terça-feira, 4 de outubro de 2011

O coronel




Manda quem pode, obedece quem tem juízo”
(Ditado popular)




Uma premissa é necessária para travar boas relações comigo: eu mando. Mandar não é algo simples e fácil. Além do esforço de induzir a vassalagem sem a violência aberta inerente ao poder de mando, é preciso persuadir, fazer com que a minha vontade seja natural e legítima, e obedecê-la algo correto e desejável. Qualquer ato ou atitude que escape a esses parâmetros é digno de retaliação e punição – e, portanto, expiação, castigo.

Nada disso é claro e evidente. Tudo é muito implícito e velado. Semelhante a forma como fui educado, meu pai apenas me observava, seu olhar dizia muito, era um discurso de horas do qual sabia o objetivo e o comportamento que requeria de mim, se era para ficar quieto, calado, ou saísse da presença da visita. Utilizo a mesma lógica com a minha forma de fazer política. Meu pai desempenhava sua autoridade com o olhar e com uma forma tácita de exercer sua vontade sobre seus dependentes. Faço de modo similar com o meu exercício de mando, por meio do consentimento.

Crio os meios para que o favor seja o elemento de intermediação com os meus subordinados. Eles consentem a minha vontade porque acreditam que sempre estão me devendo um favor. Movo as minhas ações, e o seu consentimento tácito, por meio do que chamo de ideologia da gratidão. Todos os benefícios que arquiteto são com a inequívoca intenção que sejam compensados, mesmo que tenha a consciência que é apenas o meu dever como agente público legitimamente eleito pelo voto popular, da bendita democracia que nós inventamos, que sou um representante dos interesses daqueles que me escolheram para exercer o poder em seu nome, com a inapelável obrigação de zelar pelo sagrado bem comum.

Tenho conhecimento disto tudo. Por isso, sei utilizar tão bem a Real Politik em favor dos meus interesses políticos de modo a me beneficiar no privado. O público em favor do privado. A coisa pública a meu favor – Res publica do avesso. A ideologia da gratidão é o meu modus operandi. Nada mais fácil do que dominar por meio da gratidão. Ninguém gosta de ser tratado ou chamado de ingrato. A gratidão é um dos atributos morais mais cultivados entre a gente humilde. Com base neste traço cultural da nossa milenar mentalidade judaico-cristã-medieval é que respaldo a minha autoridade política. Sempre, em todo o tempo, de maneira constante, progressiva e sucessivamente, as pessoas necessitam me saldar os favores. Eu cobro-os, sempre. É uma maneira de reforçar a ideologia. Um resultado natural disso é que tenho muitos lacaios, puxa sacos e congêneres. Eles são importantes: mantém-me informado de qualquer desvio de conduta.

A necessidade de ser adulado, paparicado e bajulado, é uma forma de reforçar a minha auto-estima de pessoa miserável que veio das raias da pobreza no qual habitou as mais imundas palafitas infestadas de carapanãs, ratos, moscas e insetos peçonhentos, tostado em todos os verões por aquelas telhas brasilits que pareciam me grelhar no calor insano do verão, sem contar com as goteiras e o limo se que formava nas tábuas podres das chuvas torrenciais do inverno no barraco no qual teimava em sobreviver com meu pai, mãe e cinco irmãos na periferia de uma das centenas de cidades esquecidas no sertão amazônico.

Sem contar com as indizíveis humilhações por que passei nos meus primeiros trabalhos, as milhares de vezes em que fui enganado, ludibriado, explorado, acusado de ladrão, em que trabalhei e não fui pago, que trabalhei e ganhei um prato de comida em troca, que trabalhei e foi recompensado com uma miséria, que trabalhei para sobreviver porque fui jurado de morte. Humilhações das mais indignantes. Entretanto, sobrevivi. Porque sou um forte. Nunca fugiu de mim a idéia-fixa de que um dia eu mandaria.

Hoje, eu mando. E mando com orgulho. Não tenho vergonha de dizer que usei várias pessoas na minha escalada rumo ao poder. Enganei, ludibriei, roubei, usei de má-fé, desfalquei, desfraldei, manipulei, dissimulei, fingi, simulei, infringi, furtei, afanei, iludi, tapeei. A honestidade é para os fracos – foi a primeira lição que aprendi. Os que dominam usam da honestidade para criar um manto funesto de dignidade. Apenas os dominados acreditam.

A minha política é de desviar o leite das crianças, usurpar a saúde dos idosos, arrancar a esperança dos jovens, fazer das mulheres donas-de-casa, e dos homens eternos assalariados mínimos. Fazendo com que todos agradeçam a Deus, porque essa é a sua vontade e que poderia ser pior. Todos gratos a Ele e a mim. A Ele devem a fé, a mim a gratidão e obediência. Ele dá a vida, eu dou o sustento. Ele é soberano, e eu mando. O primeiro mandamento municipal com promessa: obedecei ao coronel sobre todas as coisas – diz o Senhor.

(Felipov)

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