quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O espelho




Fernanda olha o espelho e vê uma mulher bonita. É apenas isso que ela vê. Mais um exemplar plasticamente bonitinho, no catálogo dos milhões descartados e milhões lançados todos os dias, produzido em massa, rigorosamente iguais, modelos testados e aprovados, com gostos, sentimentos, gestos, atitudes similarmente domesticados pelo consumo desta intempestiva espécie alguma vez conhecida por humanidade. Ela está vestida, maquiada, penteada, bonita. Olha melhor, vestido apertado, salto plataforma e percebe que a maquiagem precisa ser retocada, toda borrada pelo calor, a roupa não combina com o batom, a sombra e os brincos, a chapinha feita na pressa não alisou todas as mechas californianas. Ela não está arrasando, ela está uó. Maninha, hoje não é meu dia, valha-me nazica.

Fica com raiva, frustrada, nervosa. Vai ao banheiro e limpa a maquiagem e tira a roupa. Liga para o namorado e diz que não quer sair. Desliga com raiva. Ai, que merda, estou gorda e estressada. Olha novamente para o espelho, não está mais bonita, gata, gostosa. Eras que merda de vida. Observa o seu rosto natural, seu busto sem enchimento e ligas de empinamento. Estou embarangando, uó isso, uó. Olha para o espelho e vê uma pessoa. Nua, despida, pelada. Sem maquiagens, sem roupa, sem artifícios, sem beleza. Sente-se desamparada, desesperada, desorientada. Olha fixamente, procurando. Repara em todas as nuances, procurando. Nos seus olhos, boca, nariz, cabelos, pescoço, peitos. Olha atentamente, procurando. Não gosta do que observa.  Procura o que está errado. Égua, pedi pra ser feia e abusei, vamos combinar.

É apenas Fernanda. Ninguém gosta da Fernanda. Esta Fernanda na frente do espelho, natural, nem mesmo a Fernanda gosta. As pessoas gostam da Fernanda produzida, montada, arrumada, maquiada, bonita, poderosa, arrasando. Até mesmo a Fernanda gosta. A Fernanda, como qualquer outro exemplar da espécie, tem desejos simples como casar com um marido lindo, rico e gostoso e ter filhos lindos, saudáveis e bem-sucedidos e morar em uma casa com jardim e cercadinho branco e ter um cachorro chamado mascote e ser feliz para sempre e só morrer bem velhinha ou quando Deus quiser, quer ser aceita com todos os seus defeitos, amada de maneira incondicional e eterna e absoluta, aprovada pelos juízos alheios cujo amor quer todo para si, afirmar sua vaidade cotidiana de cima do salto, demonstrar suas qualidades aprovadas pelo Inmetro, reconhecida pela inteligência de ameba, caráter, honestidade de raposa, criticada pela originalidade da opinião lida nas manchetes da Veja, independência de pensamento das amigas, discernimento de julgamento do ouvi dizer, e todos os demais atributos que ela lê no horóscopo e nos livros que ensinam a ser feliz e ver a vida positivamente, cujo autor preferido é Augusto Cury. Não quero muito, quero ser feliz como todo mundo, é pedir demais, Deus?

A Fernanda que agora a Fernanda olha no espelho que é uma pessoa nua, sem graça, acima do peso, cheia de imperfeições no rosto, causadas pelas espinhas, frágil, vulnerável, indefesa que as pessoas não gostam por ser Fernanda, é a Fernanda que existe, é a Fernanda que ela tem, a única Fernanda que lhe pertence. Ainda bem que não saí hoje, ninguém merece me ver assim, nem mesmo o Fábio, se ele não gostou, paciência, maninho, paciência. Ela não quer ser a Fernanda revelada impiedosamente por mim. Ela quer ser a Fernanda refletida pela sociedade. Ela continua olhando aquela figura desconhecida, desprezada, escondida, poucas vezes vindo à tona, chegando mesmo a estranhar. Estranhamento. Olhou mais fixamente, curiosa, procurando.

Lacônico por definição, raramente me pronuncio, me restrinjo a realizar plenamente a minha função, sou apenas uma invenção produzida pelo intelecto humano para refletir a exterioridade dos homens, e me arrogo dizer que tenho feito isso com alguma competência, e na mesma proporção não me escuso de afirmar para que a justiça seja plenamente realizada que qualquer inabilidade é culpa exclusiva do criador e sempre recaí sobre a criatura. Malgrado as suas intenções narcísicas, arrisco conceber que eu seja apenas um instrumento de elucidação da vaidade, da pequeneza, da ostentação, da arrogância humana que na maioria das vezes é vista como uma deslumbrante beleza. Testemunho com o passar dos séculos que o homem e sua casca, sua carapaça, suas máscaras mudaram de forma diminuta com o transcorrer do tempo, em essência, parte considerável das imagens que tenho refletido são rigorosamente similares. O descompasso reside apenas na distinção de época em época, nas faculdades da engenhosidade humana que tende sempre a mudança, todavia a minha observação arguta, severa e permanente expõe que continuam sendo universalmente os mesmos, compartilhando igualmente medos, alegrias, vitórias e derrotas. Contudo, algumas raras vezes, estes homens quando se postam a minha frente, para as suas corriqueiras consultas a vaidade, aparências e futilidades que tanto valorizam em suas vidas ordinárias, me comporto tal qual um oráculo revelador das verdades inconfessáveis e desconhecidas, conseguem ver o que as suas aparências opulentas e veneráveis ocultam para conviver hipocritamente em sociedade: criaturas capazes do sublime e do grotesco.

Aquele era um lado seu que não conhecia. Não reparara, não sabia. Olhava mais. O cabelo desarrumado. O que havia de errado. Ela olhava mais. Seus olhos rotos, sem rímel, sem sombra, sem pintura. Ela viu seus olhos brilharem ao serem reparados, como se fosse uma criança chamando atenção com suas travessuras, esperneando, gritando.

Espantou-se, inquietou-se, modificou-se algo no seu íntimo. Esfregou os olhos para ver melhor, com nitidez e clareza, os detalhes tácitos da figura humana diante dos seus olhos, substituindo o espectro vestido pelas estilistas, pensado pela mídia e maquiado pela sociedade protetora dos animais, vulgarmente chamada de indústria cosmética.  Havia uma impressão repentina, uma sensação, um arrepio, alguma coisa estava acontecendo, não havia palavras para dizer ou definir os sentimentos que moviam suas idéias, porém estava alterando de maneira irreversível a sua forma de ver as coisas, a imagem, o conceito, a opinião que tinha de si mesmo ao olhar a sua figura subterrânea, soterrada, submersa, que a partir da fresta refletida por mim, veio a lume clareando a escuridão das águas abissais, o brilho da consciência de si e do mundo que acossa todos os homens. Tudo o que havia sido esquecido, emergia forte como uma torrente de lembranças.

Os sinais da catapora, que eram dois, um na testa e outra no queixo, toda vez reclamava deles, escondendo-os com base, corretivo, argamassas cosméticas, lembrou-se dos desenhos que assistiu quando precisou ir para a escola naqueles dias de doença, tomando achocolatado na mamadeira a manhã toda, os mimos da mãe, o pão de queijo quentinho, como gostava de pão de queijo, da mamadeira e do achocolatado. Que saudade. Como era bom ficar doente, sem escola, chocolate, pão de queijo, mimos da mamãe. Que saudade do tempo que não precisava se fingir bonita para ser querida.  Que saudade de ser criança feia, curubenta, catarrenta, desarrumada e amada.

Ficou feliz em lembrar. Arrumou-se melhor na cadeira, e viu a cicatriz que tinha no ombro. Que era mais funda, agora apenas um risco. Do que havia sido mesmo. Ah, lembrei: daquela vez, na fazenda do tio Oswaldo, quando fui ver meus primos ordenhando as vacas e um bezerro veio correndo na minha direção e com medo saindo correndo e acabei ralando na cerca de arame farpado. Nunca mais voltei. Eu gostava tanto de ir lá, tomar leite fresco, explorar o mato, sentir o ar fresco das árvores, colher flores e pegar as borboletas distraídas, sentar na beira do córrego que atravessava a fazenda, sentir a água fria passando pelos meus pés e ver o que era uma vida tranquila. A sobrancelha cirurgicamente tirada era o lugar onde o meu pai sempre fazia carinho quando era apenas sua pequena. Ele sempre insistia de voltar à fazenda, e eu sempre recusava por conta do evento do bezerro. Quanta idiotice se faz na vida. Quanta idiotice.

As orelhas furadas. A dor do furo, o primeiro brinco. Foi a primeira vez que me senti bonita. Não sabia naquele momento, mas talvez tenha se justificado na minha cabeça, que ser bonita era necessário sacrifício, dor, desconforto, aflição. Sempre valia a pena, me parecia, a fome das dietas, as dores nos músculos na academia sem resultados visíveis, o queimar e puxar e defumar cabelos na chapinha, os calos do salto, nada é fácil na vida, inclusive ser bonita. Coisa de mulher gata, mana, é assim, não pode embarangar, relaxa – diziam as amigas. Eu endossava, queria ser gata, desejada, na vibe da galera. Quanta idiotice. A boca que sempre achou feia lhe pareceu bonita porque incrivelmente não estava com batom, e ela gostou do distanciamento que provocava ter os lábios limpos, na cor natural. Estava sentindo estranhamente bem consigo como jamais havia sentido antes, era aquela mesma sensação de tomar banho depois do calor intenso, limpar-se depois de muito sujo, a sensação de tranquilidade das águas geladas nos seus pés.

Os ombros, o pescoço lhe parecera sempre pouco atraentes, nunca visíveis, nunca sedutores, nunca notados, embora olhando bem, realmente era necessário que eles fossem lascivos. Olhou melhor, riu, dando conta da besteira que pensava. Pensava. Por qual razão pensava assim. Parou absorta. Qual Fernanda era aquela. Diga-me Fernanda. Por que havia se tornado uma boneca. Por que havia cedido tão facilmente. Tudo fica claro. De frente para o espelho. Para aparência dos fatos que haviam moldado a sua vida até aquele momento. Superficial, raso, pequeno. Mesquinho, egoísta, tacanho. Falso, profundamente falso. Relaxa, gata, é assim mesmo, relaxa e arrasa. Quanta idiotice.

Foi impactando-se com a verdade revelada por sua imagem no espelho. Óbvio. Na sua cara, todos os dias. Quanta tolice. Uma indignação consigo. A raiva de sentir-se enganada. Olhou-se novamente. Fixo. Contemplativo. Estético. Perscrutando o belo. Via beleza. A beleza que lhe pertencia, a sua beleza que era efêmera. Ficou estupefata. A ignorância que lhe travava o olhar, as trevas que não lhe faziam ver a simplicidade do seu ser, da naturalidade de ser Fernanda, aquela que escondia no brilho do seu olhar.

Seus olhos encerravam toda a sua atenção, ele esperou muito por esse momento, no qual poderia falar livremente, com a consciência de ser ouvido e entendido, seus olhos diziam que ela agora enxergava a verdade, límpida, clara e simples verdade, a verdade dita por seus olhos, a verdade sem máscara, porém uma verdade invertida por ser imagem do espelho, caberia agora colocá-la sobre os próprios pés e trilhar o singular caminho de Fernanda. Mais uma criatura consciente da sua condição sublime e grotesca.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Bota esquerda






Vivo na linha de tiro.

Sou um alvo quando erro pelas ruas da cidade.

Há dois anos, andava pelas ruas de Belém, Padre Eutíquio, Mundurucus, Serzedelo Corrêa, não lembro bem, pouco importava, havia bebido algumas cervejas. O mesmo papo de sempre, cerveja com os amigos, sexta, música, cigarros e nada de sexo. Nada da porra do sexo.

Desatento, derrotado, humilhado.

A cerveja me fode muito quando estou triste, não estava bêbado, estava naquele estado alterado de consciência que me faz pensar melhor, ia ponderando que ninguém é meu amigo e que não ia mais beber, o nariz virado em direção de casa, os passos iam apressados, calçadas mais escuras, portões, portas, grades fechadas, rua desabitada de carros e pessoas.

Um homem e um casal se aproximam.

Percebi suas presenças, um espectro, olhar periférico, atenção, àquela hora da noite, todos são suspeitos, até eu. Angústias, medos, alarmes corporificam nas sombras, as notícias de mortes estúpidas nos jornais vem à mente, a imaginação prolifera fantasmas reais, as experiências de outros assaltos guiam o pensamento, que merda de vida escrota entalado na garganta.

O casal virou na esquina.

Mulher bonita, provavelmente me apaixonaria por ela, beberíamos juntos, me emprestaria livros do Hemingway, filmes do Almodóvar, conversaríamos sobre literatura latino-americana e jogaríamos inúmeras partidas de domino, ela tem cara de quem gosta de domino, depois de algum tempo me trocaria e eu sofreria como de costume, iria beber e voltar bêbado andando para casa, cara de sorte ao seu lado, deve ser um rapaz bacana, poderia ser meu chapa, discutirmos sobre música, cinema e política e jogaríamos futebol no final de semana, queria ser um casal naquela hora, carinhos, beijos, compartilhar a vida, a solidão enferrujava o meu coração.

Restou o homem.

Observava, calculando, mensurava cada passo, cada olhar, cada medo, tinha consciência de caçador, do terror que imprimia à presa, sem pressa, com calma escolhia a melhor hora para dar o bote, fumava um cigarro, apenas via aquela centelha ondulando pelo escuro, acredito que ele esperava acabá-lo, uma esquina mais escura, abordagem, expropriar, fugir, dizendo baixo: não corre, não grita, senão te mato, filho da puta.

Portava de valor, celular, carteira, bota favorita no pé, identidade, título de eleitor, certificado de reservista, cartão de crédito, dez reais, algumas contas, algumas moedas, a minha descartável vida na mira do revolver dentro do meu bolso junto com umas embalagens de menta e um cigarro que esqueci de fumar.
Égua, onde tem um táxi nessas horas, nada, nenhuma porra de nada para te socorrer, um cordeiro a ser imolado, que merda, nada te ajuda nessas horas, o coração se destroça no peito, os pulmões ventilam desesperados esperando a ação, susto, calafrio, suor, calor, um táxi, apenas um táxi.

A esquina.

Olhar periférico, cadê ele, sumiu, cadê o filho da puta, para onde ele foi, suor na testa, calor, desespero ou alívio, nem sei o que sentia.

Rapidamente fiquei sóbrio com toda essa agitação.

Alguns carros passaram, tristes e calados, as luzes das lanternas iluminam a minha tranquilidade, baixei a guarda, respirei mais calmo, tenho que chegar em casa, estou morrendo de fome, vou comer aquele macarrão do almoço.

Perdeu playboy – o cano da arma na minha nuca - pensou que tinha escapado, eu só me escondi, passa tudo, celular, carteira – a mão revistando – o que fazer, ele ia me matar, nada de valor, tinha que fazer alguma coisa rápida, inesperada – eu não tenho mais nada de valor, só tenho isso - ele se abaixou para conferir os bolsos laterais da bermuda, era a hora, ele baixou a guarda – bati com nuca no cano da arma, ela caiu, ele ficou surpreso, desarmado na minha frente.

Uma fúria, uma cólera, um furor. Soco, chute, joelhada, murro, porrada, porrada, porrada, sangue, sangue muito sangue.
Ele deitado no chão.

Pisava na cara, sola da bota no olho, chutava a boca, os lábios dilacerados, dentes saindo a cada chute, costelas quebradas, braço fraturado, o outro tentando se defender inutilmente, dois dedos meus quebrados na mão direita, eu cuspia sangue, talvez uma ou duas costelas quebradas, dificuldade de respirar, meu olho doía, até o desfecho: minha bota fez sexo com suas bolas, rapidinha de um chute.

Dez minutos depois, cansado, ofegante, totalmente moído daquela briga primitiva, tive consciência do poder, da justiça, da honestidade de minha bota esquerda e suas vítimas: sangue, costelas, dentes, sexo. 

(Felipov)

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Meu pai






I


Meu pai, naquele mês de outubro, um dia qualquer, no apagar dos anos de chumbo, estava desempregado, dois meses desempregado, não sabia o que fazer dos seus dias, desorientado das horas, o dinheiro acabando, as contas vencendo. Mais um brasileiro.

Sem nenhum conhecimento econômico, com razoável intuição para administrar o orçamento mensal, ele planificava a economia doméstica, conseguindo manter em cifras positivas as despesas e a parca arrecadação – estava na corda bamba, vendendo o almoço e janta para comprar café e cigarro, como bom brasileiro, considerando nada engraçado.

“Mês fudido acaba logo”.

“Infelizmente viver é caro”.

O apartamento era minúsculo, uma sala e dois quartos velhos com cheiro de mofo, as paredes carcomidas pelo tempo e falta de manutenção, uma janela fornecia iluminação rasa através das cortinas empoeiradas, uma caverna de cinquenta metros quadrados.

Naquele cubo, sua única propriedade, constava de uma guitarra e pilhas e pilhas e pilhas de livros ao lado da poltrona de estimação e do sofá-cama no qual costuma dormir, no quarto uma cama de quase enfeite, uma escrivaninha largamente utilizada, uma janela que iluminava a quase alcova e mais pilhas e pilhas de livros: Hemingway, Faulkner, London, Whitman, Fante, Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rêgo, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Mário de Andrade, Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Drummond, Rubem Fonseca, Dalcídio Jurandir, Eneida de Moraes, Florestan Fernandes, Machado de Assis, Aluísio de Azevedo, José de Alencar, Dostoiévski, Kafka, Marx, Lênin, Malatesta, Proudhon, Gramsci, Adorno, Walter Benjamim, Bakunin, Nietzsche, Hegel, Kant, Hume, Pascal, Descartes, Spinoza, Hobbes, Montesquieu, Rousseau, Voltaire, Tolstoi, Gorki, Gogol, Turgueniev, Tchekhov, Saramago, Bocage, Gil Vicente, Lobo Antunes, Miguel Torga, Eça de Queiroz, Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Tomás de Aquino, Erasmo de Roterdã, Thomas Mann, Herman Hesse, Goethe, Rilke, Llosa, Lorca, García Márquez, Benedetti, Cortázar, Borges, Mariátegui, Rosa Luxemburgo, Lênin, Trótski, Stálin, Cervantes, Dante, Joyce, Orwell, Dickens, Melville, Blake, Rebelais, Moliére, Ibsen, Kanut Hamsun, Capistrano de Abreu, Varnhagen, Padre Vieira, Virginia Wolf, Florbela Espanca, Simone de Beauvoir, Sartre, Camus, Heidegger, Foulcault, Derrida, Delleuze, Guttarri, Simone Weil, Hannah Arent, Anne Frank, Marguerite Yourcenar, Agatha Christie, Emily Brontë, Clarice Lispector, Maria Lúcia Medeiros, e tanto outros livros, vários tamanhos, diversas páginas, tempos, culturas, estilos, análises, narrativas, histórias, estas pessoas de diversas línguas e nações habitavam conosco naquele acanhado apartamento.

Por minha vez, o cômodo que originalmente era uma biblioteca, havia uma janela que me informava sobre a vida, meu catre desarrumado, um armário e mesa arrumados, as quinquilharias de mulher e um número inferior de livros se comparado ao meu pai, anos luz a minha frente em idade, rugas, barriga, cabelos brancos, inteligência, rabugice, humor amargo, leitura e chatice que tanto me divertia. 

Cravado no centro da cidade, é daqueles prédios antigos, gigantes, funcionais, agrupados em quarteirões, se vistos de cima, são assombrosos labirintos, verdadeiros cortiços armados em concreto, simulacros da segurança da vida urbana, vidas empilhadas, andares abarrotados, cubículos cheios de existências assalariadas.

Elas duram em função do aluguel, artigos de necessidade básica: arroz, feijão e conservas, água, luz e televisão no domingo, cigarros e cervejas baratos, roupas caras compradas à prestação, a aparência com seus rótulos e etiquetas no limite do fim do mês. Meu pai zombava da ignorância dos vizinhos: “É de uma bestagem sem tamanho”.

“O engenheiro que construiu esse prédio, se enganou e levantou um canil. Esses cubículos só podem ter sido concebidos para animais domesticados viverem neles, cada qual preocupado com suas rações e, latindo surdamente entre si, os seus problemas. Eu não me eximo da minha condição de cão: mas nem sempre sou amigo do homem – hahahaha” – repetia inúmeras vezes, do tempo dos meus dez anos, que víamos a fachada do prédio, e chegávamos ao corredor no qual o nosso apartamento ficava no final.

Demissão ideológica, mais uma para o currículo, já não era novidade, o fracasso como perspectiva. Ele defendera suas idéias, suas convicções, recusou à prostituição intelectual, seu caráter não estava à venda.

Contrariou a prestação de serviço na empresa chamada de “escola” na qual vendia algumas horas de vida vulgarmente designadas de “hora-aula”, oferecendo formação humana aos alunos, ambicionando fazê-los pensar, questionar, ver, reparar o mundo, um caolho lecionando em uma terra de cegos que lhe odiavam.

Crianças mimadas, filhos da cegueira, nascituramente idiotas, ele ensinava a revelia da pedagogia do sucesso comprada pelos pais/responsáveis/consumidores para o mercado de trabalho: fordismo nos bancos escolares.

“Sou signatário da paidéia grega na formação integral e universal do indivíduo. Somente um indivíduo autônomo intelectualmente, que saiba pensar como uma bússola, raciocinar de maneira independente sem perder o caminho, pautado pela permanente dúvida metódica, descontente com as respostas fáceis, é que se poderá encaminhar mudanças reais. Somente o homem indócil transforma a si mesmo e o mundo” – era a sua pedagogia.

“E quem garante que a história
É carroça abandonada
Numa beira de estrada
Ou numa estação inglória
A história é um carro alegre
Cheio de um povo contente
Que atropela indiferente
Todo aquele que a negue” – Milton Nascimento cantou sua forma de ver a História.

“A literatura é uma baioneta de razões e sentimentos no campo de batalha dos corações e mentes” – a literatura era uma das razões da sua existência.

Estou agora, sentada em sua poltrona, bebendo o meu café turco. Ele sentava nela todas as manhãs, tinha o estranho hábito de acordar cedo e dormir tarde. Um pão com ovo e café na janta e no café da manhã– duas de suas refeições diárias.

Parecia uma coruja com rotundas olheiras presas na armação dos óculos, o cabelo desarrumado de um sonâmbulo, a roupa de dormir de sempre, tomando igualmente seu café turco e fumando cigarros. Às vezes, estava semelhante a uma miragem, quando o olhava, naquelas manhãs que não lembro bem nem dia nem ano nem nada, ainda com sono, antes de limpar meus óculos.

“Bom dia, mais um dia, minha filha”– ele dizia. Eu ficava feliz com o seu “bom dia”.

“Minha filha, veja mais café para o seu velho pai” – ele sempre se considerava velho.

“Spasivo, minha filha” – e sempre tinha que agradecer em russo, o pedantismo que eu adorava.

“Da svidania, filhota” – ele sempre dava adeus com a mesma saudação em russo.

Era inconfundível o seu cheiro amalgamado de tabaco e cafeína, eu sentia aqueles odores adentrado as minhas narinas apontando a presença de um homem simples, um espírito do tempo de gerações e gerações apossava-se de suas carnes com hábitos ancestrais, que nada mais queria do que silêncio nas suas manhãs, o sossego necessário para pensar, ler, beber, fumar e viver de maneira vagarosa, branda, lenta de habitar sua poltrona.

Aquele cubículo que era o seu Estado, seu feudo, seu latifúndio soberano frente as suas pernas magras sobre pés ossudos vestidos de meias gastas tiritando às vezes nas manhãs frias, o pijama puído e desbotado, cobrindo seu corpo consumido pelas décadas, a poltrona antiga, herança de família, sob o chão de tacos de madeira com alguns buracos dando testemunho de sua legítima riqueza, tal qual um quadro xilogravado imortalizando as manhãs estáticas daquele homem.

Amanhecia lendo os jornais ou algum livro. Assinava um jornal local, a Folha, o El País e o Granma. A opinião, segundo ele, era fundamental para qualquer homem que quisesse ser considerado, as pessoas sem posição não mereciam respeito, ao passo, que a opinião devia ser constituída pelo discernimento, inteligência e a crítica bem formada de diversas fontes de informação.

“Síntese de múltiplas informações”, ele ponderava, qualquer julgamento que fugisse disso, significava para ele a mais crassa burrice derivada da leitura de manchetes e orelhas de livros, que para mim parecia o certo que a todos era ensinado, porém depois nos contatos com os demais humanos, percebi o quanto aquilo era raro e antiquado no mundo das virtualidades cômodas de bocas simpáticas que vomitam mentiras.

Toda vez, eu sempre esperava por isso, ele comentava o que estava lendo, fazia alguma observação sumária ou lia um trecho representativo, ininterruptamente finalizado com um olhar por cima dos óculos, de caráter conclusivo – as palavras eram inúteis, o olhar dizia tudo.

 Eu emudecia perante a autoridade natural com a qual expunha suas idéias, era rigoroso, preciso nas definições, quando conceituais ou teóricas, quando histórico ou factual, era exato nas datas e caracterizações de uma época.

Para ser mais claro, lançava mão de metáforas que fixavam a idéia a uma imagem que jamais seria esquecida pelo ouvinte atento, seu bom humor argumentado com um tom professoral, ao largo do pedante ou arrogante, era simples, convincente, persuasivo e engraçado.

“Minha filha, aprenda uma coisa, melhor, aprenda primeiro que na vida não se aprende nada, pode-se tirar algumas lições, nada conclusivas, ou conclusões parciais, mas nada definitivo, a aprendizagem é zero. Compreendido isto, saiba: a vida é ruim e injusta, principalmente com os que acreditam, com os que amam, com os que sofrem e com os que querem lições. É isso, é ruim e injusta. Mas existem algumas razões que a fazem valer a pena: tu és uma das minhas razões” – meu pai me arrancava lágrimas.

Ele nunca fora injusto nas suas críticas, a consciência aguda com a qual sabia fazê-las, uma coisa que ele sempre soube fazer, ponderava todos os seus elementos, com a honestidade própria, considerava como algo fundamental, necessário, e cada vez mais raro, portanto, devia ser propositivo e construtivo. Crítica pela crítica era melhor ficar calado.

O gesticular nervoso, a fala marcada, sempre pegando na barba, mexendo no cabelo amarrotado, singularidades daquele homem que eu olhava amorosamente, que me arrebatava de orgulho.

Essa torrente de lembranças e os seus respectivos sentimentos colonizam a minha memória toda a vez que sento nesta poltrona, eu ouço sua voz, eu sinto a sua presença, a dor da saudade fisga com mais força o meu coração.



II



Viveu por dez anos em Cuba. Sempre que falava do que viveu, ouviu e observou na ilha, relatava com entusiasmo das experiências produzidas pela Revolução, nunca moderava nas críticas, contundentes críticas.

O problema do abastecimento, os racionamentos que acossavam a população, mesmo que ninguém passasse fome, eram episódios que lhe impressionavam, assustariam qualquer pessoa vinda das exuberâncias do consumo. 

Certa vez, chegara à casa que havia alugado por um preço módico, cansado e com dor de cabeça, após um dia de passeios por Havana, foi a uma farmácia comprar um sabonete e aspirinas. O atendente, um homem de meia idade, negro altivo, cabelo grisalho, de cavanhaque, atrás de um par de óculos redondos, perguntou sobre a receita.

“Receta? Mi querido, estoy cansado y tener dolor de cabeza, sólo quiero una aspirina y un jabón, complacer” – com uma voz ligeiramente grosseira.

“Compañero”, ele começou, explicando com admirável paciência aquela altura da noite, que a venda de qualquer produto da farmácia era necessário uma receita, era indispensável à orientação médica prescrevendo o remédio na quantidade correta para a sua respectiva doença.

Ele assombrou-se com aquilo, imediatamente, perguntou ao atendente, colocando a prova ceticamente à informação dada, onde conseguiria atendimento médico às onze horas da noite de sábado.
Com um sorriso no rosto e inconfundível orgulho, o homem negro, de aspecto cansado, indicou que na próxima esquina havia um posto de saúde com médico de plantão, todos os dias da semana, inclusive aos domingos – meu pai sempre exclamava os domingos, quando contava, acentuando o quanto terrível que era para nós brasileiros a realidade cubana.

Meu pai empreendeu dez passos largos e rápidos dá mais ávida curiosidade, chegou à próxima esquina, um posto de saúde aberto, luzes acesas iluminavam a fachada, na entrada, um casal negro, fumando, conversavam distraidamente, fazia frio e ventava muito naquela noite.

Conversou com ambos e entrou. Eram o médico e a enfermeira de plantão. O médico confirmou as informações dadas pelo farmacêutico, complementando, com igual orgulho e entusiasmo, que esta era uma das dimensões da política preventiva de saúde.

Por exemplo, citava o médico, explicando calmamente, os charutos e cigarros são vendidos de maneira racionada, cada cubano, se fumante, tem direito a três charutos e duas carteiras de cigarro, qualquer quantidade superior, o preço é sobretaxado – temos conseguido combater com número significativo as doenças advindas do fumo, arrematava o médico. 

Meu pai agradeceu ao médico as explicações e saiu do posto com a receita. Retornou a farmácia, comprou as aspirinas e o sabonete.

“Compañero, así es como funcionan las cosas en la isla, saludos” – despediu-se o farmacêutico.

“Hasta luego!” – disse meu pai.

Entretanto, meu pai advertia, com amargura na voz, nem tudo funcionava perfeitamente na ilha. Talvez o racionamento funcionasse para o consumo do charuto e cigarros, mas expunha graves problemas no que diz respeito alimentação. A quantidade de alimentos destinada para cada família, na maioria das vezes, não era o bastante para a guarnição mensal.

Ninguém passava fome, mas passava aperto. Meu pai não concebia que uma economia planificada previa que seus cidadãos passassem apertos, o planejamento era necessariamente para evitar apertos, concluía: havia algum erro nas terras de Fidel.

Segundo suas observações, a falta de planejamento não se restringia ao racionamento. A infraestrutura das cidades, sobretudo as do interior, sofria de igual imprevidência. O saneamento básico não era um problema nas capitais das províncias, de acordo com os relatos que ouvia nas praças de pessoas originárias de cidades no interior, havia muitos problemas de doenças advindas da falta de saneamento, como cólera, difteria, tifo.

Estes camponeses, em sua maioria, trabalhadores das lavouras de cana, todos alfabetizados, alguns estudando e outros com a escolarização encerrada, afirmavam ser necessária a interiorização dos ganhos da Revolução para as cidades, localidades e vilas mais remotas, muitos problemas precisavam ser resolvidos, especialmente os relacionados à saúde e infraestrutura, mas tinham certeza que era questão de tempo a sua resolução. Esta esperança contagiava o meu pai, que dizia isso com largo sorriso no rosto.

A diversificação de setores econômicos era outra questão que observou nos anos que habitou na ilha. A formação de um mercado interno promovido pela indústria e terceiro setor ao lado das atividades agro-exportadoras, acreditava ele, poderia ser um estratégica econômica que promovessem maior autonomia frente às relações bilaterais com a URSS e enfrentasse o embargo americano.

Sem essa autonomia política e econômica, o extraordinário produzido na educação, erradicando a analfabetismo, ao lado da saúde, referência na medicina preventiva e tratamento de doenças tropicais e vitiligo, junto às ruas sem crianças abandonadas, sem tradicionais favelas sul-americanas e caribenhas, com pessoas jogando xadrez nas praças de Havana, se perderiam no cotidiano das necessidades materiais não satisfeitas, a ignorância do consumo acerbo sempre rondava os estômagos e mentes – meu pai advertia.

“Esta experiência humana, que a maioria conhece dos manuais de história como Revolução Cubana, eu vi e respirei, ouvi e admirei, por seus ganhos e avanços, ainda torna-se defensável. Porque eu só consigo defender algo que se sustenta de maneira defensável. Não há ideologia que vá de encontro com a realidade. A ideologia pode transformar a realidade, no momento que movimenta músculos e sonhos. Todavia, ela não se sustenta quando quer manter mentiras, salvo quando é a própria encarnação da mentira” – meu pai pensava.

A Glanost, a Perestroika, o seu semblante entristecia, com voz firme e lúcida, quando narrava que foram processos necessários, o socialismo realmente existente não era socialismo que ele acredita e desejava, junto a ele, outros milhões assim acreditavam, foram os golpes finais na burocracia stalinista que desfigurou todos os ideais e projetos de um povo, de uma geração, de um tempo, de um breve século.

A restauração do capitalismo tornou-se tão ambicionada pelo soviético comum, ter sua força de trabalho explorada em troca do mundo de consumo ocidental transformou-se em um sonho, o sonho americano, o sovietic way of life, ao invés de sustentar uma nomenklatura, uma gerontecracia encastelada no Partido, investindo as forças humanas do seu povo em tecnologia bélica e espacial de ponta em troca de quilométricas filas no frio cortante e punitivo das grandes capitais da URSS, com medo de dizer que a vida estava impraticável e ser sumariamente morto nos porões infectos da KGB.

O russo médio aspirava por desfrutar de sua vodka em paz assistindo a roda da fortuna na sua televisão italiana, quente pelo aquecedor alemão, com o McDonald na esquina, instado por intervalos intermitentes de tempo a votar democraticamente para manter estas conquistas vindas do leste, o ocidente tinha vencido: todos haviam se transformado em consumidores da economia de mercado e cidadãos de democracias liberais – ele não se arriscava dizer até quando essa ilusão se sustentaria, com pés de barro do consumo, as mãos de bronze do trabalho explorado e a cabeça de ouro da liberdade, democracia e justiça.

O tempo que talhou aquele homem de maneira dura e cheio de ternura, seja nas crenças e esperanças, seja no ceticismo e desalento, seja nas roupas e maneira de falar, seja no modo extemporâneo de ser, deslocado, inadaptado, ainda escrevendo a mão ou na máquina de escrever, pedindo meu auxílio para utilizar o computador ou mandar um email.

“O formigueiro esmagador do indivíduo nomeado de socialismo real fora inexoravelmente substituído pelo campo selvagem do mercado dominado pelo lobo individual e suas alcatéias vulgarmente chamado de capitalismo. O nosso tempo representa a supremacia do liberalismo como fim da história, quero estar vivo para ver a sua derrocada, na mesma medida que testemunhei com meus olhos o histórico onze de setembro ao vivo pela televisão” – meu pai pensava.




III



Abandonado pela mulher, humilhado, gritado na cara: brocha, pobre, fudido. Também não era novidade, mais uma frustração na lista. O amor era cada vez mais uma palavra abstrata, genérica, sem significado ao seu coração, largamente gritado a sua razão pela vulgaridade sentimental alheia. Trocado por um decrépito infante que tinha como qualidades um vencimento mensal e ficar de pau duro.

Um daqueles idiotas funcionais, de escolaridade parca, déficit de leitura, sem saber a tabuada dos nove, para o qual democracia é votar no político que rouba mas faz, e ter orgulho de não gostar de política, ter orgulho de ser cego, dedicado ao trabalho técnico, um braçal da tecnologia, um animal sedento por fodas, por pernas abertas, mentes fechadas, um gozo de nove segundos, uma ave de rapina a procura de carne fresca. 

Um legítimo pária da multidão de acéfalos que movem o mundo, um autêntico exemplar da espécie, de incontáveis outros exemplares, aos milhares, aos milhões, de comportamento padronizado, massificado, uniformizado que nos, sim, a nós todos, arrastam para o eminente colapso: uma hecatombe da propedêutica generalizada. Eis o futuro em suas mãos: uma geração de mentecaptos guiados pela lei do menor esforço.

A mãe doente, necessitando de cuidados, ele, o único filho hábil para dar assistência, mesmo desempregado, e seu único irmão, o que restou, o mais novo, morando com ele de favor, um fardo, vagabundo e viciado.

As relações familiares representavam uma obrigação consanguínea que fazia questão de honrar, acreditava por alguma razão sobrenatural, existia um compromisso tácito na medida em que os laços de sangue eram irremediavelmente diretos. 

Ele era o mais velho, de três filhos, de três tentativas fracassadas de trazer uma menina ao mundo, um menino e uma menina, um casal, era o objetivo dos pais: uma família idílica das propagandas, da qual o resultado fora três machos tristes, numa família igualmente triste.

 Seu pai e o irmão do meio haviam morrido num trágico acidente de carro. O pai era espinha dorsal da casa, soturno, justo, generoso, severo, mantinha a ordem, a estabilidade.

Com sua morte, o corpo familiar se esfacelou, sem base, sem sustentação, transfigurado, amorfo. A viúva mergulhou na loucura, sucumbindo a uma depressão profunda, oscilando severamente entre estados de lucidez frágil e a obscura desrazão de surtos psicóticos.

Ela amava-o com uma devoção fervorosamente religiosa, era uma iniciada nos mistérios daquela esfinge, daquela estátua da Ilha de Páscoa, de um magnetismo avassalador, que lhe dava várias razões para viver, para o bom viver, para encontrar incontáveis prazeres nesta vida.

Mesmo que para todos não parecesse ter qualquer valor, ela, dos véus, das brumas, das alcovas da intimidade, sabia do valor daquele homem que por trinta anos compartilhara a vida na mais completa plenitude.

Se eram felizes, isso realmente não lhe importava, só lhe interessava estar ao seu lado, dando-lhe todo o seu amor, e se fosse o caso, amando pelos dois, porque, para ela, ele era a vida.

No lugar da estabilidade da sua compleição instalou-se um vácuo, um vazio desolador que seu rosto denunciava a primeira vista, a vida que se constitui por anos se esvaiu tal qual uma ampulheta quebrada, vida marcada, regrada, delimitada pelo pesar da areia que ficou ao encargo de cada um, sumiu o centro irradiador da ordem daquela casa.

Depois do acidente, morava com o caçula até o ano passado, viciado, roubando-lhe tudo, despeitando-a, pediu ao mais velho, ao filho que restou, que lhe desse ano de velhice tranquilos, meu pai nem pensou, enviou dinheiro a mais do que mandava todos os meses, compraram a passagem, herdou o fardo de sangue.

“Que vida de merda, tenho que me organizar, são muitas demandas, problemas, tenho que pensar soluções, tenho que pensar, sempre tem saída”.

Segunda-feira, seis e meia da amanhã, batem na porta. Choro de criança, ele estranha. “Criança chorando, uma hora dessas da amanhã”. De ressaca, vai à porta. Um cesto de supermercado, forrado por uma sacola plástica: um bebê envolto numa fralda suja e um bilhete. “Cuide desta vida, eu não posso, eu não quero, a vida é injusta. Faça justiça a esta criança. Deus lhe pague”. “Mãe filha da puta”.

Depois, minutos depois, limpou-me, percebendo ser uma menina. Ficou estupefato, sua ressaca passou na hora. Não acreditava naquilo. Parecia um sonho, um pesadelo, não sabia o que pensar, não sabia.

De concreto, uma criança a seus pés, chorando, suja, abandonada, uma criança, nos seus braços, um ser humano, abandonado, uma criança, limpa, uma menina, tratada como um animal. Um filhote humano da insensatez, uma cria descartada da barbárie, menos uma menina num mundo misógino.

“És a rosa vermelha que a mim foi dada pelas mãos do estrume chamado humanidade”– ele sempre me dizia, antes de um afago, simples, recatado, levantando o cabelo da minha nuca e roçando o nariz nela, que me tocava a alma.

Ainda estava frio, pegou a cesta, levou para dentro da casa, sem saber o que fazer, uma criança. Tinha alguns meses, limpou como pôde, em meio aos choros que lhe desesperavam, com uma camisa cobriu-me, quando me viu tranquila, serena, terna, sem choro, dócil, um amor avalassador invadiu seu coração. A única coisa que pensou: “Minha filha”.

Meu pai era professor de literatura. “Minha filha, sempre me dás muita sorte”, ele dizia com tom anedótico. “Depois que te encontrei, a minha sorte mudou”. Desde cedo, deu-me ciência, era filha do seu coração, escolhida, muito amada. Nunca duvidei disso. Em novembro, conseguiu emprego. Com o primeiro salário, internou o irmão, custeou o tratamento da mãe, comprou um berço e roupas para criança.

“Me dás sorte, minha filha, minha rosa vermelha”.

A minha infância foi pródiga para uma menina. Meu pai nunca me tratou como uma menininha, sua princesinha, me vestindo de rosa e enchendo de mimos e todas essas frescuras que inferiorizam as mulheres do berço.

Criou-me a sua imagem e semelhança: forte, obstinada, justa. Ensinou-me a ler e escrever. Entrei na escola três séries a frente da minha idade. Era sempre a menor da turma. Sozinha, não me agregava, todo mundo era idiota, demasiadamente idiota. Destacar-se com boas notas foi uma consequência natural.

Na cadeira de aluno só me fiz notar, além das notas e perguntas que espantavam os professores, nos bancos universitários: um problema apresentado algumas vezes era verdadeiramente respondido – algumas vezes. A única coisa que aprendi lá: conhecimento não melhora ninguém, só ensina a ser pior com erudição e aporte teórico.

No primeiro grau, eu gostava muito de matemática, funções do primeiro e segundo grau, trigonometria e toda aquela xaropada. Nas vezes que ia tirar alguma dúvida com meu pai, era muito engraçado ver o seu rosto de dúvida, o roçar a barba, ajeitar o cabelo em sinal de dúvida, não saber nada ou não lembrar bem, sempre dava desculpas: “é a idade minha filha, é a idade...” – como sabia que ia acontecer, gostava de vê-lo embaraçado.

No entanto, ele se esforçava estoicamente para responder, tirar as minhas dúvidas, dirimir as questões. “Ouça seu pai, minha filha, está tal de fórmula de Bhaskara, e olha que estou adiantado em anos, nunca me serviu pra nada na vida. O que quero dizer é: estude ela, mas não estude tanto... hahahaha”– meu pai saindo de uma situação vergonhosa.

Por volta dos onze anos veio a menarca, lembro bem: estava em casa, estudando no meu quarto, janela aberta, vento entrando, temperatura agradável, de saco cheio lendo alguma coisa sobre figuras de linguagem para a prova de Português. Uma dor na barriga, estava de saia, olhei para a minha calcinha molhada de sangue. Fiquei desesperada, pensei que havia me machucado, que estava morrendo, sei lá, nunca tinha visto tanto sangue.

Liguei para escola que ele trabalhava. Dez minutos depois chegou em casa. Ofegante, desesperado, não sabia o que fazer também, com uma alegria preocupada. Depois se acalmou. Pediu para eu tomar banho. Fui à doutora Laura no outro dia. Ela nos orientou sobre o ciclo menstrual e as mudanças no meu corpo – até hoje ela é a minha ginecologista. Anos depois, pensando nisso, lembrando essa situação, fui perceber a alegria e a preocupação do meu pai naquele dia: estava me vendo virar mulher.

No outro dia, meu pai e seu olhar orgulhoso, quando chegamos da médica, me deu três livros: “Dom Quixote”, “Os Irmãos Karamazóvi” e “Quincas Borba”.

E depois me disse:

“Minha filha, agora que estás virando mulher, na verdade, agora que és uma mulher, estás te transformando em uma mulher em carnes, é necessário que conheças a vida, nestes três livros tens um manual de instrução básico” – nunca me esqueço disso, naquele dia fiquei feliz com os presentes, ainda infantil, mas hoje, meu coração fisga mais, mais, mais apertado pelas mãos calejadas da saudade, açoitado pelas lembranças.

Sento na sua poltrona e tomo um café turco. Não conheci meu avô e um dos meus tios, mortos no acidente de carro. Não conheci minha avô que morreu a dois anos de derrame. Não conheci o irmão mais novo do meu pai, morto por uma overdose de cocaína. Meu pai era a única família que conheci, o único laço de sangue genuíno criado por mãos humanas.

Ele era a planta que me alimentava: uma rosa vermelha repousada num solitário. Ceifada que sou hoje, as lembranças em me regam, as memórias me sustentam, a rosa vermelha que precisa se transformar em planta. As raízes da realidade querem me fixar no chão de concreto para o qual eu não fui feita para viver, mesmo que tenha sido diligentemente ensinada pelo meu pai.




IV



Hospital Psiquiátrico “Erasmo de Roterdã”.

Três horas da tarde.

No consultório, uma mulher de branco e um homem vestido modestamente.

“Boa tarde. Desculpe o atraso. É o trânsito infernal dessa cidade” – mentira, estava transando com uma aluna e perdeu a hora, vinha corroído pelo remorso do atraso.

“Boa tarde. Sem problemas. O senhor chegou pontualmente” – tanto faz, se ele chegasse cedo ou tarde, esse é um caso sem solução, como tantos outros na carreira.

“Que bom, detesto atrasos. Sobretudo, os meus” – pelo menos era sincero.

“Compreendo. Então, sou a psiquiatra que está acompanhando o caso de sua filha. A anterior saiu de licença, portanto, daqui em diante eu acompanho o caso”

“Algum problema com ela?” – fingindo se importar, como fingia em situações sociais, como manda a etiqueta da boa sociedade.

“Não justificou” – sabendo que não se importa, nem ela mesmo, uma resposta formal.

“Huummm” – um ruído qualquer como resposta na falta do que dizer.

“Então, eu li último relatório e o tipo de tratamento que ela estava submetendo a paciente. Não tenho como avaliar agora. Contudo, acredito que estava sendo adequado, de acordo com os sintomas e os distúrbios apresentados. Ainda é cedo para eu apresentar a minha posição. Diante da mudança, o que posso dizer é que vi casos piores. Talvez essa seja reversível” – palavrório técnico aprendido em anos de profissão, sobretudo a habilidosa capacidade de mentir diagnósticos para ver esperança nos olhos de parentes e familiares, sadicamente pensado.

“Prefiro aguardar. Já perdi as esperanças” – frustrou-se com este incrédulo filho da puta.

“Pelos delírios e as palavras soltas que, segundo o relatório diz, posso depreender que sua filha lhe amou ou ama muito” – insiste, explorando sadicamente as emoções.

“Desde a primeira vez que a vi nos meus abraços, em circunstâncias que depois esclareço, eu a amei imediatamente. Por que a senhora diz isso?” – lembrando-se da vida e curioso pela estranheza do que havia ouvido.

“O relatório apresenta diagnósticos detalhados, copiosas descrições comportamentais e vários níveis de tratamentos pautados em uma complexidade de delírios lapsos de memória e diversas alucinações expressos a partir de duas palavras” – de propósito inconclusiva.

“Quais? Quais?” – ávido de curiosidade.

“Meu pai” – sentenciou secamente.

(Felipov)