segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Conversa com Camus






Vivo. Existo. Objetivamente. Materialmente. Uma pilha de moléculas, átomos, células, tecidos, órgãos, cérebro, fome, sexo, angústia, sofrimento, chatice, alegria, solidão – e, é claro, um pouco de sacanagem. Existência precedendo consciência. Não sei por qual razão, motivo, ou causa, existo, permaneço, continuo. Talvez, isso, ainda, não esteja clarividente para a minha parcimoniosa inteligência. Contudo, vivo. Vivo pela razão única de não tenho outra opção. A minha inusitada alternativa é viver. Sobreviver – não sei bem. Não sei bem, Camus.

As coisas, a vida, os homens, a natureza, me parecem agora, nesse instante, diferente de qualquer outro, porque neste momento, estou pensando, de modo inescrutável, e, ao mesmo tempo, inefável, da forma própria na qual se movimentam os meus neurotransmissores neuróticos abalados por anos de displicente atividade cerebral, uma grande massa amorfa que procura organizar no meu juízo. Há juízo perfeito sobre a terra, meu caro Camus?

Na verdade, concordo contigo, Camus, a questão filosófica fundamental é o suicídio. A necessidade de desvelar as razões mais profundas em si mesmo, para formar a firme avaliação se esta vida, esta existência, esta cidade, este bairro, este Estado, este país, esta classe social, esta religião, este emprego, este salário, este planeta, esta galáxia, este universo, valem realmente a penosa desventura de viver. Eis a questão fundamental. Tens toda razão, caro Camus.

Amor. Sentimento em extinção. Considero, Camus, o amor nas suas múltiplas manifestações na existência humana. Fraternal. Maternal. Eros. Altruísta. Contudo, ele cada vez mais é confundido com uma procura desesperada pela satisfação desmedida do Ego. Vejo que o amor, os sentimentos amorosos, ou essa masturbação a dois com vomitação de arco-íris, no tempo em que vivo, transformaram-se em um platonismo virtual que se liquefaz na sucessão frenética das imagens que fazemos de nós e dos outros.

Quando as imagens idealizadas não se confirmam no deserto do real, quando esse platonismo romantizado no anacronismo próprio dos sentimentos inventados no mundo etéreo daquilo que se esperada, almeja, deseja, não se confirma, não se contempla, não se satisfaz. Vem, apenas, o masoquista sentimento de frustração daquilo que era ideal e permaneceu ideal. O Ego não satisfeito destila sua dor em atos infantis de recalque e afetação. Diga-me, caro Camus, quando os humanos compreenderão que não há metafísica e sim apenas o terreno árido da existência em matéria amorosa?

Solidão. A antítese por excelência do amor. É rejeitada, ignorada, renunciada. Estar só é visto com tristeza e temor, como algo ruim e reprovável. A simples possibilidade de ficar sozinho provoca em algumas pessoas um sentimento de vazio, vácuo, ausência. Em oposição a dimensão virtual das relações humanas, a solidão é uma das extensões da existência, um desafio que nem sempre é fácil enfrentar: encontrar a si mesmo. A solidão, a meu ver, é simplesmente, estar consigo mesmo, conhecer a si mesmo. É, em si, um exercício de maiêutica. Conhecer a suas potencialidades e limitações, defeitos e qualidades.

Ficar ao largo, parcialmente, da loucura cotidiana que nos imputa a sociedade do capital. É, em parte, refugiar-se na torre de marfim que existe em nós, em nossa psique, que deve ser descoberta, consertada, e visitada de vez em quando, ela não precisa ser esquecida, porém, ao mesmo tempo, ser superestimada. É a proteção em si mesmo de modo efêmero, que necessita ser periódica. É aprender a viver sozinho, aprender a viver em um, condição fundamental, para viver em dois, e premissa sine qua non da vida em sociedade. O que me dizes a respeito da solidão, Camus?

Liberdade. Aquela dimensão da condição humana que é quase impossível de definir por conta das miríades de explicações, cogitações, ponderações e conceitos, mas que todos os humanos, independente de qualquer condicionamento social, cultural ou econômico, conseguem sentir, saber o que é, o que significa, o que almeja sob o pavilhão da Liberdade. Contudo, como bem sabes, sábio Camus, esta sublime idéia, que vem encapando os sonhos humanos a milhares de anos, é também utilizado para aprisionar e alienar, enganar e usurpar, dominar, resignar. Enfim, para fundamentar o status no qual vive o mundo ocidental da garantia irrestrita da liberdade de acumular, explorar, enriquecer à custa de lançar por terra na mais indigna e abominável miséria, imensos contingentes de população humana.

É a economia de livre mercado. É a democracia liberal-representativa. A garantia tão somente das liberdades e direitos individuais. É como se os desiguais tivessem a mesma liberdade e condições iguais de competição na arena do mercado, orquestrados pela sua mão invisível. Essa falácia construída no século das luzes para solapar o Cetro, serviu de forma legítima, para não dizer, descarada, para engordar as ricas panças da burguesia internacional, e acumular a maioria das riquezas do planeta nas mãos de meia-dúzia de especuladores, vulgo: investidores.

Nesse sentido, caro Camus, sou quixotescamente romântico quando considero a liberdade como a concretização do projeto iluminista da perfectibilidade humana – mesmo que ela tenha se degenerado nas mãos dos senhores do status quo em um liberalismo cínico e usurpador. A possibilidade de criar uma ordem das coisas na qual todos os homens possam desenvolver seus potenciais em comunhão com outros homens, ultrapassando, assim, o reino da necessidade para o reino da liberdade. Será isso, possível, amigo Camus?

Desigualdade. Camus, meu caro, apenas não consigo julgar natural, ou uma fatalidade qualquer, ver uma pessoa passar fome. Não consigo naturalizar a pobreza. Ver pessoas vivendo de salário mínimo. Uma minoria desfrutar com riqueza de desperdício o que é produzido pela imensa maioria. Ver em uma profusão quase infinita vidas serem dilaceradas pela falta de proteína, vitaminas, sais minerais, uma deficitária dieta de calorias, gastando suas últimas energias na esperança assentada em um genuflexório orando. A alienação advinda do analfabetismo, nos poucos anos de estudo, do não saber o que se está lendo, ou fazer contas, acreditar piamente no que o padre diz, no que o pastor diz, no que o prefeito diz, no que o deputado diz, o empresário diz, o senador diz, o juiz diz, o presidente diz, como se fosse a encarnação da vontade divina. A desigualdade, caro Camus, faz com que a gente simples não conheça a força adormecida em suas mãos e pés calejados pelo labor. Qual seria a solução, Camus?

Vale, realmente, a penar viver tudo isso? Não sei, Camus. Contudo, obrigado por me ouvir. Muito prazer, chamo-me Violante.

(Felipov)

1 comentários:

mariottez. disse...

"..na qual se movimentam os meus neurotransmissores neuróticos abalados por anos de displicente atividade cerebral, uma grande massa amorfa que procura organizar no meu juízo." pqp hein.

Rabuja, desculpa o sumiço, mesmo sabendo que estas absurdamente abaladíssimo com a minha ausência.. é que estou vivendo um turbilhão de emoções, quando estiver disposta eu te conto.

enquanto isso.. "bejins, miguxo."

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