terça-feira, 28 de setembro de 2010

Especial

“Tenho uma pessoa especial, e essa pessoa é você”, nunca um enunciado tão curto fez tanto efeito em mim, inscrito à caneta tinteiro um pouco borrado em razão da tinta não ter secado de todo, em um cartão postal com imagens dos campos do sul da Irlanda – ela mora lá. Quanto li essa linha, fiquei feliz instantaneamente, porque te fizeste materialmente presente, pois a muito os meus pensamentos, anseios e desejos convergem pra ti, pra tua imagem, ou melhor, a imagem que faço de ti, a forma como te imagino. Soube que sou especial. Soube que me tens. De fato: sou teu. Eu fico bobo com tudo o que me faz lembrar-te. Quando a tua imagem me vem à mente, apenas coisas boas eu consigo pensar. Por um lado, boas, porque pensar em ti me faz bem. Capitu (é o apelido dela; é, podem dizer, eu sou piegas mesmo), teus olhos de ressaca, me faz bem. A obliqüidade e dissimulação me fascinam. Encantam-me. O cheiro das amêndoas de amores contrariados exala docemente dos teus cabelos cor de cobre. O céu personifica a tua imagem. O teu terno sorriso me faz bem. Quando te conheci, eu estava muito seco, sem sentimentos, muito desiludido das coisas. Porém, hoje tenho estado mais contente, mais bem-humorado, mais alegre, mais entusiasmado. Às vezes, me vejo feliz por simplesmente estar pensando em ti, um sossego, um contentamento me invadem. Criastes um lugar cativo no meu coração. E digo isso sem receio. Por outro, bobas por conta de quer-te incondicionalmente. Querer-te na tua chatice, na tua rabugice. Querer-te nos momentos difíceis, nas tristezas e pesares. Querer-te nas brigas e discussões. Querer-te na discordância. Querer-te na separação. Quer-te na compreensão. Querer-te no reencontro. No respeito às diferenças e semelhanças que tanto nos atraem. É o filme do Godard que não gostei e adorastes – fico encantado com o teu jeito de gesticular para me convencer que o filme era bom. O do Bergman que foi fabuloso e dormistes – ela sempre dorme quando não gosta, não tem como ficar com raiva em te ver dormir sob o meu colo. Os diretores italianos que tanto gostas. A Nouvelle Vague e o Tarantino que aprecio. É o livro do Mann que achei incrível e opinastes que podia ser melhor. Eu não poder falar mal do Gabo – só de pirraça, para te ver zangada, pois também gosto dele. Eu adoro te chatear, te ver de bico, braços cruzados, criticando tudo o que falo. O gostar de gatos – bichos inteligentes, independentes e temperamentais. De literatura russa – nem falei do cinema russo, pra não ficares falando que fico puxando o saco deles. De capucchino – sempre, sempre, sempre, nos encontramos por meio dele. Discutirmos política pela madrugada – aqui concordamos em parte em muita coisa, mas somos unânimes em rir dos liberais. Musicalmente, concordamos em muita coisa. Só não gosto muito de Caetano – mas como sempre, tens-me feito reavaliar algumas das minhas opiniões. Ainda bem, porque o Caetano do passado é bom, o do presente, não. E, demasiadamente, mais bobas em sonhar que me queres. Fico curioso em saber o que pensas, o que queres, o que desejas. Curiosidade de saber das tuas curiosidades, entende? Mas algo me entristece: a distância. A distância do teu cheiro. A distância da tua presença. A distância da tua ausência. A distância dos teus carinhos. A distância do teu amor. A distância do teu silêncio. A distância dos teus gracejos. A distância dos teus problemas. A distância da tua vida. Enfim. A distância de dizeres que sou especial. E eu ficar tão inconsolavelmente feliz.
(Felipov)

domingo, 19 de setembro de 2010

Memória

“A coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão”. Sempre que leio esses últimos três versos do poema “Memória” do Drummond, eu me sinto reconfortado com o passado. Com as coisas findas. Com as coisas vividas. As coisas lindas que se foram e ficaram na lembrança. Confesso que sou demasiado saudosista e nostálgico com as lembranças. Quando elas vêm, eu paro, tomo um café e roço a barba. Pensativo, contemplativo, vislumbrando aquilo que foi. As lembranças têm um cheiro de café quentinho. O café quente, encorpado e saboroso que só a minha mãe sabe fazer. As reminiscências me deixam feliz e triste. E elas estão relacionadas ao que foi e ao que não foi. Há factos e não-factos. Ao real e imaginado. Encerrado em lugares, coisas, cheiros, cores, dias, tempo e pessoas. O cheiro do jambeiro e o gosto de purê de batata com picadinho que me levam a infância. Jogar futebol com o pessoal da escola. As brigas no jogo de botão – é, eu brigava quando o adversário não armava direito o goleiro, ou quando marcava um gol entrando goleiro e tudo no gol. Os poucos aniversários comemorados que tive, a minha mãe apenas fazia um bolo de macaxeira e suco de cupuaçu, chamava a família e uns poucos amigos. Isso era o bastante pra mim. Sentia que isso era o festejar o dia dos meus anos. As peraltices e más criações que renderam brigas e surras. O primeiro beijo, que foi rápido e especial, com cheirinho de alfazema – era o perfume dela. O cheiro da chuva no fim da tarde. Os fiapos de manga entre os dentes. A boca suja de açaí. A mão melada da pupunha saborosa feita na hora. O calor insuportável quando voltava da escola. O interesse pelas moças. O interesse delas por mim. As desilusões juvenis. O gosto por saber mais, de gostar de estudar. O gosto pelos livros. A predileção por História e Matemática. E depois, apenas pela História. E depois, ainda, pela Literatura. É, tive bons professores. As lembranças recentes, por conta de experiências indeléveis, são docemente tristes, e amargamente alegres. O carinho na barba que me deixou bobo. O abraço e os cabelos dela na minha face. O dia todo junto que pareceu tão pouco. A sua chatice e curiosidade que me encantavam. As viagens com os amigos. Os encontros. Os desencontros. As separações. Desentendimentos. Brigas. Confusões. Alegrias. Tristezas. Pesares. Conquistas. Avanços. Recuos. Equilíbrio. Solidão. Dúvida. Dor. Afagos. Distância. Silêncio. Braços, pernas, bocas e vontade. Mãos. Desilusão. Desprezo. Esquecimento. Sentimentos. Sono. Sonhos. A preocupação com o peso. As contas atrasadas. O cabelo por cortar, a barba por fazer. As lembranças vêm e vão. As lembranças me lembram o que disse Tom: “Eu sei que vou sofrer a eterna desventura de viver”. Em outras palavras: viver a ventura de viver. Ou melhor, como escreveu Gabo: “a vida não é a que gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”. Foi o que fiz: recordei a eterna desventura/ventura de viver.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Amizade

Tenho poucos, raros amigos. Apesar de valorizar muito os amigos, tenho poucos. Tenho a incrível capacidade de não manter relações humanas estáveis. Mesmo de amizade. Eu tento manter amigos à distância. Ledo Engano. É óbvio que isso não é possível. Por isso que são tão poucos. E agradeço a paciência desses raros amigos. Eles precisam de muita paciência para me suportar. Às vezes me pergunto qual o motivo de ainda serem meus amigos. Ao contrário da família, que tem a consangüinidade e parentesco e todas as conveniências e obrigações sociais subjacentes a isso, os amigos são relações sociais criadas por afinidades, convergências e divergências. Porém, sem qualquer obrigação. Pode ser ou não. É uma escolha. Eu sei que não sou um bom amigo. Sou ausente, chato, taciturno, que discute por tudo, que discorda de qualquer coisa, inconveniente, e toda a sorte de péssimas qualificações sociais. Uma pessoa amarga que por questão lógica não deveria ter amigos. Contudo, ao largo da lógica, tenho poucos, raros amigos. Amizades genuínas. Companheiros de conversas tensas, atenciosos (mesmo que sejam 15 minutos, cronometrados no relógio de pulso e anotados no bloco de notas), engraçados (parece que vivem a comer palhacitos, com tiradas cômicas que só faltam me matar de tanto rir), irritantemente inteligentes (é, eles são inteligentes, caso contrário, não seriam meus amigos), implicantes (a implicância virou uma arte na mão deles), conselheiros (é, eles se metem na minha vida), críticos (eles vivem me criticando, nos criticamos mutuamente, nos divertimos na crítica), nerds (é possível ser amigo de nerd sem ser nerd?). Enfim, pessoas sem as quais não me encontraria no mundo. São o meu contrário e semelhança a um só tempo. Eles são próximos e distantes. Que vejo sempre e de vez em quando. Mas são sempre presentes, mesmo na ausência. É uma ausência presente. Os aniversários lembrados, os presentes dados (eles sabem que só gosto de livros como presente), os abraços de reconforto, as palavras de apoio, as críticas sempre pertinentes, os elogios na hora certa, as fanfarronices de vez por outra. A vida compartilhada. Amigos, de perto e de longe, presentes e ausentes, com o passar do tempo, percebi que amizade é uma questão de escolha. São os amigos que nos escolhem. Obrigado por terem me escolhido.

sábado, 11 de setembro de 2010

Morgana

Minha mãe morreu ontem. Recebi a notícia hoje. E vou ao enterro amanhã. Ela chamava-se Elvira. Dona Elvira. Estou arrumando a mala. Ela morava longe. Ela já estava longe a muito tempo de mim. Não nos dávamos muito bem. Saí de casa aos 18 anos – hoje estou com 25. Ela nunca me aceitou. Nunca aceitou minhas idéias e o meu jeito de encarar a vida. Sempre muito rígida e preocupada com o que outros pensariam. Em ser motivo de fofocas ou piadas. Muito religiosa, queria que eu vivesse na igreja. Que eu fosse obediente, prendada, calada e uma ótima esposa. E que tivesse como marido um homem da igreja e com emprego fixo – funcionário público, de preferência. Honrado, reto, integro, sem vícios e família bem falada. Eu fui a única dos meus irmãos que não casei, não flertei, não me relacionei ninguém a olhos vistos. Sempre fui a solteira, a que ficaria pra “titia”. E a que gostava de estudar, ler e escrever excessivamente, ou pelos menos, ao que era conveniente a uma mulher de cidade interiorana. Fui criada em uma cidade cujos espaços de diversão eram: a igreja, a praça e o circo. Eu não gostava de rezar, de aglomerações e de palhaço – sempre os achei sem graça. Afastada e só, dentro da minha família mesmo. Nunca tive paciência para as minhas duas irmãs projetos de “maricotinha” e os meus dois irmãos, de “cowboyzinho”. Lacônica, quieta e sozinha, eu apenas me entendia com uma categoria de coisas no mundo: os livros. Foram eles que me ensinaram a subversão, a crítica, a indignação. Ainda bem que na cidadezinha havia uma biblioteca – com bom acervo, por sinal. Os clássicos da literatura brasileira e mundial habitavam carcomidos as suas prateleiras velhas, empoeiradas e solitárias. A minha rinite reclamava do cheiro de livro velho que tanto gosto. Madame Bovary e Ana Karênia eram inspirações. Ambas me mostravam que era possível pensar e agir diferente em uma sociedade conservadora. Por mais que tivesse problemas com a minha mãe, não concordasse com nada que ela pensasse ou dissesse, eu a admirava. Viúva cedo, meu pai morreu por conta de um acidente de carro, criou os filhos só, como costureira. Sempre foi altiva, briosa e autoritária. Não admitia conversas na mesa, a refeição era sagrada. Nem brigas, quem brigasse era severamente castigado, com toda a sorte de castigos – nem preciso dizer o quanto eu fui castigada. E muito menos que se questionasse uma ordem ou vontade sua – ela nem discutia, apenas olhava com um olhar inquisidor. Uma vez questionei por devíamos rezar tanto, ela apenas disse-me, secamente: “Agora vais rezar pra Deus te curar da surra que vou te dar menina insolente”. Eu tinha dez anos. E tive que rezar mesmo, porque levei uma surra de vassoura de açaí que demorou uma semana para estancar a dor. Nunca mais a questionei, ao menos verbalmente. Saí de casa porque ela queria me casar com um primo, um tal de Francisco, que trabalhava como escriturário no cartório da cidade. Quando ela veio me impor o destino, eu gritei-lhe na cara: “Enfia esse pretendente no cú, quem manda na minha vida sou eu”. Dali pra frente, era eu e a minha parca inteligência. Uma coisa que ela sempre me dizia, por conta da minha intempestividade lacônica: “Morgana, minha filha, aprenda uma coisa na vida: só tem honra quem tem dinheiro”. Nesse dia, eu mostrei-a que tinha honra e nem um pouco de medo dela, e que queria apenas que minha vontade e opinião fossem respeitadas. Fui morar na casa de uma tia na capital, a tia Anastácia, solteira, fanfarrona, hipocondríaca e advogada, e me formei jornalista. Moro só, com o Boris – meu gato laranja. E tenho um rolo com o Ivan – que trabalha comigo no jornal. Quando estava voltando do trabalho, recebo a ligação de Margarida, minha irmã mais velha, informando sobre o falecimento. Cheguei à cidade bem na hora do enterro. Meus irmãos pediram que eu fizesse um discurso em nome da família. Fui de curtas palavras, apenas disse: “Aqui jaz um tipo de pessoa rara hoje em dia: briosa, de caráter e palavra. E digo publicamente: mãe, admiro-te profundamente, porque te amar eu sempre de amei”. Uma coisa que lamento é nunca ter falado que a amava. Depois fui saber pelos meus irmãos que o dia que ela mais lamentava na vida foi o que saí de casa, e que se arrependia mortalmente. E que eu era a sua filha favorita, a mais parecida com ela. A sua imagem e semelhança. Chorei amargamente por saber disso. Quando voltei a minha vida normal, soube que estava grávida. É, ela me chamou: a condição feminina inexorável de ser mãe.

domingo, 5 de setembro de 2010

Um sonho

Primeiro, foi ela quem me encontrou. Dou graças até hoje por isso: sou incorrigivelmente tímido e sem iniciativa. Apenas olho, contemplo e observo. Sem qualquer pretensão ou ação. Claro que tenho os meus lampejos, ou melhor, os meus espasmos de atitude e iniciativa. Eles são raros. Já tentei me perguntar o porquê disso. Foi mais uma boa pergunta sem resposta – das muitas que já fiz a mim sobre mim mesmo.

Mas, enfim, quero falar dela. Do encontro.

Quando a vi pela primeira vez, eu estava sentado no banco da praça que tem perto da vizinhança, lendo o jornal, ela passou com alguma rapidez, com uma sacola de pães nas mãos, dirigindo-se a sua casa. Trocamos olhares. Seus olhos me encantaram no primeiro instante. Não havia nada de especial neles, mas eles me encantaram, pois expressavam a sua alegria e melancolia. Certa vez, na minha leitura matinal, ela sentou do meu lado. Pensei que fosse outra pessoa qualquer, um dos meus amigos comentaristas de futebol ou política. Quando a vi, fiquei um pouco surpreso. Ela percebeu a minha surpresa e deu um leve sorriso, e sorri com ela. Disse: “Já tomaste café?” – bastante solicita. Pensei e respondi: “Ainda não” – um tanto envergonhado.

Fomos a um café perto da praça.

Pedimos dois capucchinos e começamos a conversar.

Falou-me de sua vida, das suas preferências e gostos culturais e posicionamentos políticos. Disse-me que gosta do teatro e poesias de Brecht, dos romances de Saramago, Dostoiévski, Mann e Joyce, e ter especial predileção por Florbela Espanca. Discorria com tanta propriedade sobre literatura, apresentando suas impressões e preferências, detalhes, personagens, citava partes inteiras de memória – ela falava com as mãos também, gesticulava com tanta graça, efusividade e gravidade. Fiquei impressionado com tamanha demonstração de erudição literária. Sobre música não foi diferente. Ia da música clássica, passando pelo rock progressivo, a música brasileira, do samba, mutantes, Chico, Caetano, a Paulo Diniz – e cantava alguns trechos com tanta graça e charme, com uma voz linda de soprano. Emudeci. Apenas apresentava minhas opiniões e gostos de forma lacônica.

Queria apenas ouvi-la.

Queria apenas que me encantasse.

Quando começou a falar sobre política – mas já tinha percebido que era uma crítica do liberalismo, do casamento, a favor do aborto, na verdade, pelo pouco que percebi, em matéria de política, ela era daquelas que “devemos aceitar tudo, menos o que pode ser mudado” –, a garganta já estava seca, e percebemos que o capucchino estava demorando.

O capucchino já estava vindo.

Nesta hora, ela parou de falar e olhou-me nos olhos.

Ela viu como eu a chamava, fiquei um pouco envergonhado, e toquei as suas mãos. Agora, foi ela quem corou, cheguei mais perto e toquei os seus cabelos. Mais perto cheguei, e senti o seu cheiro inebriante. Mais perto ela chegou, elogiou meus olhos verdes, e afagou-me a barba.

O capucchino chegou.

E eu acordei.

Pena que tenha sido apenas um sonho.