terça-feira, 4 de outubro de 2011

A carpideira



“As lágrimas servem apenas
 para dizer o que
as palavras tentam dissimular”

(Uma carpideira chamada Rosalina)



O pranto é a manifestação insofismável do sofrimento humano. As lágrimas produzem um laço tácito e pungente entre o que chora e o outro que se consterna com o choro alheio. Origina laços de solidariedade instantâneos com o dissabor do semelhante. Os olhos expressam os sentimentos mais recônditos da alma humana, o seu espelho mais límpido, ou se quiserem, se for ponto pacífico de acordo com a crença de cada um, a dimensão da psique humana em que conservamos o que não quer ser desvelado.
Aquele lugar que ainda não foi detectado pela moderna medicina entre a anatomia, morfologia, órgãos, tecidos e sistemas no qual ficam os indomáveis sentimentos. Fita os olhos de uma pessoa e terás o conhecimento de quem ela é – sempre tive esse juízo cá comigo. Os meus olhos jamais me permitiram ludibriar ninguém, dissimulei várias vezes com franco insucesso, eles sempre me denunciavam: a alegria, a tristeza, a preocupação, a raiva – enfim, as indizíveis razões e emoções do meu sôfrego coração.
Chamo-me Rosalina. Cinqüenta anos de uma vida que não era para ser tão longeva, eu nasci de uma gravidez indesejada que fora mantida por rígidos critérios morais para não infringir as leis divinas. A teimosia de viver me fez habitar a superfície seca da terra que piso, nas névoas de poeira e fumaça que infestam meus pulmões, no calor do sol que sinto rachar a pele e nas injustiças e desigualdades sociais sobreviver um dia de cada vez.
Sou a quinta filha do conjunto de dez filhos – cinco homens e cinco mulheres. A mais velha entre as raparigas. A menos querida pela mãe. A mais amada pelo pai. A mais preterida pela atenção, carinho e amor. A mais autônoma, forte e independente. A mais frágil e fraca. A que não se subordinava a ordens dos pais. A mais invejada pelos os irmãos e irmãs. Aquela que saiu de casa por uma questão básica de sobrevivência.
Aprendi a ler e escrever sozinha. Faxineira, doméstica, diaristas foram as minhas primeiras profissões. A prostituição foi inevitável – mas não me envergonho, o corpo é meu, faço dele o que quero. A dignidade e amor próprio não me fizeram seguir nessa vida. Cozinheira, recepcionista, secretaria foram outras profissões. Tive várias. Estudei pouco, apesar da esperteza adquirida pelo instinto de sobrevivência. A vida me ensinou, a vida foi a minha escola.
Tive sete maridos – homens com quem vivi sem ser no papel passado. Pra mim, viveu sob o mesmo teto é casamento. Eu matei todos. Todos me traíram. Traição não se conversa, não se perdoa, não se arrepende: se mata – pura e simplesmente. Somente a morte expia o pecado. Eu matava e agradecia a Deus. Uma das poucas coisas que a minha mãe me ensinou foi o temor a Deus. Sou devota de Nossa Senhora de Nazaré.
Tornei-me carpideira depois que meu pai morreu. Foi a única pessoa que amei na vida – e tenho certeza que foi única que me amou. A única pessoa da família que chorou no enterro fui eu, decerto que foi um dos dias mais tristes em minha existência. Depois da morte dele, aprendi a chorar. Sempre considerei o choro a manifestação mais desprezível de fraqueza. Nunca tive o direito de ser fraca. Sempre engoli o choro. Já apanhei muito da vida para me dar ao luxo de chorar. O sofrimento tornou-se algo permanente na minha vida.
Sofrer é a minha profissão. O pranto é o meu trabalho. Sou recompensada para expressar a dor de outrem. A Morte é meu sustento. Chora-a todos os dias, na verdade, em todas as oportunidades em que sou remunerada para tal. Enquanto os herdeiros se digladiam pela herança do finado, eu expresso os seus pretensos sentimentos de penar e lamento. Eu choro as suas dores por hora – cobro por hora chorada. Contudo, só consigo lagrimejar porque pranteio as minhas próprias dores, as minhas lágrimas materializam os sofrimentos de uma vida, as angústias, os dissabores, as amarguras, as frustrações que me fazem ganhar a vida como carpideira.
(Felipov)

1 comentários:

Anônimo disse...

"Tive sete maridos – homens com quem vivi sem ser no papel passado. Pra mim, viveu sob o mesmo teto é casamento. Eu matei todos. Todos me traíram. Traição não se conversa, não se perdoa, não se arrepende: se mata – pura e simplesmente. Somente a morte expia o pecado. Eu matava e agradecia a Deus. Uma das poucas coisas que a minha mãe me ensinou foi o temor a Deus. Sou devota de Nossa Senhora de Nazaré."

Esse parágrafo sintetizou todo o desenho da tua personagem. E ficou simplesmente perfeito.
Bobinho já tá voando. ^^

Postar um comentário