a suas potencialidades e limitações, defeitos e qualidades.

Ficar ao largo, parcialmente, da loucura cotidiana que nos imputa a sociedade do capital. É, em parte, refugiar-se na torre de marfim que existe em nós, em nossa psique, que deve ser descoberta, consertada, e visitada de vez em quando, ela não precisa ser esquecida, porém, ao mesmo tempo, ser superestimada. É a proteção em si mesmo de modo efêmero, que necessita ser periódica. É aprender a viver sozinho, aprender a viver em um, condição fundamental, para viver em dois, e premissa sine qua non da vida em sociedade. O que me dizes a respeito da solidão, Camus?

Liberdade. Aquela dimensão da condição humana que é quase impossível de definir por conta das miríades de explicações, cogitações, ponderações e conceitos, mas que todos os humanos, independente de qualquer condicionamento social, cultural ou econômico, conseguem sentir, saber o que é, o que significa, o que almeja sob o pavilhão da Liberdade. Contudo, como bem sabes, sábio Camus, esta sublime idéia, que vem encapando os sonhos humanos a milhares de anos, é também utilizado para aprisionar e alienar, enganar e usurpar, dominar, resignar. Enfim, para fundamentar o status no qual vive o mundo ocidental da garantia irrestrita da liberdade de acumular, explorar, enriquecer à custa de lançar por terra na mais indigna e abominável miséria, imensos contingentes de população humana.

É a economia de livre mercado. É a democracia liberal-representativa. A garantia tão somente das liberdades e direitos individuais. É como se os desiguais tivessem a mesma liberdade e condições iguais de competição na arena do mercado, orquestrados pela sua mão invisível. Essa falácia construída no século das luzes para solapar o Cetro, serviu de forma legítima, para não dizer, descarada, para engordar as ricas panças da burguesia internacional, e acumular a maioria das riquezas do planeta nas mãos de meia-dúzia de especuladores, vulgo: investidores.

Nesse sentido, caro Camus, sou quixotescamente romântico quando considero a liberdade como a concretização do projeto iluminista da perfectibilidade humana – mesmo que ela tenha se degenerado nas mãos dos senhores do status quo em um liberalismo cínico e usurpador. A possibilidade de criar uma ordem das coisas na qual todos os homens possam desenvolver seus potenciais em comunhão com outros homens, ultrapassando, assim, o reino da necessidade para o reino da liberdade. Será isso, possível, amigo Camus?

Desigualdade. Camus, meu caro, apenas não consigo julgar natural, ou uma fatalidade qualquer, ver uma pessoa passar fome. Não consigo naturalizar a pobreza. Ver pessoas vivendo de salário mínimo. Uma minoria desfrutar com riqueza de desperdício o que é produzido pela imensa maioria. Ver em uma profusão quase infinita vidas serem dilaceradas pela falta de proteína, vitaminas, sais minerais, uma deficitária dieta de calorias, gastando suas últimas energias na esperança assentada em um genuflexório orando. A alienação advinda do analfabetismo, nos poucos anos de estudo, do não saber o que se está lendo, ou fazer contas, acreditar piamente no que o padre diz, no que o pastor diz, no que o prefeito diz, no que o deputado diz, o empresário diz, o senador diz, o juiz diz, o presidente diz, como se fosse a encarnação da vontade divina. A desigualdade, caro Camus, faz com que a gente simples não conheça a força adormecida em suas mãos e pés calejados pelo labor. Qual seria a solução, Camus?

Vale, realmente, a penar viver tudo isso? Não sei, Camus. Contudo, obrigado por me ouvir. Muito prazer, chamo-me Violante.

(Felipov)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Florbela






Vou me entorpecer bebendo vinho
Eu sigo só o meu caminho

(Bebendo vinho – Ira!)



Rabugenta, chata, sensível, chorona, altiva, indignada. Florbela é como meus amigos me chamam. Poucos amigos. Meu nome nos registros oficiais de identificação do Estado é Flora Joana Moraes. Gosto que me chamem de Florbela, é uma das minhas poetisas favoritas. Além de achar sonoramente encantador, passa a idéia de tranqüilidade, ingenuidade, beleza. Bebo um gole de vinho tinto. Sempre sinto o cheiro, antes de cada gole, é quase uma mania, neurose, sei lá. Aprecio do cheiro de vinho, eu tenho uma fixação por cheiros. Ele me seduz. Dou generosas goladas, que, às vezes, ou sempre, não sei bem, meu estado de consciência alterado não me deixa fazer um julgamento correto, mancha quase todas as minhas roupas. As minhas parcas e esfarrapadas roupas de pessoa de poucos rendimentos que compra retalhos para cobrir suas vergonhas em brechós e liquidações nos comércios fétidos e inóspitos, localizados nas periferias.  Bebo apenas vinho. Fumo cachimbo. Tabaco tem que ser natural, tenho que sentir seu cheiro adocicado, negro, meio amarronzado, destrinchá-lo, colocar pequenos punhados no cachimbo, tudo feito com destreza e técnica, o trabalho manual me deixa feliz. Sinto o gosto das uvas fermentadas que aliviam as minhas dores. Muitas dores. Vinte e oito primaveras mal vividas. Tenho uma memória péssima. Um esquecimento patológico. Na verdade, sou muito seletiva com as minhas recordações. Sempre retenho aquelas que mais me provocam sofrimento, dor, angústia. Órfã, herdei a tragédia do seio familiar. Meu pai, um bêbado, filho da puta, vagabundo, que sobrevivia da jogatina, pequenos roubos, trapaças. Minha mãe, uma mulher trabalhadora, fez a quarta série, mal sabia ler e escrever, ela trabalhava dia e noite, para me criar, era filha única. Uma família que sobrevivia com um salário mínimo, ou menos.  Sempre se preocupou com a minha educação. Tinha um cuidado excessivo comigo, tinha medo que abusassem de mim, sabia o meio social no qual vivíamos de profusa violência. Num dia de chuva, tinha quinze anos, chego em casa, depois de um dia cansativo na escola. Meu pai estava espancando a minha mãe. Ela estava desfalecida, quase morta, provavelmente morta, sangue, hematomas por todo o corpo, nariz quebrado, mandíbula deslocada, olho roxo. Quando vi isso, fiquei cega de ódio. Fui até a cozinha, não emite nenhum som, peguei a maior faca e gritei: “Bastardo! Filho da Puta!”. E quando ele me olha, surpreso pelos xingamentos, com olhar sanguíneo pela insolência, enfio a fala na altura do pescoço. Mais um golpe entre as costelas. Nunca se senti mais viva do que naquele momento, quando senti a lâmina afiada da faca fazendo justiça, destrinchando ossos, músculos e sangue daquele ser perverso que apenas merecia a morte. A morte de sua própria carne. Depois deste dia, fui morar sozinha, no cubículo que hoje chamo de lar, no qual estou deitada, bebendo e fumando direto há três dias. Resignada. Consciência pesada. Preguiça. Estou na décima garrafa de vinho de baixa qualidade, baratos, brasileiros. Matei meu namorado anteontem. Matei ele e a vadia que estavam fodendo em cima da minha cama. Ele estava comendo o cu dela, no momento em que chego em casa, depois de um dia cansativo de trabalho, trabalho como recepcionista em um escritório de advocacia no centro. Depois que fui morar só, sempre tive uma arma guardada na minha gaveta de calcinha por uma questão de segurança. Não fiz nenhum alarde. Calmamente, pedia apenas que se vestissem e saíssem. Silêncio. Seis tiros. Descarreguei a arma naqueles filhos da puta. Pedi imediatamente para o Ninja, o traficante do bairro, que sempre foi meu chapa, para que limpasse o local e desovasse os presuntos. Expliquei a razão: manutenção da honra. Ele disse: “Não tem treta. Mana, és da firma. Pode contar comigo”. Ele sempre foi a fim de me comer mesmo, liberava às vezes, mas amava aquele filho da puta que estava comendo o cu daquela puta, daquela vadia na minha cama. A culpa estava mortificando-me. A consciência da culpa estava me matando. As cenas, os fragmentos, as imagens das mortes que protagonizei vinham em minha mente com precisão cinematográfica. Fui educada sobre o prisma moral cristão. Todo o pecado tem seu castigo. Daí, a razão da minha culpa. Contudo, a vida, a vida concreta que vivia nas ruas, nas relações humanas, no trabalho, na família, me fez relativizar aquele padrão moral. A vida é muito mais complicada e complexa para ser limitada a idéia de pecado ou graça. A morte é a única realidade sólida que sempre lidei. Eu tinha algum amor por aquelas pessoas que matei, o sangue que derramei. Todavia, o amor pela minha mãe, e meu amor-próprio falaram mais alto, é algo quase instintivo, instinto de sobrevivência. O lado animalesco tomando as rédeas das ações conscientes. A pulsão de morte. Estou com fome. Preguiça. Cheiro, e mais um gole de vinho. Uma tragada, a fumaça sobe com uma nuvem. O gosto do tabaco e vinho na minha língua acalentam a minha dor. O vinho e o tabaco estão acabando. Preguiça. Merda! Vou ter que sair na rua. Merda! Mil vezes merda!

 (Felipov)