“Quando eu ti vi eu gostei
Olhei nos teus olhos
Me apaixonei
E a cantada que eu te dei não sei
Estava tremendo
Confesso até que fui mais ou menos
Quando fui te beijar xonei
Quando te abracei te amei
Aquela noite falamos de estrelas
Prometi ligar liguei
E você me perguntou qual tamanho do nosso amor
Te amo um tantão assim ó
Te amo um tantão assim ó
Olhei nos teus olhos
Me apaixonei
E a cantada que eu te dei não sei
Estava tremendo
Confesso até que fui mais ou menos
Quando fui te beijar xonei
Quando te abracei te amei
Aquela noite falamos de estrelas
Prometi ligar liguei
E você me perguntou qual tamanho do nosso amor
Te amo um tantão assim ó
Te amo um tantão assim ó
Te amo um tantão assim ó
Te amo um tantão assim ó”
Te amo um tantão assim ó”
Essas ondas mecânicas produzidas por dispositivos eletrônicos que expressam experiências populares invadiam a parte de traz da delegacia. Delegacia do Jurunas. Os ponteiros do relógio já lento, quase sem pilhas, marcavam três da madrugada. Alves entra na sala de interrogatório. Uma lâmpada incandescente, duas cadeiras e uma mesa, no centro da sala – infiltrações, pintura descascando, odor de úmido e mofo. Sala da verdade.
“Pereira, por gentileza, traga o acusado. Quero interrogá-lo”
“Tá certo, dôtor, vou trazer esse filho-da-puta, o senhor trata com muita educação esses porras, eles são traiçoeiros, não podem ser tratados como gente, eles são animais, agem como animais, precisam ser tratados como animais. Ele vai ter que cantar a pedra de quem matou o nosso camarada de farda, o cabo Almir. Eu só quero saber quem foi. Só saber”
Almir era um dos investigadores, compadre de Pereira e Pantoja, homem de confiança do delegado Alves. Às dez horas da noite, estava fazendo rondas de rotina pelas ruas do bairro. Ele tinha dois problemas: ser mulherengo e beber demais. E uma qualidade: gostar de ser policial. Motivos de sua morte. Parado, perto do bar do ameba, bebia uma cerveja em serviço, como de costume, junto com o soldado Pantoja. Dois homens na moto, o passageiro saca uma punheteira, dispara dois tiros no peito do Almir, no momento em que ele levava o copo a boca. Ele não gosta de usar colete. Suas costelas ficaram dilaceradas, osso, carne e sangue espalhados na frente do bar. Pantoja ficou imóvel, atônito, sujo de sangue. Execução sumária.
“Tá aqui, o Cúrio, dôtor”
“Sente-se aí, me diga seu nome”
“Alcindo”
“Alcindo, do quê?”
“Alcindo Silva”
“Então, informações privilegiadas me confirmam que sabes quem foi que matou o cabo Almir. Quem foi?”
“Não sei quem foi”
“Vamos me diga, quem foi?”
“Não sei mesmo, dôtor”
“Ele sabe sim, esse filho-da-puta” – Pantoja mete um soco seguro na cara de Cúrio. Ele vomita uma pasta de sangue grosso, e cospe dois dentes. Alves não concordar com esse tipo de violência descabida, mas apenas olha, quer ver as reações. Sobretudo, de Cúrio.
“Bora, seu bastardo, filho-da-puta, fala quem foi que matou o Almir. Todo mundo sabe que tinhas uma richa com ele, mal-entendido, sei lá. Fala logo, foste tu ou mandaste matar, covarde” – disse Pereira.
“Caralho, eu sei que querias nos intimidar. Dar dois tiros de punheteira a queima roupa não é maldade, não é vingança, não é acerto de contas. É afronta. É desafio. É putaria-da-grossa. É colocar a prova a honra da corporação. Pode ter certeza, filho-da-puta, filho-duma-varejeira, que isso vai ter volta, não vai ficar assim. O Almir vai ser vingado, a ferro e sangue” – gritou insandecidamente Pantoja.
Cúrio ouvia a tudo de cabeça baixa, sangue escorrendo da boca, algemado na cadeira, com os braços para traz.
“Meus caros, vamos aqui fora, por favor” – disse Alves.
“Não podemos deixar esse porra respirar” – disse Pantoja.
“É verdade, dôtor” – concordou Pereira.
“Estou pedindo, por favor”
“Tá certo”
“O senhor que manda”
Saíram da sala. O último a sair foi Pantoja, olhou para Cúrio que levantou a cabeça para ver a saída deles. Pantoja apontou com um olhar de ódio, passando o indicador no pescoço, fazendo sinal de morte.
“Rapazes, vou beber água e ir ao banheiro. Quero vocês aqui fora, sem violência”
Alves foi primeiro ao banheiro, saiu da presença de Pantoja e Pereira.
“Porra, Pereira, eu gosto do dôtor, ele é gente boa, nos trata com dignidade e respeito, mas às vezes fico puto com essa frouxidão dele. Não dá pra tratar vagabundo com educação. Porra, nem armado ele anda. Ele tá brincando de polícia”
“Calma, Pantoja, é assim que ele trabalha. Na calma, com conversa, sem violência. Nas delegacias que ele passou, já ouvi comentários que a bandidagem respeitava ele”.
“Não acredito, isso é história pra boi dormi, da carronchinha. Conversa não serve nem para os filhos, que é sangue do teu sangue, imagina para esses bastardos. Porrada é pouco para vagabundo”
“Concordo contigo. Eu sei disso. Mas ele trabalha assim, e diz que dá certo. Uma dia desses, estávamos de papo pro ar, sem nada pra fazer, ele veio conversar comigo. Disse que usa da Psicologia, do inconsciente, das fobias, de um tal de Freud, e me perguntava se não tinha visto isso na Escola de Formação e tals. Achei estranho o papo dele, mas ouvi, não entendi muita coisa, na verdade quase nada, mas ouvi. Ele fala bem, dá gosto de ouvi. Mas isso é só falatório, não funciona nas ruas”
“HEHEHE, ainda dá ouvido pra essas baboseiras. Dos tempos da Escola, há uns vinte anos atrás, o que me lembro de Psicologia é de uma apostila que quando li, apenas uma vez, dizia que era o estudo da mente, alguma coisa assim. Besteira. É tiro, bala, morte que resolve o problema da vagabundagem, desses bandidos filhos-da-puta”
“HEHEHEHEHE, ficas putinho mesmo né”
“Não gosto dessas fuleragem de intelectual metido a besta. Fala um monte de coisa difícil, anda só de carro, recebe um salário porrudo, pra ficar falando do que ele não vive, só do que ele lê nos livros. Um bando de filhos-da-puta das letras”
“HEHEHEHE, gosto de te ver puto, ficas igual a esses intelectuais de merda”
“Vá se fuder, HEHEHEHE”
“Depois dessa onda toda, a gente vai lá no bar do ameba tomar umas e falar com ele, deve tá aterrorizado”
“Eu que o diga, foi foda. Bora lá mesmo”
“Ahhh, mas uma coisa que o dôtor disse e eu concordo com ele é que depois que sabes qual é o maior medo de um homem, não precisas de uma arma ou bala, é apenas preciso que faças ele acreditar no seu medo”
“HUUUUUMMMM... o dôtor tá te fazendo virar um viadinho com esses papos. Medo é o caralho! Medo de cú é rola! HEHEHEHE”
“És foda, não dá pra falar sério contigo”
“Morreu, morreu, o dôtor tá vindo aí”
“Égua dôtor, o senhor demorou”
“Foi, me deu uma vontade de cagar. Cagar no meio de um interrogatório as quatro da matina é foda”
“HEHEHEHE, é verdade dôtor”
“Tive uma idéia, perdi a paciência, esse porra vai falar. Pantoja, arruma a viatura. Pereira, pega esse filho-da-puta lá na sala. Vou falar com o Almeida segurar as pontas aqui na delegacia”
Dez minutos depois, estavam na viatura.
“Pra onde dôtor?”
“Lá pra vala da Quintino com a motorizada, lá onde o pessoal desova os corpos” – falando alto e piscando o olho para o Pantoja.
“Ahhhh, claro. Lá não tem problema, a população apóia que desovem presuntos lá”
“Eu sei, bora rápido, antes de amanhecer, quero ver esse Cúrio cantar”
“HEHEHE, bora ver”
Dez minutos depois, chegaram na beira da vala. Mato e lixo. Cheiro podre de lixo. A vala está cheia, com correnteza forte.
“Sou é da galera da golada
Traz o balde de gelada
Que a festa vai rolar
Traz o balde de gelada
Que a festa vai rolar
Treme, treme, treme
E agita pra valer
A galera da golada”
E agita pra valer
A galera da golada”
Tocava num boteco em frente, meio baixo, já fim de festa. Três homens de meia-idade conversavam animadamente sobre futebol. Quando viram a polícia chegar, parecia que já sabiam o que ia acontecer, continuaram a conversar, em voz mais baixa, e fingindo que nada acontecia ali. Lei do silêncio.
“Traz esse porra aqui, Pantoja”
“Selado, dôtor”
“Bora fazer esse Cúrio cantar, agora mesmo”
“Pereira, trouxestes o saco?”
“Trouxe”
“Coloca esse filho-da-puta de joelho, e deixa ele ficar um pouco sem ar, Cúrio precisar ficar um pouco sem ar para poder cantar”
“Nãoooo, dôtor, eu não sei de nadaaaa. Eu juro pela minha mãe mortinhaaa. Por Deusss, Jesusss, Virgem de Nazaréééé”
Sacola plástica da Yamada na cabeça. Ajoelhado, algemado com as mãos nas costas. Quase desfalecendo, Pereira tira a sacola.
“Ahhhhrummmmm... eu não sei de nadaaaa, dôtorrrr. Não seiii” – grita Cúrio desesperadamente.
O próprio Alves acerta um direto de esquerda em cima do nariz com a clara intenção de quebrá-lo.
“Cala boca, filho-da-puta, queres acordar a vizinhança. Eles já estão todos acordados, torcendo, só esperando a tua execução. Menos um vagabundo no mundo. Vou te dar mais uma chance, me diz quem foi, ou eu vou dar um tiro no meio da tua costa, e te jogar algemado nessa vala, vais morrer afogado, comendo merda”
“Já disse dôtor, eu não sei de nada” – chorando copiosamente, e se mijando na bermuda.
“Puta que pariu, o filho-da-puta tá se michando nas calças”
“HEHEHEHEHE”
“HEHEHEHEHE”
“É um merda mesmo”
“Pantoja, me dá tua arma, parece que ele é atleta olímpico de nado com algemas e um tiro nas costas”
“Não, dôtor, eu suplico, não fui eu”
Alves pega a arma, coloca na parte inferior das costas de Cúrio. Aponta com força, para que ele sinta o cano. Puxa o gatilho. O telefone do Pereira toca, e ele atende.
“Dôtor, larga esse filho-da-puta de merda. Almeida ligou dizendo que chegou um menor confessando ter matado o Almir”
“Largurento de merda”
“Largurento”
“Esse largurento tem costas largas. Levanta esse caralho, e voltemos para a delegacia”
Antes de entrar na viatura e pegar o Cúrio ajoelhado na beira da vala, Pereira e Pantoja chamaram Alves reservadamente e perguntaram:
“O senhor ia matar ele?”
“Apesar da vontade, não. Era apenas para ele confessar. O mijo foi o sinal que esperava. O sinal supremo de medo. Ele tava pronto para confessar. Foi salvo pela largura que tem. Vamos ver o que acontece lá na delegacia. Mas que esse cidadão tem culpa no cartório, a ele tem”
“É verdade, dôtor. Bora logo pra lá, quero ver quem é esse merdinha” – disse Pantoja.
“Bora logo” – concordou Pereira.
Cúrio ajoelhado, nunca agradeceu tanto a Deus, e pensou:
“Égua da largura”.
Suspirou de alívio, e continuou pensando:
“Fui eu quem matei esse filho-da-puta do Almir. Fui saber ontem que ele comia a minha mulher, aquela vagabunda a três anos, eu sabia que aquilo não valia o que o gato enterra. É preciso preservar a honra. Só a morte preserva a honra. Mas quem foi que me livrou? Só pode ter sido ela, ela sabia que eu ia matar ela. Essa filha-da-puta é esperta, e largurenta também”.
(Felipov)
2 comentários:
- Foi engraçado ver que escreveste algo relacionado a um assunto que pensei bastante nessa semana, já que tive que comparecer na delegacia.
Genérico.
Nicoly Uchôa.
Putz, morri de achar graça...kkkk
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