“A morte é o não-estar”
(José Saramago)
“Passando assim a vida, destruindo
O que fiamos ontem
Penélopes tristes”
(Fragmento 172 – Ricardo Reis)
Cheiro de tabaco, tequila e vida gasta exalam das minhas roupas velhas, carcomidas, anacrônicas, compradas em brejôs. Completei, ontem, um século de vida. Plenos de saúde, vigor e vitalidade. Sem doenças, enfermidades, moléstias. Apenas uma unha encravada no pé que está me incomodando no momento, um pouco de insônia, algumas dívidas e vontade de foder.
Encerro em mim, o medo da vida eterna. Já travei três séculos de existência. Na época, do tempo das certezas, em que nasci era tão fácil morrer: doenças, guerras, tristezas. Família grande. Pai, Seu Antenor, lavrador. Mãe, Dona Marta, dona-de-casa. Casamento arranjado é diretamente proporcional a vida infeliz de momentos alegres. Meu nascimento, motivo de tal precipitado arranjo, foi um dos momentos felizes, segundo meus pais, que me deram o nome de Idalícia – algo que duvido muito, mesmo sendo minha vida.
Sou a mais velha de três irmãos e três irmãs. Sempre detestei minhas irmãs, e mantive relações razoáveis com meus irmãos, de modo indireto, apenas suas vidas me interessavam, em razão de convivermos sob o mesmo teto – tão somente. Agenor, o que veio depois de mim, era muito falante, inteligente, prático e inquieto. Gerson, que o seguiu, mais quieto, lacônico e sonhador. O caçula, José, o zezinho, o mais moleque, engraçado e brincalhão de todos, sempre tinha um anedota e uma piada na ponta da língua. Todos seguiram o caminho do casamento precoce herdado dos pais, pouca escolaridade, trabalho braçal e formação familiar. Menos eu.
Fui a única que procurou a senda dos estudos, da vida independente, sem família, sem satisfações, sem compromissos. Antes disso, conheci, no início da adolescência, um dos meus primeiros vícios: o cigarro. Seu Antenor, quando tinha preguiça de bolar seu tabacão, ensinou-me, na condição de primogênita, já que Deus não lhe tinha dado filho homem por primeiro, a peso de muita bofetada, a fazer o seu cigarrinho – eu cuidadosamente filetava o tabaco, enrolava na seda e acendia. Aprendi a tragar e ter gosto pelo sabor do tabaco. A combinação entre álcool e tabaco foi automática. Bebia cachaça escondida.
Dona Marta sempre foi abstêmia, tinha apenas dois vícios: trepar e rezar – nessa ordem. No entanto, meu pai foi o único homem de sua vida. Do Gerson, as mulheres – os tímidos e calados tem um imã para as mulheres. Agenor era o trabalho. E zezinho, a jogatina. Nelvinha, a mais faceira, era mulher do Zezinho – sem vergonha que nem ele. Joana, do Gerson – calma e obediente, tolerava as traições do marido. E Auxiliadora, do Agenor – diligente, empreendedora e metódica, um feito para o outro.
A primeira vez que vi a morte foi na escola. A sua vítima fora Dona Idalina, a professora de Português do primário. Lembro das pilhérias dos meus colegas de turma: “Idalícia é filha da tia Idalina”. Não gostava dela, e muito menos de ser relacionada com ela. Era baixinha, truncada, cabelo curto, enrolado e castanho. Roupas de conjunto, combinando saia e blazer, óculos com grossas lentes, usava um rosário no peito, e fumava feito uma condenada. Gostava de sentir o cheiro de cigarro impregnado em suas vestimentas - era a única coisa que gostava nela.
Em uma segunda-feira, suas aulas eram segundas e quartas-feiras, quando ela tentava nos ensinar a relação entre sujeito e predicado, tinha tanta dificuldade de ensinar, mal sabia para ela, no momento no qual escrevi uma frase no quadro para exemplificar a sua explicação, escrevendo com um pedaço de giz, sua roupa já toda suja de pó branco, ela tomba, subitamente, para o lado, próximo a sua mesa. Ataque cardíaco fulminante, não teve tempo nem de dizer nada. Tenho a lembrança nítida do seu corpo jazendo diante dos alunos, nos dando consciência, em nossas mentes infantis, da brevidade da vida. Foi o meu primeiro contato com a morte - tinha dez anos.
Depois, a morte tocou minha família. Um câncer de pulmão estava corroendo seus últimos dias de vida do meu pai. Presenciei todo o seu sofrimento, seu corpo ficar minguado à pele e osso, a tosse que o fazia perder o fôlego, e às vezes escarrado com sangue. Eu fiz questão de cuidar dele, de sentir toda a sua angústia, de compartilhar, como se isso fosse uma forma de lhe aliviar. O que mais me atormentava era quando ele pedia para eu fazer seu tabacão, eu não fazia e não parava de fumar. Ele expiou me pedindo obrigado pelos cigarros e perdão pelos bofetões. A morte tinha chegado definitivamente a minha vida.
Não demorou muito, foi a vez da minha mãe. Ela não agüentou viver sem o Seu Antenor. Chorava dia e noite. Não dormia. Não comia. Não vivia mais. Sua agonia não durou muito, depois de um mês, fazíamos seu velório. Numa manhã de domingo, quando fui chamá-la, ela sempre me pedia para acordá-la, para não perder a missa dominical, ela estava toda embrulhada, com um semblante sereno e cheiro moribundo. Toquei seu pescoço e testa, estavam gélidos.
Orfã, morar só foi meu destino imediato. Sozinha como me mantive até hoje. Nesses tempos idos, ainda morava no sítio. Depois das mortes, eu e meus inúmeros irmãos vendemos esse patrimônio, e cada um seguiu sua vida. Fui para a capital, começar a vida. Trabalhando e estudando, consegui me formar a duras penas. Muitas penas. Sou jornalista. Minha primeira conquista foi comprar um apartamento, aliás, meu único bem. Os anos foram se passando. A vida foi passando. A vida foi seguindo. Sempre só.
Tive apenas dois amores na vida: Tulipa e Paco. Ela me ensinou a amar as mulheres. Ele me fez ver que todos os homens não são iguais. Alguns prestam, mesmo que por um delimitado período de tempo – eles têm data de validade. No fim, os meus amores, se conheceram, se casaram, e foram uma família alegre e feliz. Há uns vinte anos atrás os dois morreram em um acidente de carro. Chorei três dias sem parar. Os dois únicos amores que tive, se foram, juntos.
A notícia da morte dos meus irmãos/irmãs veio pelo correio. As que mais me tocaram, foram as dos meus irmãos. Zezinho foi assassinado por dívidas de jogo. Joana matou Gerson – a sua paciência estancou. Agenor foi morto por um funcionário do seu gigantesco supermercado – todos os capitalistas deveriam ter esse fim. Meus irmãos foram vítimas de homicídio, com algum merecimento. Seguiu a morte de suas esposas. A morte de pessoas conhecidas. Todos a minha volta foram morrendo. No começo, via com indiferença. Porém, com o tempo, sentia como se fosse comigo. Tinha consciência da morte eminente – a morte que ainda não veio. Depois de tantas décadas, aguardo, ansiosamente, na resignação própria dos anos, na acumulação de experiências, expectativas e frustrações, o não-estar em vida, o parar para o tempo, o adentrar ao Nada. Sou uma Penélope triste esperando a conclusão da minha história que já marca um século.
(Felipov)
1 comentários:
Depressivamente altiva. =)
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