quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Solução e reparação




Tenho observado a vida alhures e não gosto do que vejo. Calor, violência e corrupção. Empáfia, egoísmo e ingratidão. Medo, indiferença e exclusão. Tristeza, alegria e diversão. Chuva, alagamento e discussão. Botecos, conversas e insatisfação. Clarisse tem reclamado com seu tom e razão peculiar da inflamação e do salário. Digo-lhe para ler Marx e encontrar uma explicação. Ou procurar um emprego melhor e ficar sem explicação. Ela me pede uma solução. E diz que ler Marx não vai pagar as contas. Detesto pessoas pouco teóricas e pragmáticas – na verdade, é preguiça de ler e pensar. E digo: não sou químico. Chama-me, com carinho, de tratante. Pergunto: cadê o senso de humor. Apenas gritou com tom colérico: na puta que te pariu – eu respeito pessoas que sabem xingar. Ri, vi e respondi: eu sei que mamãe é engraçada – ela não gosta de minha genitora, diz que ela é uma megera. Ela riu, afagou-me o cabelo, beijou-me a barba, disse para cortar ambos, óbvio que tinha que reclamar, e foi embora – procurar um novo emprego. Tenho que me reparar. Meus parcos amigos têm reclamado igualmente – tenho um problema sério em manter amizades. Suas reclamações são por motivos diversos, é verdade, e legítimos. Da minha ausência presente e da minha saudosa chatice que tanto lhes divertem. Relapso é no mínimo o que tenho sido com eles – mas, eu gosto de ser relapso. Tenho que me reparar. Por sua vez, Dona Clotilde, minha mãe, não me escreve mais – desistiu de mim e, pelo visto, perdeu o senso de humor. Azar o dela, rir é libertador. Meu pai morreu cedo – o seu Euclides. Meus irmãos, José e Francisco, seguiram na vida religiosa – um é padre e o outro é rabino. Tenho que me reparar. Perdi o emprego ontem e estou feliz hoje, com fome, sono e uma unha encravada. Duas moedas no bolso e uma idéia fixa. Que me fez errar por toda a cidade. A idéia fixa era: como faço uma solução de reparação. Não achei resposta. Acredito que o jeito vai ser procurar um químico que entenda de auto-ajuda.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

A disputa




João era pedreiro, alcoólatra,
bom de cartas e sinuca
honesto e altruísta, morria pela
família e os amigos
tinha dois problemas: passional e
acreditava piamente nas pessoas.
Maria, uma excelente costureira
vaidosa, bonita e esbelta, luxuriosa
com uma qualidade: a persuasão.
Torquato, um grande malandro
que não trabalhava, vivia de bico,
samba e pequenos trambiques.
João era casado com Maria.
Maria era amante de Torquato.
Torquato era camarada de João.
Um dia voltando do trabalho
João trazia um presente
para Maria: rosas e chocolate.
Mas quem ele vê atravessando a
praça de mãos dadas aos beijos:
Torquato e Maria.
Sangue e lágrimas
encheram os olhos de João.
Ele usava uma faca para
capinar o mato e abrir cimento.
Correu em direção do casal.
Quando o viram
Torquato viu a faca
na mão do João e
puxou a navalha
Depois da violenta
luta corporal
caiu a navalha limpa.
E ao lado dela, o Torquato
Maria, degolada, do lado
da navalha.
A fúria de João prevaleceu
A sua ira venceu a disputa
Retornou ao lar.
Com a faca lavada pela honra,
as rosas e os chocolates.

(Felipov)

sábado, 13 de novembro de 2010

Seu Dalcídio




Esta é a história de um homem bom. Esta é a história do Seu Dalcídio. Alguém que amou demais. Amou demasiadamente. E não teve um final feliz. Seu nome completo: Dalcídio Guilhermino Almeida. 40 anos. Português do Porto. Morava em Belém há uns 30 anos. Herdou o negócio da família: uma padaria. Com um nome bem peculiar: “Lisboa”. Tinha uma bela barba e um início de calvície. Usava suspensórios, camisa de linho branca e calça social marrom, que parecia uniforme de garçom de boteco da década de 1970 – só faltava o raiban e as costeletas. Um sentimentalismo lusitano a la “fado tropical” – uma de suas músicas favoritas, como sempre comentava na roda de música no bar da esquina, o conhecidíssimo “Bar do pirento”.

Tomava todos os dias uma taça de vinho do porto – como um bom português. Sua irmã, o único parente vivo, pois seus pais já eram falecidos, lhe enviava todos os meses. Dona Violeta era casada com um bem-sucedido corretor de imóveis, o Joaquim, e tinha dois filhos: Gumercindo e Mariana. Dalcídio morria pelos sobrinhos, todos os anos, um dos dois passava uma temporada com ele no Brasil. Ele amava a família, apesar de não ter uma boa relação com seu cunhado – por conta de dívidas. Amava sua irmã e os sobrinhos – era solteiro convicto. Dalcídio era um homem simples. Um português muito brasileiro. Levava uma vida pacata, sua principal ocupação era cuidar da padaria. Torcia pela Tuna – obviamente, não era uma pessoa muito feliz com o futebol. Gostava de jogar no bicho. E jogar conversa fora no bar nos domingos à tarde.

Contudo, sua vida mudou. Julieta mudou sua vida. Era uma moça recém-chegada ao bairro, de uns 25 anos. Olhos verdes, mais alva que a neve, esbelta e formosa. Cabelos crespos e um estilo de antropóloga. Morava só, perto da padaria. Havia se mudado há duas semanas. Iria cursar História, queria pesquisar período colonial na Amazônia – apesar de todas as discussões atuais, era uma caiopradiana convicta. Mineira de Belo Horizonte. Gostou de Belém. Mas detestou o calor, a violência e o trânsito. Em certa manhã, ela foi comprar pão de gergelim, seu favorito. Dalcídio se apaixonou avassaladoramente. “Veja dois pães de gergelim, quentes, por favor” – ela pediu de forma solicita e sorridente. Ele que estava distraído dando instruções a um funcionário, quando ouviu aquela voz doce e forte, ficou paralisado quando a viu. “Cinqüenta centavos, moça” – disse com a voz embargada pela emoção. Ela prontamente lhe deu o dinheiro e recebeu seus pães quentes.

Todos os dias, Julieta ia religiosamente comprar pão na padaria de Dalcídio. Com o convívio começaram as conversas. Dalcídio procurava qualquer desculpa para iniciar uma prosa. Elas se intensificaram no dia em que ele viu um livro do Pessoa na mão dela – se identificava com Álvaro de Campos. Ele era vidrado em literatura – sobretudo, obviamente, a portuguesa; mas gostava da brasileira. Era a afinidade que ele precisava. As conversas foram se tornando mais densas e interessantes. Foi, a partir desse momento, que Julieta reparou de verdade em Dalcídio. E percebeu que ele era apenas um dono de padaria. Descobriu um homem inteligente e simples. Começou a chamá-lo de Guilhermino – gostava do segundo nome dele, e já era um sinal de intimidade. Não demorou muito para que o romance se estabelecesse – por iniciativa dela, a timidez de Dalcídio, sua inteligência e simplicidade haviam lhe conquistado.
No final da tarde, de uma segunda-feira, ela se sentou na padaria e pediu dois cafés. Dalcídio achou estranho. Quando chegou com as duas xícaras de café, ela pediu que ele sentasse e lhe acompanhasse. Começaram a conversar. A cada gole de café, a conversa foi se acalorando. As discordâncias os aproximavam. A inteligência dos argumentos os encantavam. A ironia e sarcasmo das respostas estabeleciam o contato. Depois do último gole de café de Dalcídio, Julieta beija-o subitamente. Ele fica surpreso com a correspondência. Contentamento e sublimação invadiram Dalcídio. O amor encontrou lugar no seu árido coração. Dalcídio iniciava-se pela senda do amor – nunca havia amado na vida.

Foram dois anos da mais completa felicidade ao lado de Julieta. Ele conheceu Minas e se encantou – viciou-se em pão de queijo. Ela visitou Portugal inteiro e não queria mais voltar – se tornou apreciadora inconteste de fado, vinho do porto e bacalhau. Ora ela dormia na casa dele, ora ele dormia na casa dela. Ela aprendeu a fazer o pão de gergelim que tanto gostava – que Dalcídio dizia, em tom de troça, ser pão de passarinho. Do seu passarinho. E ele já era um mestre na arte de fazer pão de queijo – leia-se: pão de queijo a moda mineira; porque, cá entre nós: seria muito estranho um dono de padaria não saber fazer pão de queijo. O apelido dela era “Iaiá” – por conta de uma música que ela gostava, de uma banda que ele não conhecia. A propósito: ele aprendeu mais de música e literatura brasileira. Ela apenas o chamava de “Guilhermino”. Ele adorava o jeito com qual ela fazia carinho em sua barba grisalha, um carinho com suas mãos tão macias e o seu rosto. Roçava delicadamente o seu rosto na barba dele. Ele sentia o seu cheiro: perfume de camomila. A forma como as mãos rústicas dele afagavam seus rebeldes cabelos crespos lhe traziam um sentimento de segurança e paz plenos. Dalcídio ganhava o dia quando via os lindos olhos verdes de Julieta sorrindo timidamente em sua direção.

As diferenças e distâncias mediavam à relação. Julieta tinha seus defeitos e qualidades. Dalcídio não era diferente. Contudo, o ciúme de Dalcídio foi o início do fim. O seu ciúme foi a origem da ruína. Não era algo normal. Nada daquela anedota popular que diz “o ciúme é o perfume do amor”. Nada disso. Dalcídio tinha um ciúme e desconfiança quase que patológico por Julieta. No começo, ela compreendia. Ela o amava. Contudo, com o tempo, a situação tornou-se insustentável. O encanto dissipou-se. O amor arrefeceu-se. Estava sufocada. Ela havia mudado por ele. Agora, estava mudando dele. O interesse por outras pessoas tornou-se inevitável. Chegou-se ao ponto que qualquer um era melhor que Dalcídio. Qualquer um era mais suportável que ele. As brigas intensificaram-se. As conversas ficaram curtas. Os silêncios dizendo tudo. A situação estava insustentável. E Dalcídio achava que podia levar a situação, que um dia ele iria melhorar. Ledo engano.

Em uma manhã de segunda-feira, Julieta apareceu na porta da padaria. Estava com o semblante sério e decidido. E ao seu lado, uma mala. Avisou-o pessoalmente que ia embora – achava que ao menos, por conta de tudo que haviam vivido, era mais digno a se fazer. Foi embora com o seu professor de Filosofia Política, chamado Péricles Carneiro – também mineiro, estavam voltando para Minas; ele era de Itabira. Ela disse: “Adeus, Dalcídio. Fique bem. E sejas feliz”. Resignado e com o rosto banhado em lágrimas, ele apenas acenou positivamente com a cabeça. Sua garganta estava tão embargada que não sairia o menor som audível. Ela partiu. Ele bebeu todo o seu estoque de vinho. Não conseguiu mais trabalhar, conversar. Ele não conseguiu mais viver. Depois da última garrafa de vinho, foi dormi. E não acordou mais. Dalcídio morreu de tristeza. Dalcídio morreu com o seu amor, ciúme e tristeza.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Jurandir




Já estou vendo os narizes torcidos dos românticos ao lerem esse texto. Ou daqueles defensores da felicidade só existe a dois. Ou que é impossível ser feliz sozinho. Primeiro: o que seria a felicidade? E se ela existe, ou se pode ser alcançada. E qual seria o seu sentido individual ou social. Já estou com a minha péssima mania: procurar explicação pra tudo. Enfim, não é esse o propósito destas tortas linhas.

Queria apenas compartilhar uma constatação óbvia e, por ser evidente, nem sempre é vista: a solidão é sublime.

Meu nome é Jurandir. Tenho 30 anos. Sou funcionário público – inspetor da alfândega; isso mesmo: fiscalizo a vida alheia. Solteiro – obviamente. Moro só – óbvio novamente. Não tenho amigos – idem. Portanto, sou só – como deu para perceber. O que ainda dá sentido para a minha existência é ler, escrever e ouvir música. Cinema e café. No momento, estou fazendo um curso de alemão por correspondência. Tentando acabar uma poesia sobre o amor. Procuro algum lugar para consertar meu toca-vinil – sou colecionar fanático. Estou procurando a relíquia “Matança de porco” do Som Imaginário – quem estiver vendendo, sou um potencial comprador. Parando de fumar. Muito puto por ter comprado um livro de crônicas do Saramago num sebo desses da vida, bem barato, isso mesmo, acredite, ele escrevia parágrafos curtos, e, quando estava lendo hoje, o livro quebra – não há coisa que mais deteste do que livro quebrado. Prontamente, tive que colar com fita durex e cola, senão não ia conseguir terminar a leitura. Estou quase no fim – agradável leitura. Aprecio textos curtos. Adoro ler tomando chá e mastigando bala de gengibre.

Enfim, depois da minha chata digressão sobre mim mesmo – pessoas solitárias são assim mesmo: adoram falar de si – e genuinamente chatas. Antes, sentia-me mal por conta dessa condição. Porém, percebi que é a única condição humana de facto. Admito que não seja uma condição fácil de ser percebida, e de saber lidar. Para tal, é necessário inteligência e reflexão. Saber lidar com a própria solidão é um exercício de pensamento de longo prazo. Para a vida toda. Mas cheguei a essa constatação quando comecei a me sentir só na presença de pessoas – o que já faz um tempo. Paradoxal, não? Mas foi o que comecei a sentir. E depois observei mais atentamente a diferença mínima que fazia na vida destas mesmas pessoas. Quer dizer: eu não fazia falta. Nenhuma falta. Não que isso fosse um problema.

Mas foi um índice importante: eu precisava ficar só. Sobretudo, quando não se faz falta. Naturalmente, isso foi um processo. Mudanças como estas não podem ser abruptadas. Não digo por mim. E sim pelas pessoas. Porque ninguém admite de livre consciência que alguém não lhe faça falta. Isso soa pouco politicamente correto. É necessário ser hipocritamente correto.

Hoje, sinto-me só. E muito bem.

Não ter preocupações com conveniências sociais. Minhas preocupações estão relacionadas a chegar ao horário no emprego – tenho que garantir a minha sobrevivência. O que vou comer no almoço e na janta. O que vou ler – leio cinco livros por semana. Ouvir – até consertar meu toca-disco, estou sem ouvir nada, e isso me agonia. E assistir – às vezes vou ao cinema, óbvio que cine-clube, não há nada que preste nos cinemas comerciais. Constatei, caro leitor, que sou muito mais feliz comigo mesmo. Achei-me na solidão. Sou uma ótima companhia para mim. Cansei das pessoas. Elas são tão estúpidas. Do alto da minha experiência, lanço uma tese: a felicidade, se é que existe, ela só pode ser alcançada na solidão plena e sublime – se tiveres companhia, ela vai te atrapalhar com ciúme da tua felicidade, e vai perguntar por que estais alegre, o porquê desse sorriso na cara, se tens outra etc. etc. etc. Na dúvida: fique só – vais me agradecer o conselho, caro leitor.
(Felipov)