sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Romanos 12:19





Lourdes despertava assustada e inquieta, ao cacarejar do galo, todos os dias de sua miserável vida. Banhada de suor no seu barraco quente e úmido, com aquela dor de cabeça antecipada e a vontade de dormir eternamente. Antes de sair, arrumava, com demasiado zelo, a casa e o almoço. O picadinho com batatas, muito cheiro-verde e nervo de carne de terceira, a melhor refeição da semana, que geralmente restringia-se a conservas, ovo e salsicha, era cozinhado com muito esmero e carinho. Dormia pouco – antes de repousar, sempre lia o Salmo 91 e fazia suas orações. O cansaço era uma dura herança ancestral, um fardo intolerável que a sua condição feminina suportava, como se fosse uma mártir em uma multidão de mártires desvalidos, uma horda de vencidos, aqueles ombros que carregam a ordem social, encerram fileiras do mesmo lugar no mundo. Mais uma segunda-feira, mais uma enfastiosa semana, amanhecem no Tapanã.

Ouvem a mesma música, compram no mesmo supermercado a crédito, bebem a mesma cerveja, fumam o mesmo cigarro, fodem da mesma forma, todos tem a mesma vontade de ganhar na loteria, querem ser celebridades da televisão, sobrevivem sob o mesmo sol que tosta a pele, inalam a mesma poluição que apodrecem os seus pulmões, agradecendo a Deus pelo salário mínimo, frequentam a igreja todos os domingos, fazem suas meia dúzia de rezas, pagam seu dízimo mensal, morrem nas horrendas filas de hospital; esta vida feliz tem nas batidas, no treme-treme, na dança frenética do tecnobrega, a trilha sonora de amor e de morte.

O almoço era única alimentação do dia dos filhos e do marido desempregado. Há seis meses é do fruto do seu suor diário que se sustenta a casa. O marido não podia mais trabalhar como pedreiro, vitimado por um derrame. Ele aprendeu com destreza os penosos afazeres domésticos: cozinhava bem, lavava mais ou menos, passava mal e limpava razoavelmente. Sentia-se um pouco humilhado por não fazer seu papel de macho e prover o sustento. Resignado, apoiava a mulher em tudo. Deixou de beber, de fumar e de madrugar. Abandonou as amizades de mesa de bar e do samba.

Pontualmente, Lourdes embarcava no ônibus das quatro horas da amanhã. Depois, o das sete horas. Chegava sempre às nove horas ao trabalho.

A casa de uma de suas inúmeras patroas ficava no centro da cidade.

As pernas cansadas pela artrite, as costas doendo pela hérnia de disco, um pouco de torcicolo, no mesmo velho ônibus desconfortável e lotado, na companhia de dezenas de trabalhadores. Aquele odor acre de suor, poeira, fumaça e perfume barato formava uma massa gasosa que lhe provocava uma profunda náusea. Devido a uma toalhinha gasta, em farrapos, que embebia de perfume, livrava-se do suor e daquele odor, conseguindo aguentar a viagem até o fim. Ela agradecia a Deus por vir sentada. Isentava-se dos suplícios da corrida a pé. Calor, aperto, muita gente com o mesmo objetivo: sobreviver. Dava Glória a Deus e Aleluia toda vez que descia do ônibus. Mais uma viagem vencida. A vida era feita de pequenas batalhas, era necessário pelejar para alcançar a vitória – dizia seu o pastor nas pregações dominicais.

Dois quarteirões necessitavam ser vencidos a passadas ora rápidas, ora vagarosas de pernas velhas e enfastiadas para alcançar, como se fosse uma missão dos escolhidos, a primeira casa do dia. Passava pela mesma calçada, desalinhada, esburacada, entre chão de terra e concreto quebrado, com mato rasteiro denunciante do abandono, era seu caminho tranquilo. Cantando hinos da harpa cristã na sua mente fadigada, que apenas processava as funções vitais para mantê-la viva. Essa espécie de mantra cristão lhe trazia profundo alento. Ela estava em contato com Deus.

Contudo, nesta segunda-feira, chegou atrasada pela primeira vez naquele mês. O seu relógio, daqueles importados made in china, com prazo de validade, comprado no ver-o-peso à custa de uma boa pechincha, marcava dez horas da amanhã. Já ensaiava em sua cabeça a desculpa que ia dar, não teve muito trabalho, diria apenas a verdade: o trânsito. Ouviria a mesma resposta implacável de sua patroa: saia mais cedo, cumpra seu horário.

“Bom dia, dona Lourdes. Mais uma vez atrasada. Não vou mais tolerar isso. Eu faço o favor de te dar emprego e abusas da minha boa vontade. Toda vez é a mesma desculpa. ‘Trânsito, trânsito, trânsito’. Sabes que tens horário a cumprir, pensas que o mundo gira ao teu redor? E não me olhe com esses olhos de pobre coitada, a minha paciência se esgotou. Cansei da tua preguiça, sua favelada, morta de fome! Sua vagabunda que abusa da minha paciência e caridade! Não vou mais tolerar isso. Tu estás despedida! E não me peça referência e nem nada. Se qualquer pessoa vir me pedir referência, vou-te desindicar como preguiçosa e não cumpridora de horários, que vive dando desculpas e querendo tirar proveito da sua pobreza pra atrasar a vida dos outros. Cansei, não tenho mais tempo a perder com a sua insignificante pessoa e seus parcos e sofríveis serviços”.

A patroa de Lourdes vocifera isso aos berros ficando vermelha e com a boca seca. Seus olhos vidrados expressavam toda a histeria do seu corpo. A sua estirpe de mulher de classe média, na meia idade, professora universitária, nascida em berço de ouro e bem educada, luxuosamente maquiada, roupas de grife, cabelo bem cortado, unhas feitas, não justificava, nem quiçá explicava, aquele tipo de comportamento. Não era de bom tom tratar a criadagem assim. Lourdes ouviu a tudo calada e com o olhar altivo. Pensava: “Senhor me livra e me guarda debaixo do teu sangue, contra todo mal e contra todo perigo”. E disse de maneira amável, humilde e resignada:

“Desculpe, patroa. Desculpe o atraso. Não queria causar problemas. Espero que Deus entre em sua vida e a transforme em uma nova criatura em Cristo. Deus lhe abençoe, tu e a tua casa”.

A patroa olhava-a com um rosto desfigurado pelo asco e pela insolência daquela mulher que julgava ser um pobre diabo analfabeto que dependia de seus favores. Lourdes virou de costa, vagarosamente dirigindo-se para a porta, culpando-se pelo atraso, interrogando-se se havia feito alguma coisa errada em sua vida, se este fato era resultado de algum pecado, alguma maldição, algum provação de sua fé, algum castigo divino. Lágrimas escorriam sobre as maçãs ressecadas do seu rosto, que prontamente limpava – não gostava que a vissem chorar. Era frágil. Mas não uma pobre coitada. Seu pranto representava resignação e expiação. Deus tinha algo melhor para a sua serva – esta ideia domina seus pensamentos. Os planos divinos são mais altos e misteriosos que a sua limitada vontade humana – lhe reconfortava diante de mais uma derrota.

“O Senhor é meu pastor; nada me faltará” – acalmou-a, dando-lhe refrigério na alma.

Quando, subitamente, na fração de segundo própria das situações trágicas, um ataque fulminante do miocárdio acometeu o coração fumante de décadas e décadas de sua patroa. Ela tombou inerte no chão, com as duas mãos à altura do peito, lutando contra aquela dor mortal. Lourdes ouviu o barulho de algo caindo no chão. Virou-se e ficou olhando com um olhar sereno e impassível o sofrimento terminal da patroa. Ela lutou dez eternos minutos contra aquele dor. Seu corpo sem vida ficou estirado no chão. Um leve sorriso de felicidade e contentamento tomou conta do rosto de Lourdes, que imediatamente ligou para a ambulância, para a polícia, para os bombeiros, para quem fosse. Estavam somente as duas em casa. A ambulância chegou depois de meia hora.  

Por sua vez, o que lhe vinha a mente era apenas o tema da pregação do dia anterior, baseado no texto de Romanos 12:19, que diz:

“Não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas daí lugar à ira, porque está escrito: Minha é a vingança; eu recompensarei, diz o Senhor”.

“Glória a Deus e Aleluia!! Tu falaste com a tua serva! Tua é a vingança, Senhor! Tua é a recompensa!” – dominava os pensamentos de Lourdes.

Ela sentia a presença de Deus no seu coração.



terça-feira, 30 de julho de 2013

A conversa


I
(TESE)

“Preciso te ver”

“Quem é?”

“Sou eu. Sabes quem é”

“Como conseguiu meu número?”

“Achei que fosse o mesmo”

“Sou sempre previsível”

“Posso te ver?”

“Sim, por que não”

“Hoje. 18h. Ainda moras naquele apartamento?”

“Sim. Não pode ser 19h?”

“Tá bom, 19h”


II
(ANTÍTESE)


“Por que isso agora? Depois de três anos?”

“Precisava te ver”

“Para quê?”

“Por que sonhei contigo e senti a tua falta. Precisava saber o que isso significava. Então, pensei, nada melhor do que uma visita”

“Depois de três anos?”

“Não gostou?”

“Confesso que fiquei surpresa com a mensagem”

“Na verdade, eu precisava me testar”

“Como assim?”

“Primeiro, entender porque senti a tua falta. Depois de tanto tempo. Porque isso não aconteceu antes, só agora. Nada melhor, pensei, seria a tua presença física na minha frente e ver o que isso, o frente a frente, o olho no olho, me provocaria. Ver o teu corpo na minha frente, no teu apartamento, no qual vivemos vários momentos, e saber concretamente quais reações isso me provocaria. Ver a tua vida na minha frente e saber que tipo de repercussão isso teria na minha vida. Eu sei de todos os riscos que estou correndo aqui, sobretudo de trair a mim mesma, os meus sentimentos e a pessoa que amo. Contudo, eu precisava colocar à prova, tudo que considero ser honestidade, lealdade, fidelidade a mim mesmo e ao que sinto”

“E a que conclusão chegou?”

“Sem conclusão. Apenas sei que não vou transar contigo”

“(...)”

“Calma, não é esta vulgaridade que estás pensando. Aquela vulgaridade que faz parte de todos os animais humanos. No entanto, não é apenas isso. Vim testar princípios que me diferenciam destes animais. Vim, principalmente, testar o meu coração”

“Compreendo. Pelo visto, algumas coisas não mudam. Fiquei feliz ao receber a tua mensagem e uma esperança infeliz invadiu-me novamente”

“(...)”

“Eu pensei que as minhas preces tivessem sido atendidas”

“Preces? Não és religiosa”

“Não tens noção das modificações que fizestes no meu ser, no meu interior, no meu pensamento, no meu espírito, desde que nos separamos. Nem lembro mais os motivos de nos separarmos. Enfim, não importa. Nada importa quando foi pretérito imperfeito. Tenho a certeza somente do espaço vazio, tão longínquo, inóspito e gelado quanto a Sibéria, que deixaste no meu peito, no qual eu havia criado um pequeno vilarejo de uma casa só, com uma igreja sem Deus, sem autoridade, sem Estado, ao lado de campos, bosques e florestas pujantes e idílicos duma eterna primavera quando habitávamos tal qual um casal de mujiques e agora resistem ao pavoroso inverno. Me fizeste ver a vida sob outros pontos de vista. Duros, secos, áridos, concretos da realidade dos homens. Ao mesmo tempo, fui invadida com teu modo de sentir o mundo, o qual me encantou imediatamente, duro e doce, amargo e terno, desassossegado e contente, cômico e trágico, convencendo o meu juízo com teus argumentos, acalentando o meu coração entre os teus braços, beijos e carícias. Sabe, por muito tempo, amaldiçoei o dia que te conheci. Mas tenho certeza agora, neste momento, que desfiguro a alma na tua frente. Eu sei que foi o que me manteve viva até agora. Viva no sentido mais legítimo e genuíno e verdadeiro que a vida. A existência de uma pessoa que ainda não sucumbiu diante da vulgaridade do mundo. Eu conheci a vulgaridade, sei do que estou falando. Me livraste dela, sou totalmente grata, porém me ofereceste um remédio sem antídoto, sem medida, sem volta. Perguntaste de prece. Então, toda vez, quase sempre, não sei, que a saudade apertava, devotamente ia até a igreja sem deus fazer preces para que a primavera voltasse, rogava para que outro habitante fosse digno de morar naquele vilarejo, ou que o antigo dono regressasse. No entanto, nunca obtive resposta até receber aquela mensagem”

“(...)”

“Fico feliz em saber que estás feliz e amando”

“Sim...”

“Espero que teu teste tenha terminado”

“Sim...”

“E o teu coração?”

“Sente que errou”

“É muito tarde”

“Eu sei...”


III
(SÍNTESE)


“Fique tranquila. Volte em paz para os braços da sua amada. Seu senso de dignidade foi testado e aprovado. Seus princípios são irrepreensíveis. Esta conversa, na verdade, este tipo de conversa, é fundamental para esclarecimentos e avaliações. Além do teste, tenho certeza que fizestes uma avaliação. O que acaba dando no mesmo. Eu também fiz a minha avaliação, com extraordinários esclarecimentos. Sinto que os fardos da tua ausência foram aliviados de maneira definitiva. As correntes que me prendiam foram quebradas. Vejo o remorso que estás sentindo agora. Que teu coração sente. Por ver, pessoalmente, que mudei. E é visível no teu olhar o arrependimento. Este era o verdadeiro teste, ver a mudança. Este é o último contato, não me procure. Enfim, a conversa acabou. Abra definitivamente seu coração nas mãos da amada. O meu definitivamente fechou”.



Não há pior barulho do que um coração que se fecha. 

sexta-feira, 5 de julho de 2013

CHUVA, PORCOS E FARELO




Amanhece mais um extraordinário dia em Belém do Pará. 

Choveu bastante de madrugada. 

Chuva forte com rajadas de vento e água por toda a noite. 

Todos os habitantes da cidade foram atingidos. Ninguém ficou impune. As lambidas ora fortes ora macias da chuva foram de igual impacto sobre os belenenses. Todavia, os efeitos foram diferentes. A água que corria pelo asfalto e concreto não tem a mesma ação sobre os moradores da cidade: de alguns acalenta o sono, de outros é a razão do drama insone.

Alagamentos, ruas inteiras sob a água. 

A periferia da cidade contabiliza seus prejuízos, fogão, geladeira, colchão, a dignidade vendida na última eleição: tudo embaixo da água. Nos bairros centrais, algumas ruas cobertas d’água. Ao amanhecer apenas restam a lama e a razão da dor de cabeça de seus moradores: sapatos sujos depois de uma revigorante noite de sono.

Ocorreram assaltos, latrocínios e mortes. 

Pessoas beberam, se divertiram e voltaram para suas casas. Outras apenas dormiram, aproveitando o frio da noite. Houve aquelas que ficaram acordadas salvando eletrodomésticos, chorando a desgraça, pedindo a Deus dias melhores. Estas pessoas assistiram à televisão, umas como telespectadores, outras como notícias. A culpa é da chuva. Sempre culpa da chuva. A natureza domina tudo e todos.

Rebeca Lemos acorda atrasada. 

É jornalista e trabalha no principal emissora de televisão da cidade. Está feliz porque engravidou depois de anos de tratamento. O marido conseguiu uma grande causa para defender. Rubens Carvalho é advogado e está feliz com gravidez, sua amante também quer engravidar. Rebeca e Rubens, semana que vem, estão de mudança para o apartamento novo.  Só uma coisa lhes preocupa agora: os sapatos sujos.

Chega ao prédio da emissora. 

Uma hora de atraso. Chuva, trânsito. Tinha desculpa. A pauta do noticiário, mais uma vez, é a ação das chuvas na cidade. Pensa consigo que sempre é a mesma coisa. Mas não era apenas isso. Aconteceu um grande crime no Jurunas: uma chacina. Oito pessoas mortas. Executadas sumariamente. Briga entre traficantes. Moradores haviam enviado para a redação imagens de celular do confronto. A polícia entrou em contato com a emissora. Um grande furo de reportagem. Dois repórteres e um cinegrafista foram designados para cobrir a situação. Rebeca tinha que editar todas essas informações em notícias. Os sapatos sujos era o que preocupava Rebeca.

Na sua mesa estavam todas as informações em vídeos, textos e fotos. 

Ficou nauseada ao ver tanta violência. Otávio Barata, chefe da redação, ao vê-la, brilhou os olhos de satisfação, chegou a hora de testá-la: seu batismo de fogo. Pesava sobre ele a fama de ser muito exigente, rigoroso e severo. Rebeca sempre editava as notícias mais amenas, relacionadas a variedades, direito do consumidor, assuntos de saúde, ou as premeditadas consequências do caos urbano depois da chuva daquela madrugada. As notícias traduziam o seu desconforto em ter os sapatos sujos. Naquele dia a edição ia ser diferente. Otávio entregou em suas mãos a tarefa de editar a chacina do Jurunas. Com uma recomendação: dê aos porcos o farelo que eles querem comer. Ela sabia o que ele queria. Ela foi preparar o farelo.

O fato ficou conhecido como “A chacina dos porcos”.

Todos os telejornais da emissora veicularam a notícia com a tarja de “exclusividade”. Rebeca foi quem cunhou o nome para a chacina. As imagens e depoimentos convergiam para um verdadeiro relato de carnificina. Todos os oito homens mortos estavam visivelmente acima do peso e foram assassinados a tiros e golpes de facão. Todos os corpos foram esquartejados e os pedaços foram jogados por toda a extensão da passagem onde ficava a boca de fumo. Dos oito, três eram menores de idade. As imagens lembravam muito a carne e o sangue de um matadouro. Rebeca arrumou textos e imagens como um espetáculo da carnificina necessário imprescindível para a manutenção da ordem e paz social. “Bandido bom é bandido morto, que todos esses porcos morram” – ela pensava. Contudo, o que há mais incomodava eram os sapatos sujos. Aquilo era inadmissível: sapatos tão caros e sujos de lama.

No programa “O porrete do povo”, a notícia foi saboreada como um manjar.

“Exclusivo! Temos notícias inéditas! Totalmente exclusivas da Chacina dos Porcos! Nesta madrugada de chuvas, aconteceu um assassinato brutal no bairro do Jurunas. Oito homens foram encontrados mortos num beco onde tinha uma boca de fumo. Mortos a tiros e golpes de facão! Todos os corpos foram esquartejados! Cortados em picadinho! E espalhados por todo o beco! A polícia acredita que seja briga entre traficantes pelo controle do tráfico no bairro e que os requintes de crueldade seja para dar exemplo e deixar claro quem manda. Estas observações foram feitas pelo investigador Pereira, do setor de narcóticos da Polícia Militar, mas o inquérito policial ainda está em andamento. Meu povo, eu quero é que eles se matem mesmo! O mal por si só se corrói! Eu quero que eles se matem devagarinho!! Eu quero imagens!! Olhem só!! Pernas e braços jogados na sarjeta!! Sangue, muito sangue!! Sangue e lama!! Parece a imagem de um matadouro de porcos!! Eu quero que todos eles sejam sacrificados mesmo!! Eu quero todos eles mortos!! Olhem as imagens!! Porcos, eu quero todos esses porcos mortos e enterrados!! Vou ter um prazer de noticiar mais morte desses marginais, vagabundos, meliantes!! Esses enviados do demo para destruir as famílias!! Você mãe que tem filho viciado e vive esse inferno dentro de casa, fique feliz!! Você cidadão de bem que paga todos os seus impostos e que anda dentro da lei, fique feliz!! Você policial que arrisca todos os dias a sua vida para garantir a paz e a segurança de toda a sociedade de bem, fique feliz!! Toda a sociedade, fique feliz, são menos vagabundos fazendo mal e desviando nossas crianças e jovens do caminho do bem!! Eu espero com fé em Deus que todos eles se matem, um por um, e que possamos viver em paz, sem violência e sem drogas!! É a justiça divina sendo feita!!”

A notícia foi um sucesso de audiência. 

Rebeca, promovida, agora edita as notícias da pauta policial. Ela prepara o farelo para os porcos comerem. Porcos com televisão de plasma. Porcos com smartphone. Porcos que gostam de UFC. Porcos que gostam de ver outros porcos apanhando, sofrendo, morrendo. Porcos gordos e satisfeitos na frente da televisão. Porcos que choram suas perdas no alagamento. Receba faz com que todos vejam a violência com o mesmo incômodo de seus sapatos sujos. 

Afinal, o que importa é o farelo. 

terça-feira, 21 de maio de 2013

Qualquer paixão me diverte, eu dizia.





Havia um copo de cerveja em minha frente, meio vazio, meio cheio. Era a síntese da minha vida. É tudo mais ou menos desde a pré-história da minha humanidade. Enquanto houver cerveja, cigarros e um pouco de saúde, a vida sempre vale a pena. Tenho pensando ultimamente nisso, se a vida tem valido a pena, parece que sim, até o momento. A vida tá bacana, sem problemas, tomando uma cerveja e preguiça de viver.

Estava menstruada. Realmente deus demonstrara toda a sua truculência com esse castigo por um ato de independência. Toda subversão será castigada – o único mandamento com promessa. Queria trocar o absorvente, porém o banheiro é um lixo. É foda beber em pé sujo, cerveja barata é diretamente proporcional a condições insalubres no banheiro. Ainda bem que sempre levo absolvente e papel higiênico. Não é higiene, é sobrevivência mesmo. Não é frescura, é preservação. Detesto sair de casa neste estado.

Este é um dos inconvenientes de ser mulher. Os outros são: viver numa sociedade machista e não ter um falo, ter a obrigação de ser mãe, viver como esposa e morrer avó. Não preciso me designar de vadia para foder com quem quiser, me vestir da maneira que quiser e ser independente de qualquer homem, antes disso trabalho e estudo, antes disso pago as minhas contas. O resto é vadia com discurso político vazio. Vazia, vadia. Sou prática. Prezo pela autodeterminação de ser mulher independente a Beauvoir.

Estou com um grupo de amigos no bar que sempre frequentamos. A conversa é sobre várias coisas. Fico feliz de encontrar pessoas queridas. Realmente queridas. Elas são cada vez mais raras. Parece que o mundo habitável resume-se a esse tipo de pessoa. Estou ficando cansada. Um sono leve começa a flertar comigo. É aquele leve torpor alcoólico de alegria, fome e cansaço que faz feliz quem bebe. Felicidade instantânea, momentânea e cada vez mais contemporânea. O mundo dos pixels legais do Instagram.

Até o momento que ele chega. Um cara estranho que estava transeuntando anônimo, incógnito, invisível no meio da multidão, se aproxima da mesa com feições humanas – ele tinha barba, por essa razão que considerei humano, humano bonito. É apenas mais um cara, pensei. Ele é amigo do pessoal da mesa. Conheço de vista. Junto a metade da população de Belém de semi-conhecidos. Estava a fim de sair fora. Comer alguma coisa e ir pra casa e curtir a minha embriaguez dormindo. Estava ficando tarde, ônibus é foda.

Mas aí, ele chegou. Porra, ele inviabilizou a minha saída. Tinha que dar mais um tempo. E isso é aquele tipo de regra social que ninguém explica, apenas se sabe e é necessário cumprir, ainda mais entre pessoas queridas. Fiquei mais um pouco. Tive que ouvir o papo dele. Limitei-me a ouvir a conversa com o pessoal da mesa. Começaram a falar de trabalho, que ele era professor, que mesmo com os problemas, ele gostava de dar aula e blábláblá. Grandes merdas ser professor. Um dia vou ser uma, então, não quero adiantar sofrimentos. Melhor nem pensar nisso. Preocupações desse tipo dissipam-se na ebriedade. Nesse ínterim, olhava o vazio da vida curtindo a minha embriaguez risonha.

Depois, falaram basicamente de literatura, música e cinema. Não era nenhuma novidade o que ele falava, mas a maneira como ele falava era simplesmente contagiante, com sinceridade, detalhe, honestidade e paixão. Apaixonante, diria. Dissertou longamente sobre literatura russa, que os Karamazóvi era a melhor obra escrita por mãos humanas. Interessei. Gosto de literatura russa. Pensei em testá-lo e testei. Perguntei se ele sacava Soljenítsin. Queria ver se ele era bom mesmo. Se não era papo furado. Papo de orelha de livro. Detesto gente idiota disfarçada. Literatura russa é fácil. E Literatura soviética?

Assombrosamente, ele respondeu que sim. Citou toda a obra dele e disse ter lido “Um dia na vida de Ivan Denissovich”, que ficou apenas nela, mas tinha vontade de retomar a leitura das demais. E citou ainda outros três escritores soviéticos dissidentes: Vassili Grossman, Vladimir Voinovich e Boris Pasternak. E que adorava as poesias da Anna Akhmatova. “Canção de despedida” era sua poesia favorita, ao lado de “Réquiem”, mas gosta mais da primeira, porque conseguia contemplar a beleza e sinceridade na tristeza.

Caralho, ele não é foda, é um filho da puta. Sim, somos cultizinhos de merda. Foi aí que a porra aconteceu. Puta que pariu, me fodi. Sei lá, alguma coisa aconteceu quando comecei a ouvir com atenção o que ele falava. Fisiologicamente, alguma coisa aconteceu. Comecei a suar, e ficar meio enjoada, e o coração a disparar. Que porra adolescente era aquela. Respirei fundo. Tomei mais um gole de cerveja. Calma, calma.

E vi com quase lágrimas nos olhos um sentimento estranho queimando em minhas entranhas. Tudo nele era bonito, simples, encantador. Fiquei imaginando como seria beijá-lo e sentir o bigode dele desferindo carinhos em minha face. A maneira como ele limpava o bigode cheio de cerveja. O modo como ele olhava interrogativamente, perscrutando em todos o que ele estava falando, dominando a conversar com tom professoral. Aquilo que poderia parecer pedante e chato era simplesmente encantador.

Neste momento, naquela mesa, eu estava totalmente ausente, inerte, esfumaçada. A inteligência dele começou a dialogar com os meus sentimentos que estavam brotando, aquelas idéias e a paixão com que eram proferidas foram jorrando água fresca e cristalina sobre as sementes de bem querer que estavam a semear um terreno abandonado no meu coração. As estepes siberianas do meu coração estavam em degelo.

Fitava a boca dele e da mesma maneira com que ele vocifera idéias, queria que ele vociferasse os meus seios, com a violência peculiar dos atos amorosos, língua e lábios chupando meus mamilos, sentindo o leve, mas violento roçar do seu bigode sobre a minha pele branca, que machucada com tão firmes carícias, avermelhada a testemunhar os benefícios do amor físico. O meu corpo dominando cada ato, objeto submetendo o sujeito. É a melhor e mais inteligente forma de dominação. É a minha forma de dominação.

Simultaneamente, esta mesma boca vociferante desce pelo meu ventre guiado pela língua, sentindo o cheiro do meu corpo entregue, até chegar ao meu jardim habitado por uma única rosa vermelha, e experimento bem devagar, bem lentamente e suave o seu desfolhar pela boca vociferante, transformando os seus lábios em fiéis vassalos do meu prazer. Ao mesmo tempo, subitamente, sem ser convidado, mas amplamente desejado, venha seu pau transgressor devassar o meu jardim, destruí-lo com fortes e renitentes atos de transgressão que apenas o meu corpo perdoa. Se ele não soubesse fazer nada disso, não há problema, teria prazer de ser pacientemente sua professora, instruindo em cada detalhe, ensinando todos os movimentos, educando de acordo com as demandas de cada centímetro do meu corpo. Sei que ele será um bom aluno. E eu uma diligente professora.

O devaneio dissipa-se com mais um pedido de cerveja. Que calor estava fazendo esta noite. Observo com interesse, e ele me saca. Sacou e gostou. Um sorriso tímido, despretensioso, de quem não saber do que é capaz de provocar. Caralho, como o sorriso dele é encantador. É de dar raiva, por ser totalmente irresistível. Sei que ele é inteligente. Beleza. Será que ele fode melhor que o Armando? O Armando é legalzinho.

O Armando fode bacana, tem um papo legal e dá para o gasto. Embora não saiba foder um cu. Ele tem cara de quem sabe chupar gosto. Todo cara de barba sabe chupar gostoso. Pensado melhor, ele é muito magro. Não gosto de gente muito magra, tem feição de doente. Ele não deve fazer pressão. Foder com força, me pegar de jeito, com umas boas tapas. A violência inerente a qualquer ato sexual. O Armando é fraco, fode gostoso, mas é fraco. Ele é magro, mas deve dá conta. As mãos dele são grandes. Gosto de homem com mãos grandes, eu aprecio um carinho pesado, forte, robusto. Desejei que ele descobrisse de maneira delicada cada parte recôndita do meu corpo, que decifrasse o meu enigma carnal, a partir das disposições do seu espírito, o calor dos seus beijos, o afagar da sua barba, entre as minhas pernas, nas minhas nádegas, no meu pescoço, como um processo judiciosamente científico de descoberta do meu gozo e satisfação.

Agora, nada mais me importa. Ele tem que ser meu. Tudo o que ele representa e todas as sensações e sentimentos que ele provoca em mim tem que ser minha propriedade. Não tem mais volta. Já sinto até a dor de que isso não seja possível. Merda, como é lindo isso, de se sentir atraído por alguém que tu não conheces, não sabe nada a respeito, mas os indícios físicos e espirituais do que aquele ser representa, repercutem em ti de uma maneira instantânea e avassaladora, uma vez sentido isso, se é prisioneira de tal deleite. Um cárcere voluntário em que a chave está em suas mãos. Os grilhões invisíveis dos sentimentos. Algemas e chaves nas tuas mãos. Como é doce ser prisioneira de uma paixão. Qualquer paixão me diverte, eu dizia. Agora é irremediável: sou prisioneira dele.

Copo cheio, uma golada. Preciso ir embora. Já não aguento ficar na presença dele, ele me domina, me machuca, me invade, me sufoca de tanta fascinação. Aquela língua me fodendo. Aquela boca me chupando. Aquele pau me deflorando. As mãos grandes fazendo carinho nos meus cabelos e lendo Akhmatova com a mesma paixão que trata dos Karamazóvi. Sentir afagosamente os carinhos do seu bigode por todo o meu corpo.

Pergunto quanto fica minha parte na conta, e pago. Levanto, me despeço de todos e vou embora. Claro que dele também. Eu precisava sentir o cheiro dele. Uma mistura de perfume e suor, com cerveja e cigarro. Um inebriante cheiro de homem boêmio. Quando olho para trás, vejo o olhar dele, perscrutando o meu corpo, perscrutando o meu espírito. Não sei se houve algo de transcendental. Ou só se foi o álcool e a fome. Quem sabe. Isso aconteceu ontem. Mas senti o doce hálito de tabaco preencher o meu vazio.

sábado, 27 de abril de 2013

A escrever.






Este texto é mais uma batalha. Mais um ato da minha luta com a vida. Não sei o que quero escrever. Apenas tenho vontade de escrever. Sem tema, sem propósito, sem palavras polidas. Acredito que desejo ser ouvido. Tão somente ouvido. Eu poderia falar para um gravador e solucionaria o meu problema de falar e ouvir. Não há dinheiro em meus bolsos para adquirir um gravador. E não quero ouvir. Quero falar. Exclusivamente falar. Duas coisas me ressacam a saliva: falar e calar demasiadamente. Bebo muita água. Não por sede, mas necessidade de beber água – que tem um pouco de sede. 

Às vezes, fico parado a observar as pessoas. Todo o tipo de gente. Sei que é uma perda de tempo. Mas cada um perde da maneira que melhor lhe cabe. Por exemplo, tu, leitor, estás a perdê-lo lendo tais palavras. Não se chateie comigo. É apenas a verdade. Enfim, continue a me ouvir ou ler – fique a vontade. Observo as pessoas com um único objetivo: ver-me nelas. Defendo a hipótese na qual é possível verificar que em determinados comportamentos alheios contém muito daquele que lhes observa. É uma questão de identidade. A despeito de peremptórias recusas, todos são humanos, com quantidades consideráveis de sono, fome e estupidez. E curiosidade. Esta é com toda a certeza das razões pela qual tu me lês, leitor paciente. 

Vejo nas pessoas, sobretudo, a estupidez que define em medidas variadas a humanidade de cada um. Se mais ou menos estupidez define a humanidade de alguém, não sei ainda. Só sei que é universal. Para ser breve, uma grande estupidez humana é a verdade. Não sei se vou conseguir me expressar bem: acredito que ser detentor da verdade é uma grande estupidez. A certeza subjacente, a expressão corporal de escárnio, o sorriso sarcástico, a tom de voz irônico de quem acredita profundamente estar com a verdade é uma estupidez sem proporções para as limitadas capacidades humanas de mensuração. 

Não tenho conhecimento da existência da verdade. Talvez um dia me ocupe a pensar em tal questão que, claro está, deveria ser uma premissa fundamental destas linhas. Não me cobre coerência, leitor amigo. Tenho um problema que me pesa: sou sincero na medida exata da honestidade. Tal atribuição é algo inerente a minha natureza. Não é necessário dizer que já tive vários problemas em decorrência disso. É a minha maneira individual de combater o senso comum, a saber, eivado da lei do menor esforço: corpóreo e moral. 

Tudo o que for fácil e tranquilo é buscado com tal desespero, que todas as sensibilidades e brios são devidamente calibrados para alcançar uma vida sem esforço e complicações. É óbvio que esse ledo engano é vendido como se fosse a salvação da humanidade. A mim, tudo o que tem aparência de facilidade e tranquilidade, repudio com veemência. A vida não é assim. Não é idílio. É complexa e complicada. É necessário olhá-la nos olhos e enfrentá-la. Não sei se é possível vencê-la. No entanto, é preciso ter consciência da luta. Lutar contra a vida parece uma lida inglória e perdida. Parecer, parece. Todavia, sinceramente, não sei. 

Tenho apenas lutado. E uma das minhas maneiras de luta é escrever. Sentar, olhar o papel em branco e escrever. Escrever o que penso e sinto sobre a vida. Sem a pretensão de ser lido, seja por você, seja pela vida. O simples ato de escrever, de inscrever palavras, com mínimo sentido semântico e de acordo com a gramática normativa, é a minha forma de luta. Não sou cônscio de vitórias ou derrotas. Apenas sei da luta. Na qual, me empenho com regular dedicação. Cada texto é uma batalha. Elas são incontáveis, da ordem de se perderem na minha memória. Quando estou aqui, corcunda sobre a mesa, lutando, ouço seus risos: é a vida a rir de mim. Caçoando do meu esforço, do embate, da minha luta. 

No entanto, não adianta, ela não vai de demover. Várias vezes eu pensei em desistir, de considerar uma causa perdida. Nesse movimento, percebi que essa é a minha causa: a escrita. A matéria da minha escrita é o tempo passado, a vida presente. Essa algoz contra qual eu luto. A cada palavra que apresento uma impressão, uma leitura, um julgamento. A cada texto que me faz sobreviver e ver sentido na minha vida. Pode parecer dramático. Que seja. Cada qual com o seu drama. 

O meu é escrever. É lutar. Fazer dos meus dedos baionetas na batalha das ideias. Meus pensamentos e sentimentos se articulam nas palavras, uma a uma, juntando-se devagar, sem qualquer pretensão, e transformam-se em textos. Textos com sentidos claros ou subjacentes. Textos filosóficos, políticos ou literários. Ensaios, dissertações ou versos. Independente da forma, a escrever eu sigo. 

As palavras são as minhas únicas companheiras. Confio nelas. Na verdade, devo minha vida a elas. Elas que me fazem continuar nesta guerra. Quando pestanejo desmotivado, elas me erguem e dizem que devo usá-las, que é necessário agrupá-las, isoladas são inofensivas, mas juntas, formando um bloco textual, elas são mais fortes, elas desferem golpes, marteladas, coronhadas. 

Cada texto é uma martelada nesta esfinge dura, cruel, árida, impassível, impenetrável, ao mesmo tempo, fascinante, sedutora, belíssima e necessária que é a vida.  Não tenho nada contra a vida. Nem a favor. A minha existência conseguiu adquirir patamares de progressivo sentido, depois que descobri que é apenas o conflito com a vida que me mantém de pé, respirando, vivo. 

O meu conflito particular com a vida consiste em querer transformá-la. Acredito piamente que ela pode ser melhor do que o modo pela qual tem se apresentado até hoje aos meus sentidos e é representada no meu pensamento. Não é possível que seja apenas isso. Ela tem que ser mais. É necessário forjá-la duramente de acordo com nossas demandas. Construir uma ordem social em que a satisfação média de necessidades materiais, como vestir uma camisa, calçar um sapato, comer um queijo não seja um privilégio de poucos. Noto que essa base mínima para a manutenção da vida tem repercussões indeléveis no pensamento e na sensibilidade. Não é possível ser humano com fome. Não é possível ser humano sem pensamento. Não é possível ser humano sem sensibilidade. 

Certa vez, ouvi um provérbio senegalês que dizia: a primeira necessidade do homem é comer, porque enquanto está com fome, não consegue pensar em mais nada que não seja comer; se essa necessidade fosse suprida, qual seria outra necessidade humana: a paz consigo e com o outro, porque se ele não tiver paz, até de comer ele esquece. Acredito que para conseguir essa paz é imprescindível não ver-se como uma árvore alheada do arvoredo, claro que a árvore não vive em função do arvoredo, mas ela não existe sem o arvoredo. 

Cada um é uma árvore. Com raízes que dizem quais são a sua origem. Por mais que reneguem, todos têm uma origem e nossas raízes dizem de qual solo brotamos e esse mesmo chão irá nos abrigar no derradeiro tombo. Desprezar suas raízes, é simplesmente ignorar o que te sustenta, podes até manter-te em pé, mas sem sustentação, sem vigor, sem vida genuína. O tronco é a sustentação fundamental que sofreu transformações no processo de crescimento, ele tem marcas que registram a trajetória de cada árvore. As folhas são responsáveis pela respiração, pelo pensamento, pela sensibilidade, em suma, a fotossíntese é responsável pela manutenção da vida pregressa e presente da árvore. 

A minha fotossíntese é escrever. Sou uma árvore que por vezes sente-se deslocada. Porém, sabe que não pode viver sem as outras árvores. Talvez, a imagem do deserto ilustre de maneira persuasiva e eloquente o que quero dizer. Escrever consegue estancar a minha solidão. Até porque escrever é um ato solitário por definição. As palavras, como já disse, são companheiras de todos os momentos, elas sim são o verdadeiro amigo do homem. 

Vejo a solidão como uma necessidade, comparável a beber água. Uma vez satisfeita, pode aparecer em outros momentos, de acordo com as circunstâncias. O problema da solidão é quando se transforma de necessidade em dependência. É preciso medida e discernimento. A escrita é a minha medida. As palavras são o meu discernimento. O texto é o resultado, a martelada na vida. Estou cansado de escrever, caro leitor. 

Contudo, vou dizer a estupidez que me acabe neste texto: pensando melhor, a escrita é a minha verdade, a minha martelada na batalha contra a vida. A escrever demasiado sobre a bela e fatídica vida. Este obtuso bloco textual é mais uma martelada. Ou uma tentativa, como todas as outras, que me mantém neste inexorável ato de escrever. 

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

AO SUL DO RIO BRAVO







Belém do Pará. Oito horas, uma manhã de janeiro, mormaço calorento depois de uma madrugada de chuva, ventos e brisas úmidos que abrasavam ainda mais o calor. Barulhos do caos urbano, buzinas, motores, fumaça dos escapamentos, milhares de pessoas lotam ônibus, dirigem carros, andam a pé, moto ou bicicleta. Algumas centenas dirigem-se para a rodoviária, afinal são férias, muitos viajam a trabalho, outros a lazer.

Os ônibus movimentam-se em direção a diferentes destinos, embarque e desembarque, ida e volta, no qual Belém é apenas mais um lugar, mais uma parada, mais um ponto no extenso mapa de cidades que compõe o território nacional, seja de entrada, seja de saída. Belém-Altamira é o itinerário dos ônibus da Transbrasiliana nesta modorrenta manhã de janeiro, uma viagem prevista para as oito horas e a outra, às dezessete horas. A primeira sem ar-condicionado, passagem mais barata, lotação esgotada. Na plataforma de embarque, várias pessoas ao lado de suas bagagens aguardam o ônibus. Crianças, mulheres, homens, velhos. Pais, mães, netos e filhos. Todos igualmente trabalhadores, sejam mulheres, pais, filhos, todos igualmente baratos no ônibus barato.

Meia-hora de atraso, como sempre, desculpa: parada para abastecimento e troca de óleo. Dona Maria aguarda sentada, seus joelhos doem, desembarcou em Belém há dois dias vindo de Natal, dormiu na casa de uma conhecida, a última noite de sono foi de sonhos intranquilos, visões oníricas de sua vida, os joelhos doem e prolongam a espera. Mais a frente, Seu Raimundo trocava umas palavras com o motorista sobre o atraso, uma fala mansa que rapidamente ganha empatia. Estranhava tanto barulho. Fumava um cigarro de palha. Estava em Belém a trabalho e resolvendo problemas pessoais.

Seu Raimundo e Dona Maria embarcaram às nove horas para Altamira.

Ela na poltrona três, ele na poltrona dez. O ônibus por várias partes é encardido pela poeira da estrada. As poltronas são velhas e desgastadas, fedem a suor e mofo. Os vidros das janelas são opacos pela lama seca. A janela de Dona Maria está emperrada, ela não consegue mover. O calor começa a acossar de maneira igual a todos os passageiros. Depois de algum tempo, o passageiro ao seu lado percebe a situação e abre a janela. Desfruta do vento, o joelho está quieto, pensa na vida. Seu Raimundo vai olhando a estrada, com aquela vontade de pitar um cigarrinho, pensando na vida.

Ambos querem chegar o quanto antes a Altamira.

Várias pessoas sobem e descem no transcorrer do percurso. Paradas que fazem o trajeto ficar mais longo. A poeira, o calor, pessoas entram e saem, fazem a viagem não ter fim. Em Tucuruí, embarca um rapaz com a aparência de adolescente. Tem dezoito anos. Chama-se Nelson. Fugido depois de uma briga e um crime. Também vai para Altamira.

Dona Maria espera encontrar os dois filhos. Eles vivem em discórdia. Não se falam desde a morte do pai. Ambos se culpam por não darem assistência suficiente. Na verdade, disputavam quem dava mais. E na disputa, nos poucos recursos, no avançar implacável da doença, o velho morreu. Sempre amaram mais ao pai. Isto doía em Dona Maria.

Seu Vírgulino era lavrador, admirador de Lampião, não conseguia viver longe da terra, do cultivo, da plantação. Semeava feijão, mandioca e milho. Criava uns poucos bichos para subsistência: galinha, bode, cabrito e porco. Macho que resolvia tudo na mão ou na peixeira, que não levava desaforo para casa. Beber era seu esporte favorito, que às vezes lhe rendia sangue e hematomas. Um câncer de próstata finalizou seus dias. Macho até o fim.

Dona Maria ia lembrando todos esses acontecimentos que agora pareciam remotos, ora vagos, ora nítidos. Casou-se cedo, tinha apenas quinze anos. Ele, vinte e sete. Ficava remoendo, se não houvesse casado, sua vida seria outra, sua sorte seria diferente.
Com a mulher, Seu Vírgulino era enérgico e autoritário, não havia conversa, apenas ordens, na mesma proporção, que se esperava obediência. E ela obedecia. Muito religiosa, desde menina. Sua mãe dizia que seu pai era a cabeça da casa, era melhor obedecer do que sacrificar. Deus castigava. Era necessário ser sábia, a mulher tinha que criar os filhos, cuidar do marido, edificar a sua casa. Ela tentava seguir os ensinamentos da mãe.

Olhando as vastas pastagens cheias de bois, as árvores queimadas, os rios, os igarapés, que distraiam e acalentavam seus pensamentos, não conseguia ver direito, vultos pouco nítidos, estava sem óculos, custavam quinhentos reais, quase toda a aposentadoria, considerava que não havia seguido as orientações da mãe a termo, que havia fracassado. Sua vida seria totalmente diferente sem o casamento. Mas esse era o destino da mulher, não tinha como fugir. Era isso, ou ficar solteirona, ou para titia. Solteirice ou casamento, não sabia o que era pior, pensando do alto de sua velhice.

Um filho por ano era uma das ordens do marido. No rigor, tal qual uma lei sagrada, inquestionável, foram gerados doze filhos, seis mulheres, seis homens. Dona Maria sabia que uma filha morava no Rio, um filho em Belo Horizonte. No entanto, não tinha o contato deles. Tinha consciência que não queriam ser encontrados. Os demais, sem contato e sem lugar e sem notícia de suas existências. Vivo ou morto, não sabia, e não fazia diferença. Somente com três filhos ainda havia contato. Era o bastante, apesar da saudade.

Um que morava em Natal e os outros dois em Altamira. Francisco é o caçula e o filho mais querido de Dona Maria. Moravam juntos na mesma casa com a nora. Jerusa não gostava de Dona Maria, achava que ela se metia muito na vida do filho. Depois de dois meses de brigas, bate bocas e confusões, Dona Maria arrumou suas trouxas e partiu no primeiro ônibus para Belém.

Não queria ser peso para ninguém, ainda mais para chiquinho. Dona Maria não tinha relações próximas com os filhos que ainda mantinha contato. A mulher do Francisco era um problema e foi embora. Os dois outros filhos que moravam em Altamira, Jonas e Alberto, eram brigados de morte.

Entretanto, esta não era a sua maior amargura. Dentre inúmeras acumuladas em setenta e três anos de vida, era apenas uma. A maior era não ter uma casa. Não ter um lugar. Não ter um teto. Um lugar para sossegar e dizer que era exclusivamente seu e que ninguém poderia lhe incomodar ou expulsar.

Quando os filhos cresceram e arranjaram suas próprias famílias, ficou ela e Seu Vírgulino na casa construída durante o casamento. Todavia, o câncer, o tratamento, a falta de dinheiro, fizeram com que a venda da casa fosse à única solução para restituir a saúde do patriarca da família. O dinheiro adquirido durou alguns meses do tratamento.

Seu Vírgulino viveu quatro anos com a doença e no último ano perdeu a razão. Não dizia nada que fizesse sentido e nos momentos de raiva extrema, batia em quem estivesse pela frente. Sobretudo, Dona Maria. Ela aguentou estoicamente estes quatro anos para presenciar o definhamento do marido. 

E pensava agora, quando o vento cessava e o calor cozia suas carnes envelhecidas pelo sofrimento de mulher e mãe, se realmente havia valido o infortúnio ter vendido a casa. Numa rápida operação de raciocínio, procurando alguma solução para a sua situação desoladora, se ela não tivesse vendido a casa, considerando que seu marido iria morrer de qualquer modo, nem era necessário aquele calor e todos esses pensamentos, pois estaria na sua casa, cultivando sua roça, criando suas galinhas e alguns porcos. Estaria feliz e de barriga cheia.

Ela sabia o sacrilégio de tal raciocínio hipotético, claro que nada substituiria a saúde do seu marido, nenhum bem material, inclusive sua casa. Ele estava morto, ela sem casa. Isso amargurava profundamente o seu coração. Angustiava ainda mais porque esta situação fazia de uma só vez depender diretamente dos filhos, depender da benevolência dos filhos para ter um teto.

Os joelhos doíam, uma queda provocada pela baixa visão, descia de um ônibus em Natal, caiu em posição de oratório na rua, quase foi atropelada, um rapaz lhe socorreu. Quando pensou nisso agradeceu a Deus por ainda existir bondade no mundo. Sem dinheiro, sem óculos, sem saúde, a velhice lhe fazia dormir no revolver abrupto dos buracos da estrada que parecia arrasada por uma guerra.

Estava a caminho de um teto em Altamira. Aposentada, um salário mínimo, não havia condições para alugar uma casa para si, havia procurado os programas de moradia do governo com alguma esperança. E nada. Ela achava que era devido à aposentadoria. Não era totalmente baixa renda, tinha renda fixa, graças a Deus. Não tinha bolsa-família, sem netos, sem crianças, sozinha. Sua vida devia fazer parte de alguma planilha amarelada esquecida num arquivo mofado, nem banco de dados havia se transformado na Previdência Social. Não sabia na verdade. Quer dizer sabia sim, desde menina: nada do governo funciona para os pobres. Só agora, depois de velha, ter esperança no governo.

Coisa de velho, esperança de velho, vida de velho que está passando da hora. Quando pensava nisso, um leve desejo de morte consolador se agarrava ao seu coração. Mas se assustava, pedia perdão pelo pecado. Temia o castigo eterno. Apesar de tudo, gostava de viver, insistia em existir, ao passo que uma verdade absoluta não saía da sua cabeça e se ratificava no seu coração ouvido na infância: mãe e pai é bom, mas barriga cheia é melhor. A despeito disso, estava a caminho de uma promessa de barriga cheia e teto entre a discórdia dos filhos, que amavam mais um pai morto que uma mãe viva. Os dois filhos há três meses eram operários em Belo Monte.

Seu Raimundo pensava em Amélia. Uma das três amantes que visitava com frequência. Jussara em Marabá, Socorro em Altamira. Amélia era sua melhor amante. Aquela mulher lhe dava canseira, era insaciável para a sua velhice. Empregada doméstica, moradora do Guamá, viúva, tinha três filhos homens, todos gostavam de Raimundo.

Como era motorista, vivia de cidade em cidade. Tinha família. Na verdade, quatro filhos casados e uma velha mulher em Garrafão do Norte, sua cidade de origem. Depois que arranjou esse emprego de motorista, passava as férias. Visita à mulher e os filhos. Queria ver as crianças. Na sua vida havia apenas duas alegrias: seus netos e a liberdade de ser motorista.

Gostava da estrada, do imprevisto, do improviso, da vida singrando aqueles mares de asfalto e lama, era capitão de uma nau motorizada. O cigarrinho de palha era um prazer similar às suas amantes. Fazia uns dez anos que não era de homem e mulher a sua relação com a esposa. Sua responsabilidade com o casamento era enviar todos os meses uma parte do seu salário a Dona Auxiliadora e visitá-la nas férias.

Para ela estava de bom tamanho. Estava satisfeita sem homem em casa, a sua aposentadoria e o dinheirinho que Raimundo manda era certo como sua tosse em tempo de chuva. Podia se dedicar em tempo integral aos netos e a Igreja. Católica fervorosa, ela queria apenas dedicar-se ao próximo e garantir seu lugar no céu. Não estava bem de saúde, a tosse se agravara junto às problemas no coração. Até o final de fevereiro, Seu Raimundo receberia a notícia de sua morte.

Pensava em Amélia, mas olhava para a aliança de ouro que não tirava do dedo. Próximo ao casamento estava passando perto de Serra Pelada. Tinha um conhecido entre os garimpeiros. Comprou uma pepita grande a um bom preço, na camaradagem, no tempo que o ouro era abundante. A pepita virou duas belas alianças. Olhava e lembrava-se de sua velha.

Sentia um carinho especial, um amor que foi se perdendo com o passar do tempo, um respeito por aquela mulher que era mãe de seus filhos, avó de seus netos. Apesar de tudo, Raimundo prezava pela família. Mandar dinheiro para Auxiliadora era a sua forma de garantir que ela tivesse uma velhice tranquila.

Ela, por sua vez, não usava a aliança. Todos na cidade sabiam que não vivia com o marido. Era uma forma de se resguardar, vivia socialmente como uma viúva. Guardava numa caixinha de madeira, junto a um par de brincos de pérola e o seu rosário. Quando a saudade apertava, pegava a aliança, colocava no dedo. O estado de viuvez cessava, sentia-se casada novamente, tal qual aquele tempo remoto, que as lembranças foram se perdendo no transcorrer dos anos, no qual Raimundo ainda não era motorista e apenas seu marido, na casa, na cama, na vida.

Agora, ele apenas representava o dinheiro a mais no fim do mês. E estava satisfeita. Da vida apenas esperava uma boa morte e que seus filhos e netos fossem felizes, tal qual ela era agora, servindo a Deus, servindo a família, sem Raimundo e com o seu dinheiro. Desejava a Raimundo que fosse um motorista com saúde, que às vezes sentia saudade. Só às vezes, bem às vezes, só de vem em quando, principalmente nestas noites frias que a tosse lhe acossava o sono.

Estava feliz porque a empresa que Raimundo trabalha vai prestar serviço em Belo Monte. Mais dinheiro no fim do mês. Deus cuidava do seu coração e ouvia suas preces. Raimundo sabia que a mulher rezava por ele e lembrava-se disso todas às vezes que olhava a aliança. A boa notícia que fora receber em Belém, era resultado de seu prazer em ser motorista e às orações da Auxiliadora. Motorista exclusivo dos operários em Belo Monte. Socorro ia gostar da notícia.

Duas poltronas atrás, Nelson estava ouvindo sertanejo e tecnomelody. Encostava-se satisfeito na poltrona, depois da parada do almoço, pronto para a sesta. Havia gastado o único dinheiro na comida. Estava aperreado de fome. O pai iria recebê-lo na rodoviária. A fome o fez pensar. Agora estava de barriga cheia e satisfeito. Todavia, não conseguia dormir. O ônibus balançava muito na estrada de lama e buracos.

Morava em Tucuruí com a irmã. Zuleide é empregada doméstica na casa de um engenheiro da Hidrelétrica. Morava com o marido e dois filhos e o irmão. Osvaldo é pedreiro, mas o serviço anda escasso e pagando mal. Pensou inúmeras vezes em ir para Belo Monte. Zuleide em hipótese alguma quer o marido longe. Se ele for, ela diz que fica viúva e coloca outro homem dentro de casa. Ele não vai, não tem garantia de emprego e não quer perder a família.

Nelson quer ir. Solteiro. Ensino fundamental completo. Sabe escrever o nome e uma dezena de palavras. É um exímio leitor de figuras. Não gosta muito de palavras, elas cansam e são difíceis de entender. Trabalha desde os quinze anos em pequenos bicos e serviços braçais. Morava com a mãe, o pai e um irmão. Depois que Carlos e Sebastião arranjaram trabalho numa fazenda perto de Altamira. Eles haviam trabalhado na construção da barragem. Hidrelétrica pronta acabou o emprego. Nelson ficou sozinho com a mãe.

Um dia, lembra com clareza esse dia, com a claridade de sua mente ainda infantil, a mãe já estava doente. Não se sabia qual era a doença. Uma consulta estava marcada para três meses. Aguardava como podia a consulta. Dona Ermelinda deitada na cama pediu água para Zuleide que estava de visita. Nelson capinava o quintal, mato alto chama muito carapanã. Sua mãe estava reclamando muito das picadas. Ele ouviu o pedido, mas pensou que Zuleide fosse atender.

Outra vez o pedido. Nelson, todo fedido de mato e suado, foi ver porque a irmã não atendia. Estava falando com uma amiga no celular. Prontamente, mesmo sujo e fedendo, serviu um copo com água a mãe. Obrigado, meu filho, Deus te conserve bom, ela agradeceu. Dois dias depois ela morreu. Dormiu e não acordou mais. A irmã ainda sofre do remorso de não ter dado água a mãe. Essa é a última lembrança nítida da mãe.

Nelson observava na poltrona do outro lado do corredor, uma mãe amamentando o filho. Vinha à memória este último contato e chorava. Considerava-se homem, mas era apenas um menino. Estava indo ao encontro do pai e irmão, procurar um emprego, recomeçar a vida. Na verdade, estava também fugindo de uma confusão.

Um dos seus bicos era ser segurança em festas. Fazia mais um trabalho auxiliar do que realmente de apoio. Não tinha tamanho e nem força para separar briga de bêbados. Recolhia os ingressos. A boate era de um amigo do patrão de sua irmã. Álvaro gostava muito de Nelson.

Gostava do modo esforçado do menino se fazer parecer homem. Uma vez a filha do dono da Boate chegou ao pai e perguntou que aquele menino fazia junto aos peões da segurança. Ele disse em tom de risada que o menino era homem, maior de idade, na carteira e no meio da peãozada.

Sábado era o dia mais movimentado. Estava tudo normal. Ninguém mais na portaria, na bilheteria. Quando Nelson entra na festa e toma sua primeira cerveja, um homem bêbado e enfurecido corre em sua direção, gritando que este filho da puta havia se engraçado com sua mulher.

Ele não entende nada. Tudo é muito rápido. O homem é gordo e pouco ágil. Quebra uma garrafa. No reflexo, Nelson quebra uma. O homem fere o braço do garoto, e ele afunda os cacos pontiagudos da garrafa na barriga macia do homem.

Não pensou muito, fez um curativo no braço, pegou uma trouxa de roupa, comprou uma passagem com destino a Altamira. Nem se despediu da irmã. Havia apenas vinte reais no bolso, gasto no almoço. Cabelo ao vento, Nelson contemplava a estrada, via a paisagem de verde, queimada e fumaça, enquanto estes pensamentos invadiam sua cabeça.

O ônibus diminui a velocidade. Mais a frente passava uma boiada. Sentiu que eram bois devido ao cheiro de merda no ar, um nuvem de esterco invadiu o ônibus. Um mal-estar geral, homens e mulheres reclamam, crianças choraram. Nesta atmosfera, projetava com uma vida diferente em Altamira. Queria ter uma casa, uma mulher e uma moto. Este era seu sonho. A primeira coisa que faria ao pisar na cidade era se recrutar em Belo Monte.

O ônibus finalmente chega a Altamira.

Dona Maria a vista um conhecido que é taxista. Pega uma carona para casa de um dos filhos, busca um teto e sossego. Mais não saí de uma cabeça: pai e mãe é bom, melhor é barriga cheia. Estava com fome, filhos era bom, melhor era a barriga cheia. Vida agreste. Ainda não sabia que os filhos trabalhavam na construção da usina e que haviam feito às pazes. Num futuro próximo, ia provar, nos últimos dias de sua velhice, como era bom ter filhos, obviamente em razão da barriga cheia. Enquanto durasse a construção.

Seu Raimundo pegou a primeira condução que fosse para Vitória do Xingu. A empresa ficava no caminho. Estava ansioso com o novo trabalho. Novas instruções, uniforme com cheiro de limpinho. Mas antes, arrumou um cigarrinho de palha. Entre os tragos, ligou para Socorro, que atendeu feliz. Desligou e lembrou que precisava passar no Banco. Olhou a aliança, tinha que transferir o dinheiro do mês. Pensou na velha, nos netos, na família, devia muito as suas orações. Belo Monte lhe esperava.

Nelson esperava o pai que ainda não apareceu. Sem dinheiro, sem amigos, sem conhecidos, sozinho, sentia-se desgraçadamente abandonado. Lembrava-se da mãe e isso o consolava. Sentou-se de cócoras perto da mala que continha todos os seus documentos e três mudas de roupas. Seus documentos eram as coisas mais valiosas. A partir da foto, da assinatura, dos números, ele existe para o Estado e sociedade. Seus braços e pernas eram vigorosas forças de trabalho. Sua mercadoria na sociedade mediada por mercadorias – força de trabalhão, salário, consumo. Viu um homem com um uniforme. Era operário de Belo Monte. Estava a caminho do setor de RH. Foi junto com ele e a esperança de ser recrutado. Uma casa, mulher, moto e calos muitos calos faziam parte do seu futuro.

Há poucos quilômetros daquela rodoviária, aterrissava um avião vindo de Belém. Aeroporto de Altamira. Mineiros, cariocas, paulistas, gaúchos, catarinenses. Engenheiros, médicos, empresários, advogados, profissionais liberais. Os representantes do Brasil que manda. Suas vidas podem ser resumidas numa sentença: empreendedores de plenas capacidades individuais a procura da felicidade. Tal qual uma peste, com o seu poder empreendedor, esquadrinham as oportunidades, aproveitam-nas até a última gota. Depois, partem em retirada, para novas oportunidades, novos empreendimentos.

Neste exato momento, os que mandam e os que obedecem dividem o mesmo espaço. Empreendimento, barriga cheia, emprego novo, um sonho. Todos parecem estar satisfeitos e felizes com Belo Monte. Índios, ribeirinhos, danos ambientais não existem no texto, não existem para Dona Maria, Seu Raimundo e Nelson. É o nosso progresso.

O resto dos habitantes deste país pelo seu silêncio ensurdecedor, com a exceção de alguns cartazes e vozes roucas de “Pare Belo Monte”, também querem a energia, querem o progresso, querem a devastação sem proporções de Belo Monte. Como qualquer brasileiro, você deve estar nesse momento indiferente, satisfeito ou feliz por estas atualizações de velhas notícias ao sul Rio Bravo. Bem-vindo ao mundo realmente existente, no qual a barbárie é ao mesmo tempo chata, tediosa ou motivo de risadas, tudo dependente dos telespectadores e seu senso de humor. Ligue a televisão e divirta-se.