quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Devo lhe dizer (*)



Devo lhe falar que amo outro e que aquele quarto escuro, que por tanto tempo foi seu, pertence hoje a outro dono.

Devo lhe falar, para que não fique dúvidas, que brinco; lambo; chupo o membro dele como fazia com o seu.
Quando ele mete, encaixo-me perfeitamente e mais perfeitamente me desencaixo.

Devo lhe falar, com um pouco de nostalgia, que riu; tremo; suspiro; peço, com aquela voz baixinha, que ele pare quando sua boca, macia e molhada, desliza nos meus seios e desce lentamente pelo meu ventre arrancando-me risos das bocas.

Devo lhe dizer, mesmo que da boca para fora, que meu corpo já não aguenta tanto gozo, meus pulmões já não suportam tantas tragadas sexuais e que morro de saudades...

(Suellainy Cruz)

(*) Este é mais um texto de uma colaboradora-simpatizante deste blog – Obrigado Su.

domingo, 28 de agosto de 2011

Política




O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas.

O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais. 
(O analfabeto político – Bertold Brecht)


Hoje é domingo. Como é de costume, acordo cedo, faço café, passo na padaria, compro pães e o jornal. Troco algumas palavras com o feirante da esquina, que sempre conta uma pilhéria sobre o meu time, e travamos um rápido diálogo sobre esporte – quer dizer, sobre futebol. Pergunto-lhe se concorda com subsídios governamentais, friso bem dizendo que é dinheiro público, dos impostos pagos todos os dias na margarina ou nos vegetais que ele vende, nas dívidas dos clubes, sendo eles entidades privadas, em sua maioria – ou seja, o público em função do privado. É visível a quebra no ritmo da conversa, fita-me com ar de desconfiança, pensa um pouco, e nada me responde. Sempre compro quatro tipos de jornais: um internacional, outro nacional e dois regionais. Indago ao jornaleiro se ele leu a seções de Política e Economia dos jornais, de forma amistosa, na malemolência das conversas cotidianas. Diz-me que nunca tem tempo, que apenas passa os olhos nas manchetes da parte de Esporte, Polícia e Entretenimento – fica igualmente reticente com a pergunta. Semana pós semana, questiono as mesmas coisas, e ambos dão-me as mesmas respostas. Fiquei com isso na minha cabeça. Quando leio os jornais, inclino-me a ver os diferentes pontos de vistas sobre as mesmas informações – caro leitor, pode perceber, as notícias são as mesmas, se diferenciando apenas quanto à redação, à diagramação e os detalhes, mas são rigorosamente idênticas. Na verdade, gosto de identificar as contradições de classe traduzidas em informações imparciais, neutras e “verdadeiras”.  É um ritual, iniciar a semana, lendo jornal e tomando uma bela caneca de café – a garrafa fica ao meu lado, consumo uma inteira. Sento na minha poltrona favorita e gasto a manhã de domingo neste ritual. É um ritual político. Informa-me sob diversos pontos de vista é uma questão política na formação da minha opinião. As manhãs de domingo são o espaço que reservo na minha curta e diminuta existência para formar a minha posição política. Todas as semanas, faço perguntas com as mesmas intenções. Indiretamente, lanço questões em que procuro saber o que as pessoas entendem sobre a vida alhures. Sobre as condições de sua vida cotidiana. Fico preocupado. Porque vejo que não há respostas. Não são feitas questões. Há apenas reprodução. Simplesmente as pessoas comuns não observam a Política nas suas vidas cotidianas. O corriqueiro ato de ler um jornal é uma atitude política. Saber sobre Economia e Cultura. A Omissão é um ato político. A Desinformação é política. A Alienação igualmente. Tudo é Política. Absolutamente tudo que é humano tem encerrado em si múltiplos interesses sociais que indicam a ratificação ou retificação de práticas políticas que reproduzem ou contestam as estruturas sociais que fazem com que alguns possam ter a mais portentosa vida real, e outros morrerem na mais servil miséria. De todo modo, caro leitor, como a minha chatice manda, lanço-lhe uma questão: O QUE É POLÍTICA?? – espero, sinceramente, ter uma resposta. Uma sugestão: utilize melhor seus domingos.

(Felipov)

sábado, 27 de agosto de 2011

Baltasar





Mas a filosofia hoje me auxilia 
A viver indiferente assim

(Filosofia - Noel Rosa) 


Estava andando com pressa, em passadas ritmadas, ora rápidas, ora vagarosas, e visivelmente exausto – sempre temia de ser seguido ou assaltado. Barba mal-feita, cabelo desarrumado, decrepitamente magro e um cigarro na boca – desprezava o padrão dominante de beleza. Cabeça baixa e mãos nos bolsos – a taciturnidade lhe definia. Sapatos gastos, calça de um marrom desbotado, e uma camisa social branca, puída e amarelada – visivelmente não gastava dinheiro com roupas. Caminhava se desviando das calçadas irregulares, camelôs e transeuntes mal-educados e com pressa. Vinha do trabalho. De mais um dia cansativo de trabalho. O expediente no escritório havia sido profundamente estafante. Ter que lidar com pessoas com as quais não tinha a menor afinidade – mentecaptos tecnicamente instruídos que não conseguem fazer um exercício de pensamente independente, não foram treinadas para tal. Suportar um chefe prepotente, arrogante e doutamente ignorante – que arrota uma erudição inócua, que arroga ter sucesso, e possuir uma família feliz. Fazer o trabalho de analisar várias peças criminais como se aquelas vidas ali descritas fossem apenas um amontoado de casos juridicamente prescritos e abstratamente resolvidos pelo enquadramento em meia dúzia de artigos, parágrafos e incisos – e dizem que isso se chama Justiça. Baltasar era um especialista adestrado a decorar um sem número de leis chamado advogado – o velho bacharel oitocentista. Não queria conversa com ninguém. Estava preso nos seus pensamentos. Queria apenas sentar em um bar, sozinho e ter o prazer de beber uma cerveja. Apenas isso. Nada mais que isso. Deu uma última tragada no cigarro e cuspiu no chão. Desejava um gole de cerveja. Chegou ao bar que sempre freqüentava. Sentou-se e esperou ser atendido. O garçon veio, e pediu uma cerveja. Tomou um gole, e veio aquela sensação prazerosa de beber uma cerveja. Acendeu mais um cigarro. Inesperadamente, ela veio pedir fogo. Simplesmente linda. Cabelo castanho, crespo, olhos cor de mel, alvamente branca, era impossível não notá-la. Ela agradeceu toda interessada naquele tipo profundamente estranho. Quando a viu ficou um pouco perturbado com a sua beleza, mas continuou indiferente. Era indiferente a tudo. Exceto a sua cerveja. Achou uma tremenda insolência o seu pedido de fogo. Não gostava de contatos humanos, da Humanidade em geral. As pessoas, a seu ver, eram demasiadamente ridículas, estúpidas, crédulas, chatas e cansativas. Nenhum contato valia à pena. Ela fitava-o, interessada, entre goles de cerveja e a conversa com as amigas na mesa vizinha. Ele olhava indiferente. Duas coisas ocupavam seu pensamento: o mal-estar que seu trabalho lhe provocava e o planejamento de sua viagem à Europa. A cerveja acabou. Levantou-se para ir embora, e passou ao lado da mesa dela. Ela pegou no seu braço, dando-lhe um susto, carinhosamente abriu sua mão, colocou um bilhete, e a fechou com um beijo. O bilhete dizia: “me telefone e um número de celular”. Baltasar leu o bilhete, amassou-o, fez uma bolinha de papel e jogou na mesa, olhou-a com asco e disse: “não venha me intimidar com a sua estúpida beleza, guarde-a para si. Vou te prestar um serviço, mesmo em um bilhete informal, inicia-se um período com ênclise. Vá estudar. Eu simplesmente desprezo a sua beleza. FOUUUDA-SE”. Disse e foi embora. Antes de ir em casa, tinha que passar na farmácia, comprar pasta e fio dental, e alguns antigripais – estava com rinite. Chegou em casa, tomou banho e foi dormir – tinha que acordar cedo para trabalhar. Este foi menos um dia na vida de Baltasar.

(Felipov)

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Afrosambas – um elogio da africanidade brasileira


Com os afro-sambas, o violonista Baden Powell e o poeta e diplomata Vinicius de Moraes transportam a mpb para o terreiro de candomblé. Ao lado, a capa original do LP, lançado pelo selo Forma em 1966.



Os afro-sambas foram feitos lá pelos idos de 1962 e gravados em 1965/1966. Em qualidade sonora – foi a pior naquele tempo; só existiam dois canais em hi-fi. Foi gravado num daqueles dias, em que caía um temporal histórico – o estúdio estava transbordando de água e chuva – cantava e tocávamos em cima de algumas caixas de cerveja e uísque que há muito já havíamos consumidos – estamos todos com muita raça, mas também bastante bêbados. Poucos profissionais – até as namoradas, mulheres e amigos participaram da gravação.

Baden Powell em carta ao amigo Joel em 1º de novembro de 1990. 

“Essas antenas que Baden têm ligadas para a Bahia e, em última instância, para a África, permitiram-lhe realizar um novo sincretismo: carioquizar, dentro do espírito do samba moderno, o candomblé afro-brasileiro, dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal”

Afirma Vinicius em nota do LP Os afro-sambas de Baden e Vinicius.


Estes depoimentos de dois gênios da música brasileira proporcionam um pouco a dimensão da obra-prima que produziram. Depois do LP “Os afro-sambas de Baden e Vinícius”, lançado em 1966, o cenário musical brasileiro não foi mais o mesmo. A África assume de vez um lugar de centralidade como referência, não mais limitada à influência estritamente musical, e sim, desponta como conteúdo de composição, no qual a sua cosmovisão de mundo é elevada a termos universais. Estabelece-se com este disco um elogio a africanidade brasileira. Digo de pronto: não sou crítico musical – ou coisa que o valha. Gostaria apenas de escrever um texto de impressões – de um apreciador de música. Na verdade, de um disco que me causa grande impressão, e, que, a meu ver, representa uma das mais bem sucedidas parcerias da música brasileira: Baden Powell e Vinícius de Moraes. Funde-se neste disco dois elementos geniais dessa parceria. Baden e as suas inovações no violão clássico, conseguindo de modo nunca visto na música brasileira combinar acordes eruditamente formados que expressavam a cultura popular. Por sua vez, Vinícius, poeta e compositor consagrado, nesse momento entrava em contato com a cultura africana, que lhe causara profunda impressão, sobretudo, a sua forte influência na cultura popular. Em outro momento, Antonio Candido, um dos maiores historiadores e críticos da Literatura Brasileira ainda vivo, havia dito que Vinícius tinha conseguido fazer com que a sua poesia fosse vivenciada de maneira cotidiana, por meio da sua musicalidade, coesão e expressão. Quer dizer, transformou-se a poesia em música popular. Acredito que aqui resida a especificidade destes afrosambas: seu caráter eminentemente popular que é construído com elementos refinadamente eruditos. Todavia, não somente isso. Há um só tempo, temos a conexão, por um lado, da complexa poética existencial que marca toda a obra de Vinícius de Moraes. Destaco aqui a sua idiossincrática concepção de amor. A rigor, em termos sintéticos, o ato de amar para o poetinha é visto com toda a passionalidade do amor romântico. Amar é se entregar. Amar é sofrer. Amar é ter paz. Amar é viver. Todavia, é um romantismo que tem uma dinâmica dialética com outras experiências existenciais – a tristeza e a solidão. Que é indelevelmente relacionado, por outro lado, com elementos da cultura, mitologia e cosmovisão africana. Uma vez que o berimbau, Ossanha, Iemanjá, Xangô, Exu, ser da linha de Umbanda, o Saravá, ir ao Babalaô, fazer mandiga de amor, são alguns dos aspectos que definem a mitologia africana e que servem de intermediação nos conflitos, amores e dissabores que a condição humana experimenta em sua trajetória errante. É esse elemento de profunda identificação que assentou a cultura africana de maneira definitiva como conteúdo e letra na música brasileira. Transpondo isso para o cotidiano. Se hoje, quando me reúno com os meus amigos em uma roda de samba, e temos a predileção em cantar os afrosambas, cantamos efusiva e alegremente, em termos de celebração, a cultura africana. Elogiamos, de algum modo, a nossa africanidade ancestral. Reconhecemos a África que está dentro de nós, e nos define como brasileiros, como afro-brasileiros. Saravá!

(Felipov)

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Profissão (*)



Meu nome é Ivan e sou numismata. Com efeito, aposto que as senhoras e os senhores nunca ouviram falar dessa profissão, como todos os brasileiros burros que me cercam!
Meu nome é Ivan e trabalho com a esplêndida ciência das moedas. Melhorou? Não?! Isso porque eu, formado em História, com mestrado na Universidade de São Paulo, doutorado em Yale, pós-doutorado na França, sou simplesmente um anônimo. Um merda que boia na fossa a céu aberto que é esse país, cuja educação precária e a péssima memória para qualquer coisa que não seja futebol e carnaval fazem com que pessoas de nível incontestável, incólume reputação e cultura elevada, sejam preteridas em razão dessas baianas que chacoalham seus corpos fabricados em cima de carros de som.
Meu nome é Ivan e estou realmente enfurecido com a situação.
Meu nome é Ivan, mas bem que poderia ser Ernesto, Paulo, João, Carlos, Pedro, Jesus, ou o de qualquer outro homem que dedicou a vida a uma coisa que não foi enxergada por seus pares, a uma coisa que sequer seus pais sabiam o que era, a algo que não servia para nada exceto para assunto de pequenas reuniões de profissionais da área e leigos pretensiosos.
Meu nome é Ivan e logo que cheguei da Europa - ah, o Velho Mundo! - fui chamado para dar aula  numa respeitável instituição de ensino aqui nessa pátria de tolos. Sim, aquela mesma cujo reitor comprou uma lixeira de três mil reais. Lembro-me bem da minha apresentação no departamento de Arqueologia: um bando de bolsistas inúteis com suas barbas, chinelos, bermudas e caras de frequentadores de movimentos de nomes risíveis como Ruptura Socialista; professores incompetentes, mais preocupados com verbas do que pesquisa; e gestores corruptos com seus sorrisos intimidantes. Compraram-me um bolo de supermercado e todos apertaram minha mão. Ah, o Velho Mundo! Quisera eu ter permanecido por lá mas não há vagas para numismatas hoje em dia. Havia uma na Romênia, porém prefiro o Brasil, com essa batucada infame, ao traquejo de péssimo odor dos ciganos daquelas bandas.
Apesar de me chamar Ivan, fiquei logo conhecido como “o homem das moedas” e “Tio Patinhas”. Bando de cretinos! Tanto os discentes quanto os docentes falavam abertamente essas alcunhas infelizes. Na Europa não é assim. Lá há ética: falamos dos outros pelas costas, para que a punhalada seja à traição! Não existe esse costume horrível e anticivilizado dos brasileiros, essa avacalhação geral da nação! A Roma dos Césares nos legou o Direito, a estigmatização dos judeus e o Coliseu, mas não só: também o culto à traiçoeira arte de apunhalar pela retaguarda os inimigos! Os brasileiros não respeitam nada mesmo, bando de Neandertais!
Meu nome é Ivan e vou ao banco, ao departamento de trânsito, aos recursos humanos da universidade, ao escritório do plano de saúde, aos guichês das companhias aéreas, às seguradoras, às concessíonárias, às imobiliárias, às livrarias, e ouço sempre a mesma coisa: “O senhor é numis o quê?”. Cambada de filhos da puta, Neandertais! Austrolopitecinos de merda! Eu sou numismata! Numismata! Não sabem esses bandos de bastardos mestiços que compõem essa merda o que é Numismática? Não sabem que cada moeda fala de uma época, de uma complexa conjuntura cultural, de um contexto político-econômico particular, cujo conhecimento forma a base de toda compreensão da sociedade contemporânea?! Essas mulheres burras metidas em roupas feitas por tias costureiras com esses sorrisos estúpidos dizendo “posso ajudar” ignoram plenamente minha atividade. Não fazem questão de saber que estudei quinze anos da minha vida para isso. Lógico que todos sabem a grande merda que é ser recepcionista, bancário, corretor, advogado, secretária; essas profissões são as mais óbvias e medíocres. O desespero do numismata é viver num país onde ninguém sabe que ele existe! Eu existo, seus malditos subdesenvolvidos!
E meu nome é Ivan. Estou numa festa. É uma dessas celebrações acadêmicas, lançamento do vigésimo livro sobre alguma tribo imbecil lá do Xingú, Iama-vai-saber-o-quê. Todos os presentes são mestres, doutores e pós-doutores e bebem vinho barato em taças vagabundas que não sabem segurar para parecerem sofisticados. Comem canapés feitos pela tia de alguém e parvamente conversam sobre temas relacionados à Antropologia, sobre como esses seres bondosos estão sendo continuamente massacrados pelo progresso brasileiro.
Sento num canto e vem falar comigo um desses idiotas, Doutor Hendelmann. Dava muita ênfase ao seu nome alemão para diferenciá-lo da viralatice geral. Burro. Não sabe que a transmissão dessa doença latinoamericana se dá pela via aérea, não pela hereditária e muito menos pela cartorária.
   Olá, doutor.
   Sou pós-doutor.
   Ah sim, é que sou novo na instituição. Diga-me, o senhor é pós-doutor em quê?
   Em Numismática, sou numismata.
O Hendelmann fica em silêncio um tempo, encara solenemente o vazio do seu próprio cérebro, depois abre a boca mongolóide para dizer:
    Numis o quê?
Meu nome é Ivan e não estou suportando esta deficiência crônica de inteligência vinda daquele desperdício de educação formal. Um ser humano que tem doutorado, pago com recursos públicos, não saber que é Numismática? Basta, já é demais. Encaro mudo os olhos azuis do Hendelmann por muito tempo, depois pego a faca com que estava comendo o filé ao molho madeira e enfio violentamente na sua cavidade ocular até fazer o globo saltar da órbita, ficando pendurado por uma tira de carne. O Hendelmann está no chão enquanto eu limpo as mãos na toalha da mesa cheia de salgados e doces. Há gritaria, correria, pânico, mulheres choram. O autor do livro fica em polvorosa, isso realmente dará alguma publicidade àquela publicação insossa. Fico parado com o prato de comida nas coxas à espera da polícia que chega depois de duas horas.
Enfim, posso dizer às senhoras e aos senhores que fui preso e levado à cadeia, de onde saí, via habeas corpus, no mesmo dia para responder em liberdade. Foi aberto processo administrativo contra mim, que nunca fui bem quisto na universidade, e, posteriormente, a demissão foi aprovada pelo conselho em decisão unânime. Acharam que um desequilibrado como eu jamais poderia integrar aquele quadro respeitável e na portaria da punição estava anotado apenas arqueólogo. Filhos da puta.
 Agora estou aqui, perante Vossa Excelência e os demais aqui neste tribunal, sendo julgado pelo crime de tentativa de homicídio, o qual se nota que não cometi. Não gostaria de matar o Hendelmann; para mim, ele é apenas um micróbio numa vasta população de parasitas do saber, incômodos mas toleráveis. Não agi senão em legítima defesa da minha profissão, ao cometer o ato simbólico de ferir um homem que fora eleito involuntariamente por um povo semi-analfabeto para receber um título e, no entanto, não tem os conhecimentos mais banais acerca de um ofício da maior importância a qualquer organismo social.


*   *   *
Dado o depoimento do réu, todos os presentes estavam bastante apreensivos com o desenrolar do julgamento, menos o magistrado. O juiz, débil, senil e quase surdo, ignorando pelo menos oitenta por cento do que acabara de ser dito, começou a inquirir o acusado a respeito do ocorrido:
- Senhor Ivan, estou vendo que vossa senhoria está sofrendo de um grave transtorno mental, obsessão, psicose, ou algo que venha a ser declarado em laudo técnico assinado por profissional competente. No entanto, depois de examinar as evidências, ler e reler os autos, consultar a jurisprudência pertinente, só me resta uma dúvida: essa tal de Numistática é o quê mesmo?
Foram necessários dez homens para segurá-lo.

(Igor Farias)

(*) Este é mais um texto do colaborador-simpatizante deste blog – o punk Igor Farias. 



segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Separação



De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto
(...)
Fez-se do amigo próximo, distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente
(Soneto de Separação – Vinícius de Moraes)


De repente, não mais que de repente, o fim eminente se desfechou. Aquele pesar se dissipou. Os silêncios se perpetuam. As discussões sem fundamento, lógica e razão perderam-se ao vento. A dor que sinto no peito permanece. O vazio impera. O sentimento de que foi vida gasta em vão. De que tudo é vão, e nada se sustenta nas idiossincráticas contradições do ser. O meu ser passa neste momento por uma transformação que não faço idéia de qual seja. Mas passa. Espero que isso seja bom. Embora uma vontade insana de chorar me domine. Todavia, não tenho lágrimas. O meu pranto calou-se. O meu pranto secou-se. Na mesma proporção que os meus sentimentos. Sentimentos rasos. Não sei mais o que significa “amor”, “paixão”. Parece-me que estou vivendo em um estado de suspensão, no qual as coisas, pessoas, o tempo, a vida, ficou mais lenta e preguiçosa. Rarefeito – diria. Fiquei sem vontade. Só quero ler e escrever. Recomecei a ler os russos, parece que agora tenho todo tempo do mundo. E rascunho, de vez em quando, alguns versos tortos à mão, a despeito da minha letra ser sofrível. Não gosto muito de escrever à mão, mas quando escrevo versos, gosto de ouvir o barulho da grafite no papel. Dá-me a impressão que estou criando algo, sinto-me satisfeita comigo mesma. Tomar chá. Ouvir Nelson Cavaquinho, Batatinha, Noel e Cartola, na minha vitrola velha, que ele me deu de presente – e fez questão que eu ficasse. Foi ele também que me apresentou os russos. Ensinou-me muitas coisas. Sobretudo, em deixar de amá-lo. Talvez, o seu jeito de me amar fosse algo incompatível com a minha autodeterminação individual. O seu amor representava um atentado contra o meu Ego. E, ao mesmo tempo, um reforço do Superego. Sentia-me presa e livre a um só tempo. Não sei bem explicar. Apenas sentia isso. Sentia que as coisas estavam se encaminhando para um devir. No entanto, não era claro o seu sentido. Quando estamos vivenciando algo, tudo é muito turvo e nebuloso, e somos reféns do processo. Somente, depois, com o tempo e em perspectiva, conseguimos formular um juízo. Eu não sei o que foi, mas apenas o que restou. A experiência, o peito vazio, as lágrimas engolidas, o pranto seco, a bruma, a espuma, o espanto, a aventura errante, de repente, não mais que de repente.
(Felipov)

domingo, 21 de agosto de 2011

Minha vida (*)


Mas que vida mais ou menos,
veja só que circunstância:
beber, comer, cagar, foder,
nesta ordem de importância.

(Rafaela Paiva)

(*) Mais uma colaboradora-entusiasta deste blog. Assim que tiver novos escritos, eles serão postados aqui. Obrigado pela colaboração, Rafa =)

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Jurunas – uma sala de recepção paid’égua




Habitada por gente simples e tão pobre
Que só tem o sol que a todos cobre
Como podes, mangueira, cantar?

(...)
Eu digo e afirmo que a felicidade aqui mora
E as outras escolas até choram
Invejando a tua posição

Minha mangueira essa sala de recepção
Aqui se abraça inimigo
Como se fosse irmão
(Sala de recepção – Cartola)


O Jurunas é um bairro peculiar. Diria melhor: é uma contradição disfarçada de bairro. Como qualquer outra periferia do país, é uma contradição humana montada em concreto e ferro, e construída sobre suor, sangue e esperança. Localizado na beira do Rio, é um dos maiores bairros da capital paraense, em extensão territorial. Entretanto, não é apenas isso que marca a sua grandeza. A desigualdade social é uma das suas marcas. Diferente dos outros bairros periféricos da “cidade das mangueiras”, no Jurunas, a riqueza que se ostenta em si mesmo, bela e triunfante, como testemunho e panegírico da sociedade liberal, convive ao lado da mais absurda, indignante e embrutecedora pobreza – o testemunho antitético do mesmo engodo liberal.

 Você, caro leitor, desavisado, em uma caminhada de meia hora pelas suas ruas tortas, vielas, vilas, alamedas e passagens, amontoadas e construídas ao ritmo alucinante da vida diária, esburacadas, quase sem calçadas, ocupadas ostensivamente por toda a sorte de atividades comerciais, borracharias, carrinhos de lanches, bancas de venda de DVD pirata, de venda de bombons, de banquinhas do jogo do bicho, o mercado informal espalhado por metro quadrado, vai confirmar isso que estou relatando – in loco.

A violência é o resultado direto da desigualdade. A falta de perspectiva gerada pela pobreza faz com que o bairro seja um dos mais violentos da cidade. A violência é um fenômeno profundamente social, a conjugação entre desigualdade e falta de oportunidade. Ultimamente, não se anda tranqüilo em seus logradouros. O assalto é um evento previsível nas suas ruas densamente povoadas, no qual o transcorrer do trânsito tem uma lógica própria, em que o caos entre transeuntes e veículos automotores é a norma.

A síntese da violência é o famigerado “dois na bike”. O roubo, o assalto, a expropriação de bens de outrem é praticado por jovens e adolescentes, que, impelidos pelos apelos incomensuráveis da sociedade do consumo, querem se incluir na mesma como consumidores, mas não tem como ser consumidor sem dinheiro, e não tem como ter dinheiro sem vender força de trabalho. Sem emprego e oportunidade, o apelo ao consumo é mantido, e o esforço em ser consumidor se mantém, diante do impasse e da impossibilidade, recorre-se a criminalidade. Salvo engano, não desconsidero aqueles indivíduos que caem voluntariamente na marginalidade – porém, não deixo igualmente de considerar que a marginalidade é produzida por uma sociedade desigual, hierarquizante e excludente. Logo, o marginal, o criminoso, o ladrão é um consumidor às avessas, ilegal, ilegítimo que indelevelmente consome. Em última análise, é o consumo que importa – sempre.

Obviamente, a grandeza do Jurunas não é apenas essa. Ele é uma legítima sala de recepção. É um lugar, que para muitos, é onde a felicidade mora. O jurunense médio tem orgulho do seu bairro – a despeito de suas contradições. Primeiro, os seus habitantes são peculiares no seu modo de ser e estar no mundo. Eles são de fácil identificação: efusivos, alegres, falam alto, gesticulam. Xingam, jogam futebol, bebem e brigam. Os domingos são os dias de churrasco, futebol, Cerpa e muito barulho. A poluição sonora é um desafio a sanidade. Tecnobrega, salsa, merengue, flashback e baile de saudade. O jurunense é profundamente crédulo, católico em sua maioria, e devoto de Santa Teresinha – e como bom paraense, é devoto da nazinha. O samba do Rancho embala a dura rotina cotidiana, como diz seu lema: não podemos nos amofinar. E não amofinamos, seguimos impávidos, fortes e renitentes. Nesse ambiente totalmente desfavorável, aqui se abraça inimigo como se fosse irmão – solidariedade nunca dantes vista. Seus moradores são de uma cordialidade insuperável, que conseguem conviver com todas essas contrariedades, com grande malabarismo social, sem perder o sorriso no rosto e a gentileza – em sua maioria. A maior riqueza do Jurunas é sua a gente simples que, sem razões aparentes, e contrariando qualquer padrão de sanidade social, consegue transformar tanto dissabor em amor pela vida. A vida em contradição.

(Felipov)

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Impossibilidades





Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. 
E examinai, sobretudo, o que parece habitual. 
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar.

(Nada é impossível de mudar – Bertold Brecht)





Estou cercado de impossibilidades. A minha existência cerceada por um complexo de mediocridade. A ignomínia está na ordem do dia. A estupidez é celebrada em praça pública. A televisão me ensina a ser um bom consumidor. O jornal quer me fazer crer na sua imparcialidade e verdade. A corrupção faz com que o salário seja mínimo, com o beneplático da opinião pública, que se indigna e resigna. A mais-valia é legitimada pela educação técnica. O Mercado anda nervoso e não pode ser contrariado. O Estado é apenas uma grande máquina burocrática pública de produção de riqueza privada. Nas ruas das cidades engrossam as fileiras dos desvalidos. O espectro do colonialismo tem varrido as periferias do Velho Mundo. Em Pindorama, a vida segue preguiçosa como sempre, sobretaxada de impostos, cara nos seus detalhes, e bamba para não sobrar mês no fim do parco salário.

Vejo-me impossibilitado.

Primeiro, de amar. O amor tornou-se um bem mercantilizado: uma mercadoria. Que fica a disposição das necessidades inventadas por algum publicitário nas suas modernas técnicas de marketing para vender um produto inovador no dia dos namorados, no dia das mães, no dia dos pais. O amor tornou-se fútil, banal, volátil. Sinto saudades do desespero do jovem Werther e seu ímpeto de auto-destruição. Ele ao menos sentia. A despeito de tudo, os românticos sentiam o amor no seu sentido mais puro e sublime. Mas, ele, o amor romântico, não resistiu aos tempos da desconstrução – pelo visto, nada tem resistido. Todavia, a minha impossibilidade de sentir o amor, não quer dizer que não acredite nele. Amar a minha própria falta de amor nunca fez tanto sentido para mim. E, ao mesmo tempo, ser um animal profundamente sentimental – paradoxal, não?

Continuando no quadro das impossibilidades, por sua vez, de ser bonito. Definitivamente, não sou “bombadinho”. Não me adéquo ao modelo hegemônico de beleza. Não gasto horas na academia malhando a bunda. Com suas gírias idiotas: bróder, véio, pácero. Não sou branquinho, bonitinho, arrumadinho. Com roupinha de surfista, camisa PP, todo apertadinho, com a bunda modelada e bracinho malhado. Não, sou muito melhor que isso: sou apenas feio. E não tenho a melhor intenção de mudar isso. Sou gordo, desgrenhado e decrépito. Preguiçoso e sedentário. Que detesta esse papo de vida saudável. Que vive desregradamente nos seus vícios socialmente aceitos, em franco processo de engorda – fazer o quê, é a Física e a Biologia. O que vou fazer contra a Ciência?

Na linha das impossibilidades: não me vejo rico. Concordo plenamente com Almeida Garrett que afirmou que para produzir um homem rico vários outros homens foram deitados na pobreza e miséria. É uma simples visão de totalidade: para ter muito em um lugar, tem que ter de menos em outro. Sempre tive a impressão que a riqueza não é impune. No capitalismo, a riqueza é produzia por mais-valia, exploração do trabalho. Logo, um homem rico chegou a essa condição à custa de outrem no sexo feito as pressas para chegar no horário, o não poder ir a praça com o filho, não ter tempo de ler seu livro favorito, jogar futebol, assistir aquele filme, conversar com os amigos, dormir um pouco mais, enfim, perder oito horas diárias de vida – alienação: pura e simples. A riqueza é a extração de vida dos outros, e, portanto, imoral e indigna.

Finalizando, enfim, a série das impossibilidades, completa-as, com a de ser feliz. Caro leitor, depois do breve quadro que discorri acima, é possível ser feliz? Se for, meu caro, vais me dizer isso qualquer dia desses em uma conversar de bar, ao som de Nelson Cavaquinho e Vinícius de Moraes. Acredito que a felicidade seja uma dimensão da condição humana de dupla entrada, a um só tempo, individual e coletiva – um par dialético. A satisfação pessoal não invalida o meu mal-estar, indignação e crise de consciência em compartilhar a condição de sofrimento de quem passa a vergonhosa situação da fome. A indignação pessoal me move para mudanças coletivas.

As impossibilidades em alguma medida me humanizam e me fazem ver que é razoável chegar ao impossível: a vida que valha ser vivida.

(Felipov)

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Ciúme a priori

(Othello e Desdemona em Veneza por Théodore Chassériau *1819-1856*)
                                         

Tenho a impressão que as pessoas ciumentas são kantianas. Explico-me. Tive essa experiência. Felizmente, porque, enfim, alguma coisa se aprende.  Infelizmente, pelo desgaste, pela perda de tempo, pela vida gasta.  Fui casado com uma pessoa por 25 anos. Um quarto de século que pareceu uma eternidade. Foi um monstro moral na minha vida. Hoje, vendo em perspectiva, não acredito. Simplesmente não creio como pude me submeter tanto, ao ponto da vassalagem mórbida. Ela, naquele tempo, era linda, inteligente, forte, insegura, de cabelos crespos, branca e baixa. Hoje, é apenas uma pessoa estranha. Acho que sempre foi. Acreditei que a conhecia. Ledo engano. Devido sua personalidade forte, e considerar que era muito insegura e, sobretudo, por gostar muito dela, me submeti há um dos mais atrozes sentimentos humanos: o ciúme. Ele é uma questão de Ego. Sempre tive a impressão que pessoas ciumentas são inseguras em relação si mesmas, o que, em última instância, acaba por expressar o seu egocentrismo extremado. Ninguém me coloca na cabeça que ciúme é uma demonstração de sentimentos. Na verdade, é uma das formas mais deploráveis de mesquinhez humana. O ciúme é o Ego no seu estado mais patológico. É a pulsão esquizofrênica. É a idiotice disfarçada em sentimento. Enfim, se o amor começar a se desdobrar em ciúme, uma coisa fique bem clara: estou falando do ciúme extremo, claro que todos temos ciúme, em maior ou menor grau, mas se ele for extremo, procure um analista. A pessoa ciumenta, além, é claro, de egocêntrica, tem uma imaginação doentia. Ela cria toda uma realidade a priori. Inventa situações, idealiza fatos, ficciona intenções que nem o mais hábil romancista conseguiria fazê-lo. A desconfiança e a insegurança definem a sua forma de ver a relação amorosa. Amor? É apenas uma desculpa. Ela não ama o outro, senão, a si mesmo apenas. É o seu Ego querendo ser resguardado. Com esse intuito, faz um esforço hercúleo para idealizar a realidade em apriores. Ela não lida com fatos objetivos, com o que efetivamente acontece, com a realidade concreta. É mais conveniente fundar-se na idéia que é possível conhecer o mundo sob a ótica de seu modo de ver a realidade independente da experiência concreta. É um kantismo pelo avesso, de cabeça para baixo. De uma só vez, consegue construir uma versão dos fatos ou uma visão de uma situação cotidiana, que é totalmente desfavorável a pessoa com quem se relaciona, sempre colocando em xeque os seus sentimentos, ultrapassando qualquer tipo de comportamento ético que deveria mediar às relações humanas. O ciúme a priori é, também, uma questão de ética. O ato da desconfiança ostensiva e não ouvir o Outro, não respeitar a alteridade, e, sobretudo, de garantir a confiança está na raiz do que chamo de ciúme a priori – que, grosso modo, seria o ciúme infundado, é obviamente uma questão ética.  Acredito que o ciúme é uma dimensão do sentimento amoroso que se assenta na proteção e no bem querer – quando ele é saudável e fundado no respeito ao Outro e na confiança. Portanto, o ciúme é apenas uma questão de bom senso – sem a priores esquizofrênicos.  
 (Felipov)