sábado, 7 de janeiro de 2012

Os ventos do Marajó



As deslumbrantes paragens do Marajó são um dos motivos pelos quais tenho orgulho da terra onde nasci. Beleza natural singular, com algumas partes ainda rústicas pela pouco ou nenhum contato humano, estreitas estradas viciais que dão caminho a profusos e longínquas localidades esquecidas entre as periódicas nuvens de poeira dos carros particulares, caminhões e cavalos de montaria que por ali tem passagem, os campos alagados no inverno, no qual os búfalos habitam em abundância, ao lado das diversas aves, as miríades de insetos e cavalos selvagens que compõem essa paisagem, que ficam secos e quase sem formosura estética aos olhos do visitante desavisado no verão, o sol forte e calor intenso que enegrece a pele de seus habitantes, que me deixou avermelhado, as praias de areia alva e água salobra, com os telúricos e diáfanos ventos marajoaras.

Os inconfundíveis ventos do Marajó. Passei a virada do ano em nestas terras na companhia de dois amigos, no curto recesso que tive do trabalho por ocasião das festividades de fim de ano – ficamos no sítio de um amigo destes meus amigos. Havia visitado aquele formoso chão em outra oportunidade e com outros amigos, tal experiência deixou-me insofismáveis marcas em minhas lembranças e foi o que me determinou a voltar ao arquipélago – esta viagem me legou profunda saudade. Aquele tempo de turbulentas relações, de crescimento pessoal, descoberta das capacidades individuais, o aceleramento do mal-estar social, em uma palavra: a revelação da autodeterminação individual própria da vida independente. Nesta ocasião, junto aquelas prestimosas companhias, que, por ora, seguiram seus difusos caminhos, encontrando-se afastados de mim em presença, no entanto, com toda a certeza, junto a mim, em pensamento e sentimento, lavraram sua marca na minha história tão parca, embora bem-aventurada existência. Os ventos do Marajó haviam indelevelmente me marcado.

Primeiros sufocos no porto, característicos daqueles parauaras que deixam tudo para cima da hora – salvo engano, suponho que este comportamento seja o modo dos brasileiros serem no mundo. Ou não. Quem sabe. Depois de alguns ensinamentos inerentes a truculência da educação básica dos trabalhadores portuários sobre as cores da passagem e a minha percepção da péssima educação primária que tive, fui convencido com uma insuperável demonstração didática me fez ver a cor azul da minha passagem e que ela tinha embarque marcado para as sete da manhã, o relógio marcava seis horas, esperamos uma hora em pé encerrando fileira com outras dezenas de pessoas, sob o calor e o tédio da espera naquela situação própria dos lugares subdesenvolvidos: pessoas aglomeradas, bagagens amontoadas, tomando café preto com pão amanteigado, vendedores oferecendo água, cerveja e café. Conseguimos, enfim, embarcar, obviamente em um navio lotado.

Os três, sentados na proa, ela tocando debilmente sua escaleta, ele, manejando habilidosamente sua viola, eu, que sou um pária musical, vinha batendo palma, quando era conveniente ao ritmo das músicas tocadas: os sambas e choros dos tempos pretéritos. Canções que sempre nos disseram muito, e nos davam consciência do nosso deslocamento existencial. A viagem em si foi rápida em suas quatro horas de duração. Atracamos no Camará, porto de chegada, com o igual sufoco do embarque, aquelas dezenas de pessoas se empurrando para subir na íngreme escada de acesso ao piso superior do trapiche, quase que apostando infantilmente quem chegaria primeiro, como se houvesse algum prêmio por tal infortúnio: o simples espetáculo da irracionalidade humana – dentre os milhares que temos mundo a fora. Ficamos contemplando aquilo, atônitos, nos sentimos alheios a humanidade que se debatia sem qualquer razão aparente, tal qual bois a caminho da imolação. Veio-me apenas àquela triste impressão de se sentir estrangeiro em sua própria terra, em meio a seus conterrâneos. Até que avistamos o primo do amigo em que ficaríamos abrigados em terras marajoaras.

Os ventos telúricos do Marajó embaraçaram os meus cabelos. Conversas amistosas sobre as vantagens e o bem-estar que provocavam em nossos anfitriões, o amigo do meu amigo e seu tio, ao visitar o Marajó, embalaram a viagem até a fazendinha. Lá chegando, conhecemos os demais familiares: sua mãe e avó. Pessoas simples e receptivas, nos sentimos em casa. A avó, pessoa ativa e falante, diligente e atenciosa, desfrutava das qualidades inerentes da terceira idade: viver sem pretensões e com franca sinceridade. De forma similar as crianças, suspeito que a velhice seja uma infância consciente. A mãe é mais diretiva e pragmática, dando o tom da dinâmica das relações na casa, na verdade, é ela quem administra tudo, faz com que as coisas aconteçam, demonstrando que as mulheres não estão mais restritas as preocupações unicamente domésticas que lhes eram reservadas, ou melhor, confinadas e amordaçadas na cozinha, no tempo de sua mãe. Os tempos são outros – testemunhando algum avanço da humanidade.  

O sítio ficava em uma localidade próxima de Cachoeira do Arari. Um tanto afastada, os dias passavam-se monótonos, vagarosos, lentos, ao ritmo da natureza. Era disso que precisávamos: viver o tempo em sua sucessão natural, sentindo o cheiro dos campos, que, por vezes, eram marcados pelos odores do chiqueiro vizinho e pelos restos de merda pedregosa dos cavalos. Tudo isso me causou profunda impressão. Tudo isso era muito subversivo. Alguém, como eu, que vinha da cidade, com o tempo demarcado pelo trabalho, a família, a boêmia, com raro tempo para dormir e teimosamente encontrado para ler, aquilo parecia um paraíso terreal. Fiquei estupefato em ver que o time is money não contaminou aquelas vidas, que parecem levar suas existências similar à tempos pré-capitalistas, mesmo que inseridos na sociedade do capital com suas televisões ligadas na novela das oito, os radinhos de pilha ouvindo pontualmente “A voz do Brasil”.

Contudo, pude vislumbrar o real valor do ócio e da monotonia. Claro que meus amigos contribuíram bastante nesta percepção. A solidão tem seu tempo e espaço de manifestação. A rigor, a companhia faz toda a diferença. Como foi nesse caso. Dormimos o dia inteiro, desfrutando dos ventos do Marajó, ora refrescantes, ora abrasadores, bem de acordo com o verão destas terras, ou mais precisamente, da transição entre a seca e as chuvas. Estávamos no período de transição, e, por isso, os indomáveis ventos formadores das chuvas. Conversamos fartamente, em diálogo franco, daqueles em que todos se modificam de alguma forma, ninguém fica indiferente, reforçando os laços de amizade. Ouvimos muitas músicas, muitos sambas, muitos choros, o melhor da música brasileira, evocando o melhor da nossa cultura em versos e melodias, eles tocando em meio dos campos abertos, em cima de esteiras de palha, à luz de lamparina, o frescor da noite, aos goles de cachaça de Jambu.

Enfim, estas foram as minhas impressões daqueles dias passados, remota e recentemente, ainda encerrados em minha memória, acalentadas por aqueles indomáveis ventos do Marajó, fincou-me no peito a impávida certeza de ser um segundo lar.

(Felipov)

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