sábado, 26 de fevereiro de 2011

Realismo fantástico




Meu amor,

Eu sei, eu prometi. Não mais te procurar, e não mais tentar. Contudo, não consigo. Foi profundo, forte e intenso demais para esquecer. Sobretudo, uma demonstração, que nunca mais verei na vida, de tão sincronizada reciprocidade – diria: inexplicável. A conversa desconcertada do começo, gaguejante e incerta de minha parte, nervosismo e tantas coisas por falar, até a coragem do primeiro toque, em tuas mãos. Daí, o que se seguiu foi apenas os sentimentos se encontrando. A conversa peripatética mostrando a afinidade subjacente pelo quadrilátero das mangueiras. A ida à livraria, não havia lugar mais apropriado para dois amantes de livros conversarem e conversarem... Quando estávamos conversando, falei da frase do Jorge Luís Borges ou alguém que me foge a memória que dizia ter a impressão de que o paraíso, por um acaso, seria parecido com uma livraria. Concordei com essa idéia de vez nesse dia – por mais metafísica que ela possa parecer. Foi algo indescritível o momento no qual senti os teus braços me envolverem e o contato dos teus tenros cabelos contra a minha face. Eu esperava esse dia a muito. De sentir o teu cheiro e a textura dos teus lindos cabelos crespos. Ao olhar-te nos olhos e receber um beijo tácito, envergonhado e intenso, em meio a suspiros e afagos. Reitero, nos encontramos. O que se seguiu no banquinho da praça foi apenas o prolongamento da livraria. Aquela tarde está na memória: deitado no teu colo, conversando, beijando e recebendo carinhos da minha amada. É impossível esquecer teu cheiro, teus beijos e afagos. Ali conquistastes um lugar definitivo no meu coração. Minhas memórias e lembranças são insistentes em trazer a lume aquele dia, aquela tarde feliz na qual nos encontramos. Minha linda, aquela tarde ainda vive em mim, dando-me alento e pesar, meu amor, não quero perder-te. De facto, foi um encontro. Depois que me falastes e me esclarecestes muitas coisas, percebi que ele foi tardio. Porém, aconteceu de forma mágica e real. Como deveria acontecer, na proporção mais exata, e melhor do que qualquer planejamento. Foi um realismo fantástico. Admito que a minha abordagem inicial não foi das melhores, ou a mais adequada. Não agüentava mais, os sentimentos estavam a soltar-se da garganta e a jorrar pelos olhos. Tinha que lhe falar, em qualquer hipótese. Esse momento, o da revelação, vinha sendo gestado a muito, pensado, sopesado e planejado nas miudezas dos detalhes. Na verdade, ele tem início no primeiro momento que te vi. E se consolidou, a partir do momento em que começamos a nos falar com mais freqüência. Dizes com todo o furor e certeza que não me conheces e desconfias de mim. Reputas a amizade como o único laço que nos une. Quando ouço tais sentenças, acabo por ver coerência no teu pensamento, mas eles não correspondem a realidade, principalmente, a realidade do que sinto. Dizes que cheguei tarde, que um dia, um dia longínquo gostastes de mim, e como não correspondia, me esquecestes. Essas palavras, esses atrasos, esses erros contigo, caem sobre mim como um crime, que estou recebendo agora o injusto e imerecido castigo: ficar sem ti. Mas esse castigo é maior do que as minhas capacidades podem suportar. Muito, muito maior. A sentença final, mesmo que soubesse, veio de tua boca, da qual não devia ouvir: que ias embora para Europa. Europa!! – algo tão terrível para me separar de vez de ti. Quando soou “embora”, foi a lâmina da guilhotina a cair no seu ímpeto cortante de fazer justiça a qualquer custo e pelas próprias mãos, que desferiu seu golpe mortal sobre minhas esperanças de Florentino. “O meu amor de uma vida”, dizia que estava partindo. E pediu para que não alimentasse as esperanças de Florentino. Nem minha Fermina quis ser. Dissestes que a resolução de tal impasse seria por meio de uma escolha, e não titubeastes: escolhestes o exílio, uma nova vida. Neste dia, na verdade, madrugada, disse-te, com lágrimas aos olhos e o coração dilacerado: desisto, diante de tal escolha, desisto de ti, meu amor, pois me dói ver-te confusa como estavas. Desisti, por considerar, e o meu coração dizia isso, que serás feliz com a partida. E eu quero, mais que ninguém, ver-te feliz, quero ver meu amor feliz. Minha linda feliz. Confesso, disse isso. E quero de facto ver-te feliz. Mas sinto sua falta. Por mais que conversemos, e tenhamos concordado o firme contrato de sermos amigos, como de facto somos. Eu sinto mais. Aquela tarde ainda vive em mim. Meu amor, nem preciso dizer que o meu normal não é assim, demasiado chato, piegas e romântico, sou assim contigo. Sei que desconfias e dizes que não me conheces em razão de nossas distâncias e antagonismos. Mas as nossas aproximações e afinidades são de igual força, e tenho certeza, bem maiores que nossas distâncias. Nós conseguimos criar o que o Gilberto Freyre chama, óbvio que para entender outras questões e em outro contexto, de “equilíbrio de antagonismos” – desculpe o ranço acadêmico. Nós criamos um equilíbrio, a partir da nossa amizade. E iniciamos um amor, a partir daquele encontro. “O amor como estado de graça, que não é meio para nada, e sim, origem e fim em si mesmo”. Desculpe – sei até o que deves está pensando, depois de ter escrito tudo isso, sem a menor criatividade e cheio de erros de português, é, a gramática que vive em ti aparece nessas horas (risos), ele vem pedir desculpas, esse menino é incorrigível mesmo, não se emenda -, mas tinha que escrever-te. Pensei em fazê-lo a mão para guardares, sei lá, porém, como a minha letra é como é, tá, admito que não é das melhores, achei por bem escrever por aqui mesmo – pela máquina de escrever. Diante da tua decisão, a qual eu obedeci, apenas escrevi essas singelas linhas para saberes disso. E que tenho saudade. E preciso te ver, necessito te ver – mas isso está subtendido, como errei por muito tempo em ser assim, tais linhas acabam por dizer esses anseios, de modo direito ou indireto. Preciso de ti. E cada vez mais uma certeza ratifica-se no meu íntimo: és o amor da minha vida. Reitero minhas desculpas, mas havia de lhe falar, tinha que lhe dar ciência desses sentimentos recônditos, às claras.

Do seu Felipov.

(Felipov)

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Talvez




Talvez a felicidade resida em estar com as pessoas de quem se gosta e que gostam de você, com quem se pode trocar algumas idéias, rir, se divertir, chorar, reclamar, brigar, discutir, e, depois, perceber que tudo isso foram apenas experiências trocadas, a vida compartilhada. A vida apenas, sem mistificações.

(Felipov)

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Apenas uma




Apenas uma, era o que precisava. Sentei e pedi uma. Fiquei alguns minutos vendo as pessoas circundantes. Nada do meu pedido. O bar estava lotado. Procurei ter paciência. Comecei a observar a vida em volta. Óbvio, a minha volta, tinha vários rostos, cabelos, gestos, risos, de pessoas conversando e bebendo depois de um dia estressante. Decerto, algo normal em qualquer grande cidade. No entanto, havia uma peculiaridade: eu sentei só. Sentei só e pedi uma. Que, por sinal, ainda não chegou. Começo a ficar impaciente. Não consigo me acostumar com atrasos. Mas, continuo esperando. Preciso de uma, depois do dia que tive hoje. Não vou ocupar o leitor amigo com os meus problemas – todos têm os seus. Ah, agora, depois de meia-hora, chegou. Primeiro gole: o sublime efeito que a cevada, o centeio e lúpulo têm ao sabor da primeira golada gelada. Após esse efeito, e a sua respectiva satisfação e paz de espírito, percebi que as pessoas cada uma a sua vez, alternada e progressivamente, me observavam. Fiquei perturbado com isso. Um mal-estar apoderou-se de mim. Mais um gole. As pessoas continuam a me observar, com olhares perscrutadores, indiferentes, intencionais. Pensei que tivesse algo de errado comigo. Olhei-me rapidamente, e não percebi nada de anormal. Decidi ficar indiferente. Terceiro gole. Depois desse dia, era o que precisava. Algumas pessoas continuavam a me olhar, outras já nem se davam conta da minha presença. Quarto e último gole, ela acabou. Nesse momento, foi que percebi a razão do estranhamento das pessoas alhures: é por eu estar bebendo comigo mesmo. Mas, o que há de estranho em beber só, eu, eu mesmo, uma garrafa, um copo semi-cheio, e a satisfação pessoal de estar bem consigo mesmo e relaxar depois de um dia cansativo. Talvez, beber só seja terapêutico. Ou, eu seja esquizofrênico – das duas uma. Contudo, bebi apenas uma e relaxei. Parti para casa e dormi bem. Não sei você, caro leitor, mas às vezes, uma tem um efeito profundamente terapêutico. De fazer relaxar e aproveitar a solitude. Apenas uma.
(Felipov)

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Adeus





“Meu amor, estou me afastando. Desculpe. Adeus” – estava escrito em uma cardeneta, embaixo das chaves dela, grafado irregularmente com lápis de olho. Gavetas vazias. Cabides sem roupa. O seu lado ainda quente na cama. Parece ser bastante evidente o que queres dizer – desculpe escrever a mão, sei que minha caligrafia é sofrível. Contudo, podes deixar mais claro o que queres dizer com isso, com o termo "afastamento". Por favor, seja categórica. E se há alguma razão para esse "afastamento" – para além da evidência. Só pra não ficar dúvida - sou meio lento. Que fostes embora da minha vida. Digo-te de pronto: fiquei triste. No entanto, não se preocupe. Como diz o Cartola: Acontece. Mas tenha certeza, o que te disse não foram apenas palavras, foram sentimentos - sou um sentimental, infelizmente. Foi importante te conhecer. Fiquei impressionado em conhecer alguém, mesmo com a distância, a inexorável distância, que me encantou. Encantaste-me. Não só pela beleza, mas, sobretudo, pela personalidade forte e a inteligência - o pessimismo, os detalhes, os escritos, gostar de literatura, cinema. Reitero o que havia dito outrora: és rara e especial. E por isso fico triste. Desculpe a prolixidade desnecessária e maçante. Pena que teu silêncio me disse o que eu não queria ouvir. E que a minha imaginação foi muito fértil – para o meu azar. Só mais uma pergunta, podes responder laconicamente: gostastes do presente?? Espero que sim, é a lembrança material que fica. Mesmo com a desventura, fico feliz. Fico feliz com o que ficou. Como percebestes, estou feliz e triste. Agora, não tenha o desconforto de responder essas linhas tristes se não quiseres. Utilize-se do seu livre-arbítrio. O silêncio do papel em branco vai me dizer, vai me responder. Neste momento, em que te afastas, entro nas sombras, nas brumas do tempo – como diria Florentino Ariza. E reitero o meu desejo: sejas condenada a felicidade. Ah, vou abusar: quero uma lembrança material tua, para além daquelas que ficou no meu coração, corpo e mente – não quero acreditar que foi apenas a minha imaginação, que eu inventei. Fiques bem – espero que meu coração fique. Adeus.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Dia dos seus anos



Distante, fico apenas observando em perspectiva, os resquícios de sua ausência presente. E agora, que ela festeja o dia dos seus anos, não queria estar tão distante. Porém, minha distância é física, apenas física. A tua imagem habita o meu olhar. As suas idiossincrasias orientam o meu pensamento. Ela me lembra o céu. A sua beleza é apenas um índice de que ela existe de facto, e não é um devaneio meu. Ela é ternamente linda, naturalmente linda. O castanho dos seus olhos e cabelos, e seu sorriso tácito, por vezes envergonhado, me mostram uma mulher forte, livre e inteligente. Como sonhei um dia. Sua juventude me deixa confuso, ela é novinha em anos, mas demonstra em seus atos e idéias a experiência própria dos anos de madureza. É de uma juventude madura. Algo muito raro hoje. Ela é rara. Raramente especial. Um encanto. Com estas linhas tortas quero ser presente em sua solidão. E desejar, no dia dos seus anos, a Felicidade plena. Que sejas feliz. Plenamente feliz
(Felipov)

Devir




Estou passando por um momento de mudanças. É certo que todos já passaram por mudanças, mutações, metamorfoses – a existência humana é marcada pelo dever-ser, pelo vir-a-ser. Consciente ou não. Acredito que as minhas são conscientes – e isso, inevitavelmente, faz-me pensar, refletir e sentir. Não sei, talvez tenha transformado a mudança em um estado de ser, e não mais de estar, como outrora. Tenho procurado resolver problemas e pendências. Questões e problemas que pensei que havia resolvido com algumas ponderações e experiências passadas. Ledo engano. Enganei-me, elas continuam. Perpetuam-se, provocando algum mal-estar, e me fazendo perder, errar. Nunca havia ponderado tanto sobre a existência, a liberdade e a profusão das possibilidades de escolha, bem como, a restrição que a vontade, o desejo, a moral e uma conduta ética provocam. O meu problema fundamental é: tenho sentido pouco – se minha ponderação estiver correta. Sentimentos rasos me dominam. O Ego me domina. Talvez não seja sentir pouco, seja apenas sentir a mim mesmo. Sentir, sob o meu ponto de vista, apenas. Talvez eu seja apenas mais um egoísta que tem vergonha de sê-lo. Talvez, apenas.
(Felipov)

O professor




Ontem foi o primeiro dia de aula. Tudo se tornou peculiar, raro, singular, único. O professor percebeu que o ato de ensinar é a um só tempo o ato de aprender, ensina-se e aprende-se. Os alunos constataram que a "lição" do professor não era mais para “passar” na prova, decorar e fazer questionário, mas ela estava em suas vidas. As explicações da sala de aula estavam para ser vistas na rua. O saber da escola estava desvelado na esquina de casa. O professor vive e aprende ao ensinar. Os alunos, agora, vivem o que aprendem. As barreiras entre escola e sociedade foram quebradas, sendo que sempre houve tal relação, mas o que se aprendia na escola não se via na rua. A rua invadiu a escola. Compreender a rua é a função da escola. Explicar a vida dos homens que andam nas ruas é o papel da escola. Constatar os problemas sociais das ruas e pensar formas de modificação, soluções é a finalidade primeira da educação. Ninguém aprende sozinho. Os homens aprendem em sociedade. O ato de ensinar-aprender é coletivo. Modificar é igualmente coletivo. Eis a educação: aprender a transformar.
(Felipov)

Aspásia




Perdido. Estou perdido de amores. Aspásia domina meus pensamentos, domina meus sentimentos. Faz-me sentir vivo. Faz muito tempo que não sinto isso. Esse contentamento, esse desassossego, a alegria e a tristeza repentina, que o sentimento amoroso nos faz sentir. Conheço-a algum tempo, uma amiga me apresentou. Estranhei o nome dela tanto quanto o leitor amigo. Achei-o peculiar e original. Vinte primaveras completas. Cabelos ondulados e amendoados, olhos cor de cobre, ternamente alva, com um sorriso encantador, voz doce, um jeito leve de articular a fala, de arrumar os cabelos, pele macia, tinha cheiro de roupa limpa e alfazema. Provocou-me profunda impressão à primeira vista. Conquistou-me no primeiro contato, ao sentir o seu cheiro, a sua voz, o seu brilho. A minha amiga havia me dado algumas informações sumárias sobre Aspásia. Gosta de música – toca, desde a infância, piano, escaleta, violão, clarinete e trompete. Aprecia, de igual modo, o clássico e o popular, e considera ridícula a divisão arbitrária entre o popular e o erudito, acredita que é mera distinção de meia dúzia de intelectuais metidos a besta. Música instrumental é a sua preferência. Noel Rosa, Cartola, Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Tom Jobim, Miles Davis, Jonh Coltrane, Chopin, Bach, Beethoven são os seus mestres. Rock tem que ser clássico, Chuck Berry, Jerry Lee Lewis, Elvis Presley, e ainda, Led Zeppelin, The Doors, ela viaja nos solos de teclado, e Black Sabbath. Literatura – tem algumas coisas escritas, em poesia e prosa, deixa-as guardadas na gaveta, escreve para si, gosta muito de Drummond, Pessoa e Neruda, bem como Machado de Assis, Graciliano Ramos, Kafka, Virginia Woolf e Máximo Górki. Cinema – gosta de muitas coisas, mas, sobretudo, cinema soviético, cinema italiano, o neo-realismo italiano, e cinema francês, nouvelle vague. Adora sorvete de castanha e frutas silvestres. É uma vegetariana ideológica, no caso, não-praticante. Sopa de ervilha e caldo verde são seus pratos favoritos. Tem um super-nintendo em casa, e é fissurada em mariokart. Ainda ri com as piadas do Chaves, aprecia esse humor ingênuo presente também nos três patetas, o gordo e o magro e no grande carlitos. Não gosta de maquiagem. Nem de calça, e salto. Usa, geralmente, sandálias de couro, sapato de lona e vestidos estampados hippies ou orientais. Tem uma camisa do The Doors surrada, uma tatuagem com desenhos marajoaras na perna, e uma frase nas costas: “Meu tempo é quando” do Vinícius de Moraes. Fala alemão, francês e inglês – lê alguma coisa em italiano e espanhol. Cursa História, pesquisa sobre Estado Novo. É fascinada pelo DIP. Nem preciso dizer que ela é marxista. Pensa em fazer mestrado na Antropologia – quer pesquisar os mecanismos de dominação simbólica através dos meios de comunicação de massa e seus reflexos na cultura política do Estado Novo. Estuda por conta própria psicanálise, se diz lacaniana – leitora voraz de Zizek. Detesta cigarro, e adora tequila. Mora só, em um quarto-sala com o Gregor, seu gato preto. Medo inconfesso de aranha e barata. Metódica, tem mania de organização. O seu quarto é quase um estúdio, com tantos instrumentos, e uma biblioteca, com tanto livros, está pensando em colocar os livros na sala, para ter mais espaço no quarto. De quando em quando, em razão do acúmulo de poeira, sua rinite e sinusite atacam, é o fim do mundo. Caro leitor, preciso dizer por que estou perdido de amores. Tenho pouco contato com ela. Vejo-a nas ruas ao acaso. Ou nas mesas de bar, com os amigos. Ela sempre fala comigo, solicita e amável. Trocamos algumas palavras, rápidas, é verdade, mas me contento, pois todo o contato, mesmo o mínimo possível, é o bastante. Fico olhando-a, de longe, conversando e gesticulando junto a outras pessoas, ela sempre se destaca, com a sua leveza e graça, quase angelicais. Tem uma especial predileção por sebos – adora livros velhos e usados. Soube de sua própria boca, semana passada, encontrei-a no sebo que freqüento toda a semana. Entrei, como de costume, cumprimentei o livreiro, o Seu Faustino, e vi-a, distraída, na estante de Literatura. Fiquei encantado ao vê-la. Parei e recuei, para que não me visse. Tinha que me recompor de tamanha surpresa. Respirei fundo, e fui falar com ela. “Olá, Aspásia” – disse com entusiasmo e tom de surpresa em vê-la ali. “Olá, Andrei, bom te ver, como és um rapaz versado em literatura, estou procurando um livro do Gárcia Márquez, estou querendo iniciar no realismo fantástico” – com a mesma solicitude e graça de sempre. Meus olhos brilharam. Desculpe-me, caro leitor, a minha falta de cortesia, não me apresentei, chamo-me Andrei. Mas isso pouco importa. O que importa é seu interesse em Gárcia Márquez. Era mais um interesse em comum. Começamos a conversar. Ela procurava o “Cem anos de solidão”. Fomos perguntar ao seu Faustino se havia em seu acervo, já que não vimos nas prateleiras carcomidas e empoeiradas. Ele disse que não tinha nada de Gárcia Marquez, mas tinha o “Memorial do convento” de Saramago, com um ótimo preço. Aspásia também não conhecia muita coisa de Saramago. Então, eu disse: “Vou iniciá-la, vai ser um presente meu, não aceito recusa”. “Não precisa, Andrei, estou procurando mesmo o Gárcia Márquez”. “Não, que isso, faço questão, vais gostar muito da história da construção do Convento de Mafra, bem como das desventuras de Baltazar, Blimunda e do Padre Bartolomeu Lourenço”. “Ai, Andrei, contando desta forma, não tenho como recusar”. “Ah, e eu tenho o Cem anos de solidão, te empresto”. “Só tu mesmo, Andrei, me iniciando nos grandes mestres da literatura”. “Que isso, faço com prazer. Temos muito que conversar”. “Temos mesmo”. Ela olhava-me com um ar envergonhado. Percebi o seu interesse. Convidei-a para tomar um café, na verdade, um capucchino para continuarmos aquela conversa. Ela aceitou, de pronto. Havia uma cafeteria ao lado do sebo, que, obviamente, eu também freqüentava. Nessa ocasião, soube de outra preferência dela: o gosto por chá e pão de queijo. Sentamos, fizemos os pedidos, e começamos a conversar. Não demorou muito, chegou o café, pois capucchino estava em falta, o chá, e os pães de queijo. Foi-se desenvolvendo a nossa conversa literária aos goles de chá, café e mordidas no pão de queijo. Olhei-a nos olhos, e não consegui mais disfarçar minha paixão, e peguei em sua mão. Ela apertou a minha, inclinou-se mais perto, afagou-me a barba com todo o afeto, e apenas me disse: “Agora, esta barba é minha, beija a tua boca com teu gosto de café”. Nunca pensei que Gárcia Márquez e Saramago me tirariam da solidão. Aspásia é o seu nome, encantado eu fico, e perdido de amores eu sigo.
(Felipov)

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Saudade




Aperto no peito. Atos no tempo, na duração. Experiências vivas, fulgídias, agora. Apertam-me a garganta, habitando a memória. Pondero, nostálgico, o que foi: as pessoas, os abraços, os beijos, os afagos, os carinhos, os amassos, as conversas, os conselhos, as discussões, as brigas, os xingamentos - a vida vivida em si, nada além. As quero de volta. Aqui, ao lado. Contudo, não posso, já foram vividas. Apenas, o que posso é enviar uma carta, escrita no ímpeto das coisas pretéritas, e borrada pelas salinas lágrimas que lembram, e aguardar resposta. No caso, ter algumas notícias de quem se quer perto e está longe. Alhures, quiça. No mais, se não houver resposta, fico apenas com o que tenho: esperança do reencontro, lembrança do que foi e não é mais.
(Felipov)

Não quero



Não quero rapidez, quero sentar e conversar, aos goles de chá, ouvir suas tristezas. Bem-aventurado o ato de compartilhar desventuras. Não quero honrarias, sou falho deveras e sou consciente disso. Não quero ter medo, ele nos paraliza quando deveriamos agir. Não quero obedecer cegamente ao critério de autoridade, se existe autoridade, ela foi feita para ser respeitada e, sobretudo, criticada e contestada. Não quero a empáfia, sou simples demais para isso. Não quero ser competente, as minhas limitações me bastam. Talvez, seja apenas isso que quero: o bastante. Não quero que me bastam e tolham. Eu já me basto. Basta. As minhas limitações, bastam.
(Felipov)

Amanhecer

(by Ana Júlia Lacerda)

Nas brumas da madrugada febril, a geometria exata da paisagem, organizava a vida dos citadinos. Escondendo arranha-céus que guardam vidas sobre vidas. Vidas que dormem, vidas que despertam, vidas que vivem o tempo fulgídio e efêmero do concreto. As brumas são dissipadas a luz do sol das manhãs preguiçosas. Comtemplada pelos infantes insônes, nas suas lentes sensíveis a vida alhures. A vida rápida, a vida exata, a vida concreta.
(Felipov)