segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Florbela






Vou me entorpecer bebendo vinho
Eu sigo só o meu caminho

(Bebendo vinho – Ira!)



Rabugenta, chata, sensível, chorona, altiva, indignada. Florbela é como meus amigos me chamam. Poucos amigos. Meu nome nos registros oficiais de identificação do Estado é Flora Joana Moraes. Gosto que me chamem de Florbela, é uma das minhas poetisas favoritas. Além de achar sonoramente encantador, passa a idéia de tranqüilidade, ingenuidade, beleza. Bebo um gole de vinho tinto. Sempre sinto o cheiro, antes de cada gole, é quase uma mania, neurose, sei lá. Aprecio do cheiro de vinho, eu tenho uma fixação por cheiros. Ele me seduz. Dou generosas goladas, que, às vezes, ou sempre, não sei bem, meu estado de consciência alterado não me deixa fazer um julgamento correto, mancha quase todas as minhas roupas. As minhas parcas e esfarrapadas roupas de pessoa de poucos rendimentos que compra retalhos para cobrir suas vergonhas em brechós e liquidações nos comércios fétidos e inóspitos, localizados nas periferias.  Bebo apenas vinho. Fumo cachimbo. Tabaco tem que ser natural, tenho que sentir seu cheiro adocicado, negro, meio amarronzado, destrinchá-lo, colocar pequenos punhados no cachimbo, tudo feito com destreza e técnica, o trabalho manual me deixa feliz. Sinto o gosto das uvas fermentadas que aliviam as minhas dores. Muitas dores. Vinte e oito primaveras mal vividas. Tenho uma memória péssima. Um esquecimento patológico. Na verdade, sou muito seletiva com as minhas recordações. Sempre retenho aquelas que mais me provocam sofrimento, dor, angústia. Órfã, herdei a tragédia do seio familiar. Meu pai, um bêbado, filho da puta, vagabundo, que sobrevivia da jogatina, pequenos roubos, trapaças. Minha mãe, uma mulher trabalhadora, fez a quarta série, mal sabia ler e escrever, ela trabalhava dia e noite, para me criar, era filha única. Uma família que sobrevivia com um salário mínimo, ou menos.  Sempre se preocupou com a minha educação. Tinha um cuidado excessivo comigo, tinha medo que abusassem de mim, sabia o meio social no qual vivíamos de profusa violência. Num dia de chuva, tinha quinze anos, chego em casa, depois de um dia cansativo na escola. Meu pai estava espancando a minha mãe. Ela estava desfalecida, quase morta, provavelmente morta, sangue, hematomas por todo o corpo, nariz quebrado, mandíbula deslocada, olho roxo. Quando vi isso, fiquei cega de ódio. Fui até a cozinha, não emite nenhum som, peguei a maior faca e gritei: “Bastardo! Filho da Puta!”. E quando ele me olha, surpreso pelos xingamentos, com olhar sanguíneo pela insolência, enfio a fala na altura do pescoço. Mais um golpe entre as costelas. Nunca se senti mais viva do que naquele momento, quando senti a lâmina afiada da faca fazendo justiça, destrinchando ossos, músculos e sangue daquele ser perverso que apenas merecia a morte. A morte de sua própria carne. Depois deste dia, fui morar sozinha, no cubículo que hoje chamo de lar, no qual estou deitada, bebendo e fumando direto há três dias. Resignada. Consciência pesada. Preguiça. Estou na décima garrafa de vinho de baixa qualidade, baratos, brasileiros. Matei meu namorado anteontem. Matei ele e a vadia que estavam fodendo em cima da minha cama. Ele estava comendo o cu dela, no momento em que chego em casa, depois de um dia cansativo de trabalho, trabalho como recepcionista em um escritório de advocacia no centro. Depois que fui morar só, sempre tive uma arma guardada na minha gaveta de calcinha por uma questão de segurança. Não fiz nenhum alarde. Calmamente, pedia apenas que se vestissem e saíssem. Silêncio. Seis tiros. Descarreguei a arma naqueles filhos da puta. Pedi imediatamente para o Ninja, o traficante do bairro, que sempre foi meu chapa, para que limpasse o local e desovasse os presuntos. Expliquei a razão: manutenção da honra. Ele disse: “Não tem treta. Mana, és da firma. Pode contar comigo”. Ele sempre foi a fim de me comer mesmo, liberava às vezes, mas amava aquele filho da puta que estava comendo o cu daquela puta, daquela vadia na minha cama. A culpa estava mortificando-me. A consciência da culpa estava me matando. As cenas, os fragmentos, as imagens das mortes que protagonizei vinham em minha mente com precisão cinematográfica. Fui educada sobre o prisma moral cristão. Todo o pecado tem seu castigo. Daí, a razão da minha culpa. Contudo, a vida, a vida concreta que vivia nas ruas, nas relações humanas, no trabalho, na família, me fez relativizar aquele padrão moral. A vida é muito mais complicada e complexa para ser limitada a idéia de pecado ou graça. A morte é a única realidade sólida que sempre lidei. Eu tinha algum amor por aquelas pessoas que matei, o sangue que derramei. Todavia, o amor pela minha mãe, e meu amor-próprio falaram mais alto, é algo quase instintivo, instinto de sobrevivência. O lado animalesco tomando as rédeas das ações conscientes. A pulsão de morte. Estou com fome. Preguiça. Cheiro, e mais um gole de vinho. Uma tragada, a fumaça sobe com uma nuvem. O gosto do tabaco e vinho na minha língua acalentam a minha dor. O vinho e o tabaco estão acabando. Preguiça. Merda! Vou ter que sair na rua. Merda! Mil vezes merda!

 (Felipov)

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