Cinema Coliseum. Um dos primeiros da cidade, e derradeiro que ainda persiste em nos lembrar dos bons tempos. O velho cinema de rua, do tipo “Cine Paradiso”, abrigado em um prédio antigo, que fora construído em função daquela sala de projeção, nos anos finais da Belle Époque. Paredes encardidas, com a tinta descascando, as extremidades corroídas pelo limo e umidade, testemunham um tempo de glória que passou. Resquícios dos fumos que morreram.
A mais aterrorizante visão do abandono. Cinemas antigos, quase extintos, que observei no seu auge, no franco declínio, e, agora, na quase extinção. Certamente, esse deve ser um dos últimos cinemas de rua de minha cidade natal. Dos outros tantos que povoaram a minha infeliz infância e venturosa juventude, um a um foram tombando, sendo substituídos paulatinamente por estacionamentos, boates, lojas de departamentos, igrejas.
O simples ato de ir ao cinema sempre foi um dos melhores momentos da minha vida. É o meu lugar no mundo. Sempre que podia, ia com duas razões manifestas: ver a reação das pessoas, e, é claro, assistir aos filmes. Depois de velho, tenho oitenta e cinco anos, eu já havia assistido todas as películas do acervo do velho cinema. Entretanto, continuava freqüentando-o, por que apreciava o espaço e de observar as reações das pessoas. A senilidade dava-me a impunidade, na verdade, concedia-me o anonimato necessário para desempenhar minhas observações dos transeuntes que freqüentavam aquela sala de projeção. Ninguém se importa com os velhos, eles passam despercebidos entre a multidão. Ninguém se importa com a velhice, todos vivem como se a juventude fosse eterna. Ledo engano, que é revelado muito tarde. Infelizmente.
Na galeria de entrada do cinema, havia um café, no qual sentava-me todas as tardes, para apreciar as minhas xícaras de café intercaladas por tragadas de cigarro, vendo a fila que se formava para a sessão das dezoito horas. Todas as tardes, religiosamente, caso fizesse chuva ou sol, exceto quando estava doente e nas festividades de fim de ano. Meu objetivo era identificar no comportamento das pessoas as razões subjacentes que as motivavam ir ao cinema. Sobretudo, aquele cinema antigo, velho, abandonado, esquecido. Almejava ver a vida em movimento naquele meu lugar no mundo.
Via aqueles pequenos infantes vivendo o período mais feliz de suas existências, acompanhados da presença diligentes de seus pais, elas brincavam de pega-pega ou correriam na frente do cinema, enquanto os progenitores conversavam distraidamente sobre questões cotidianas, contas não pagas, a notícia do jornal, a fofoca da vizinha, e permaneciam repreendendo as peraltices das crianças de longe, de forma displicente, com pouca vontade. Outras crianças comendo pipoca, quietas, caladas, cabisbaixas esperando sua vez na fila, e observando com um olhar triste as outras que corriam alegremente, fazendo barulho e estardalhaço. Elas sabiam que não poderiam fazer aquilo em nenhuma hipótese fora de casa, ou mesmo em casa, eram filhos de pais severos e rígidos. Eu tinha ciência, consternando-me com o que via, porque fui filho de pais da mesma estirpe. Infelizes são aqueles humanos que tiveram pais severos, uma infância austera e séria, pois foram usurpados no momento mais feliz da vida: o da ausência das vicissitudes da consciência e das responsabilidades da vida adulta. Infelizes pequenos como eu fui um dia.
Os casais de velhos felizes por terem saído de casa, um ajudando o outro, muletas um do outro por uma vida inteira, agüentando-se mutuamente, achando que isso é amor. Uma vida agüentando absurdos, desaforos, traições, brigas, ciúmes. Uma vida justificada pelo amor. Tudo o que é feito em nome do amor é legítimo, válido, correto. Os silêncios das bocas cansadas de mentir juras de amor. O peito vazio contendo a inércia da existência de quem perdeu a solidão. O corpo fadigado, moribundo de quem é cônscio da vida que viveu, da vida que perdeu. O casal feliz que se reduziu a dois por não ter mais nada e ninguém. Apenas, a tênue imagem de duas almas gêmeas que o amor uniu e destruiu.
A juventude entusiasmada, esperançosa, triunfante, amante de si mesmo, soberba e imprudente, como se não houvesse amanhã que viesse ceifar suas efêmeras vidas. Essa juventude estampava nos rostos dos jovens que eu na via fila. Parece que vivem sem razão em função da paixão. Da forma como se vestem, falam e se portam uns com os outros parece que o senso de ridículo se extinguiu junto com a vergonha na cara. São cada vez mais perspicazes, instruídos, munidos de informações como nenhuma outra geração que habitou a face deste planeta. Faltando-lhes a inteligência necessária para discernirem essa massa de informação em julgamentos plausíveis, razoáveis e coerentes com o seu próprio tempo. Geração que se orgulha de ser estúpida, burra, insensata, como se seus atos fossem imunes a punição, louvam a impunidade da vida sem princípios, cedo ou tarde, a natureza cobra disfarçada de velhice. Narcisos dos tempos atuais, idolatram a si mesmos, e a seu modo de vida blasé, não sabendo que reside em tal atitude a raiz de sua futura ruína. O fim justo para uma vida injustificada. O fim.
Observava a cada individuo com atenção, cada vida com atenção. Considero que o sentido da vida está na observação da própria vida. Em reparar a vida a sua volta, alhures. Na pessoa ao seu lado no ônibus, no colega sentado perto de vocês na sala de aula ou no trabalho, nas pessoas que andam nas ruas, que freqüentam igrejas, bares, puteiros, auto-escolas, shopping centers, livrarias, sebos, repartições públicas, que acreditam em Deus ou não, que fumam, que fodem, que matam, que sobrevivem, que mentem, que sofrem, que choram, que riem, que cagam, que se masturbam, que lêem auto-ajuda, que lêem a Bíblia, que lêem Bukowski, que trabalham, que roubam, que são indiferentes, aquelas que se importam, as que amam, as que odeiam, aquela sua ex-namorada ou ex-namorado, sua mãe ou seu pai, o seu patrão, no banqueiro. Ver o outro como uma dimensão de si mesmo. Sou partícipe desta vida em movimento. Participo de toda esta merda que reparo. A vida que se projeta cotidianamente nas filas daquele velho cinema.
(Felipov)
3 comentários:
"A senilidade dava-me a impunidade, na verdade, concedia-me o anonimato necessário para desempenhar minhas observações dos transeuntes que freqüentavam aquela sala de projeção. "
Ah, o doce prazer de não ser levado a sério. Somente os loucos, os tolos, os ignorantes conhecem essa liberdade. Como é maravilhoso dizer o que tem de ser dito sem ser contido por regras sociais artificiais! Como é libertador não ter a correia do contrato social, ser um ser "exterior" a sociedade!
Acho que um poeta de verdade não se pode dar o luxo de ser um "incluso".
Acho que tenho problemas com os finais dos teus textos (ou eles têm problemas comigo, não sei u.u). Gostei do caráter observador do narrador - o que é muito comum quando escreves e nos narradores que crias. Apreciei particularmente o sexto parágrafo, sobre os velhos e o amor. Gostei muito das reflexões ^^
Porém, não me agradou o final (pode me chamar de chata mesmo :P), porque ele simplesmente diz ao leitor o que é e não o contrário, o qual particularmente eu prefiro, que é deixar o próprio leitor chegar a essas conclusões. Chatice minha ou não, é isso.
(:
Eu ando achando os teus textos cada vez mais belos (isto é, melhores na estética) e profundos, na reflexão. Sempre que os leio, e me lembro de alguns anos atrás, é espantoso. A alegria que partilho pelo teu desenvolvimento como escritor - essa felicidade estranha, advinda de um acontecimento alheio aos fatos ou consequências da minha própria vida - certamente entra naquela meia duzia de sentimentos impossíveis de explicar e bem difíceis de entender, mas que deve representar, com sinceridade despretenciosa, o que se costuma chamar vulgarmente de amizade. Parabéns, amigo.
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