terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Eu-etílico



Uma pessoa que ainda em vida não experimentou o deleitoso estado de consciência alterado que a substância etílica, seja fermentada, seja destilada, proporciona aos seres bebentes, não é digno de dizer que vive. Sim, é isso mesmo, eu defendo conscientemente o ato de ficar ébrio.
Antes de dedicar algumas curtas linhas sobre a questão, uma ressalva faz-se necessária. Não estou escrevendo a favor da porralouquice de ficar bêbado. Leia-se: beber e dirigir, beber e brigar, beber e fazer-qualquer-tipo-de-merda. Por esta razão, faço questão de utilizar o termo “ébrio”. Estou tratando do lado poético da coisa.
Acredito que todos precisam, ao menos, uma vez na vida, experimentar esta sensação, fazendo seus julgamentos necessários, no caso: torna-se um abstêmio, ou adentrar a imensa fileira dos ébrios. Enfim, é uma questão de escolha. Ou não, gritariam os Alcoólatras Anônimos. Mas isto aqui não é auto-ajuda, então desconsideremos tal objeção. Não preciso discorrer aqui sobre as vantagens e desvantagens do uso de substâncias etílicas. Cada um sabe o que faz. Ou deveria.
Quero apenas ressaltar que seu consumo, por sua vez, o estado de consciência alterado que provoca, despertando da psique das pessoas o seu eu-etílico inerente, é uma experiência existencial que todos precisam viver. Acredito que todos necessitam dar vazão, mesmo que em uma única oportunidade, para que seu eu-etílico venha à tona, tenha vida, transformando as ações consciente do sujeito sóbrio, correto, responsável, bem alinhado no seu avesso inexorável.
Aquela inconfundível sensação de ver o mundo, as coisas, as pessoas um pouco mais lento, em ritmo retardado, parecido com câmera lenta, o embaralhar da fala que se desarticula, os sons que ficam baixos, amenos, quase inaudíveis, necessitando, em uma conversa qualquer, do movimento de aproximar as orelhas da fonte de ruído ou som, perguntando “Hããm, o que você disse?”, sem, claro está, de esquecer, o desafiante ato de levantar-se para ir ao mictório, os homens, e, ao toillete, as mulheres, no qual cada passo é dado em um envolvente movimento de cercar galinha, leve, malevolente, desajeitado, perambulante.
Os comportamentos clássicos da efusividade extrema, da tristeza mórbida, o debate filosófico de mesa de bar, os excessos de raiva, as demasiadas demonstrações de carinho. A mesa de bar é o espaço mais confortável para se recostar na sonolência, salvo aqueles que são mais indiferentes as pressões da moral social e reprovação alheia, deitando desaforadamente em qualquer sarjeta mais limpa e atraente ao sono reparador.
Contudo, há dois algozes de tal deleite, faces da mesma moeda: a ressaca física e a ressaca moral. A abjeta náusea etílica é dimensão física do intrínseco sentimento de culpa advindo da ação do eu-etílico. Admitamos, às vezes, eu disse, às vezes, o eu-etílico ultrapassa as barreiras da tacanha moral estabelecida, transformando-se em alvo do escárnio dos amigos e transeuntes em geral. O dia seguinte é sempre o mais difícil. São as ânsias de vômito intercaladas pelos flashs das lembranças do que aconteceu.
Claro que ninguém recorda de tudo, só depois, os amigos filhos da puta, que vem com a história totalmente editada por hipérboles próprias da arte de sacanear. A encarnação é tão forte, a vergonha é tão intensa, a ressaca fode tanto com a cabeça quanto com o estômago, que todos, eu digo, todos, já juraram, por tudo que é mais sagrado, pelo seu amor próprio, em nome da honra, pelo bem de sua saúde, já fizeram promessas, não fico surpreso se tiver um santo especialista nestas causas, enfim, se resguardaram de todas as formas possíveis e infindáveis da imaginação humana, proferindo: eu nunca mais vou beber. Ledo engano. Todo mundo na vida já disse isso.
Todo mundo tem uma história. Um amor perdido. Uma grande conquista. O nascimento de um filho. Carnaval. Páscoa. Natal. O feriado de alguma nossa senhora de causa impossível. Corpus Christi. Dia das crianças. Não importa o motivo, nem a ocasião. Tudo é motivo. Culturas que proíbem a ingestão de substâncias etílicas, devem ser sociedades muito tristes. Eu tenho a impressão que pessoas que bebem são muito mais felizes. No meu caso, eu sou um triste e infeliz, que nas horas vagas, o meu eu-etílico vagueia pelas ruas da boemia, disfarçando resignação com alegria. Até o último copo. Então, eu encontro com o seu eu-etílico por aí, caro leitor. Um brinde. Tim-tim.
(Felipov)

1 comentários:

Anônimo disse...

Saudades das nossas brejas alentadoras de fim de tarde, depois de fatídicos dias de subjulgação intelectual e moral, em um botequinho qualquer perto de casa. Ah... ^^

Bem-aventurados os que bebem, pois eles serão lembrados.
;)

Postar um comentário