“A vida escrita em palavras, linhas,
textos era muito mais real
na tinta da velha máquina de escrever”
(Graziela, a datilógrafa)
As poupas dos meus dedos foram calejadas por uma vida marcada pelo dedilhar rígidas teclas nas quais registrei oficialmente milhares de vidas. Articulações dos dedos consumidas por tantas oscilações periódicas de acionar teclas, arrumar e tirar papel. Teclar, arrumar e tirar papel. Teclar, arrumar e tirar papel. Teclar, arrumar e tirar papel. Um ciclo reproduzido mecanicamente ad infinitum. Usar o indicador para rebobinar a fita de tinta. O dedão para apertar a tecla de espaço. Os demais dedos acionavam as teclas em uma orquestrada digitação ferindo o papel com os filetes de metal que grafaram na fita embebida de tinta preta as vidas em preto e branco. Laudas, infinitas laudas de vidas expressam em vincados papéis em preto e branco.
Aprendi a datilografar com quatorze anos, a então menina Graziela, quando ganhei a minha primeira máquina de escrever: uma Olivetti portátil, que vinha junto com uma malinha verdade, de segunda mão, funcionava perfeitamente, levei-a até o fim da vida, ainda funcionando bem. As primeiras laudas de escrevi foram as de cartinhas de amor não correspondido. Nunca correspondidos em vida. Trabalhei por trinta anos como datilógrafa em um cartório de uma cidade interiorana na qual nasci. Tão afastada que ninguém sabia onde era, ninguém saberá onde é, ninguém se interessava onde era, e nem mesmo eu lembro onde ficava.
No cartório, minha responsabilidade se limitava a datilografar os documentos que eram escritos a mão e arquivá-los. Datilografar e arquivar, nessa ordem. Portanto, tinha uma dupla função: amanuense e arquivista. Sempre tive a consciência que estava documentando a vida da cidade naquelas exaustivas horas em que suportava o calor escaldante da minha pequena sala nos fundos do cartório, ao lado da sala do almoxarifado, dos serviços gerais e dos banheiros, na qual havia apenas uma cadeira, uma mesa, e várias estantes abarrotadas de carcomidos papéis velhos.
O cheiro de mofo e papel em estado de deteriorização era um veneno que inalava todos os dias ferindo mortalmente as minhas narinas acometidas de rinite e sinusite alérgica. Apenas ouvia-se em minha saleta o martelar mórbido dos filetes de metal, o martelar rápido e violento, intercalados por breves pausas em que a máquina respirava no movimentar do rolete a posição inicial, para novamente o martelar continuar acelerado, incessante e violento, a respiração subseqüente, que por sua vez era seguido pelo próximo martelar frenético e violento. Esse movimentar fora reproduzido beirando ao absurdo existencial: minha existência vivida na ponta das falanges gastas.
Formou-se em mim a impressão que escrevia a vida das pessoas da cidade. Trabalhava dois expedientes, expiando a minha parca vida neste ofício. Um salário que me fez sobreviver a trinta anos de trabalho, nada mais, nada menos, sem excedente, sem aposentadoria, sem herança. Não havia razão de ser para poupança, reservas ou previdências, nunca tive família derivada de minhas entranhas, nunca quis ser responsável pela reprodução da miséria humana.
Ciente estava que meus dedos eram registradores anônimos, perpetuadores das vidas ali escritas enquanto durasse a qualidade das fibras de celulose que constituem os papéis, lhe conferindo a rigidez necessária para manter o seu formato planar, que dentre os suportes de escrita humana é o mais antigo e largamente utilizado desde que o homem atingiu a capacidade de expressar a linguagem por meio de símbolos, ícones, letras, rabiscos. O mais antigo e empregado, e também, o mais frágil e efêmero, de modo similar as vidas inscritas em suas superfícies alvas pela tinta preta.
A tinta que armazenava o casamento apressado de Genival com Marta que engravidara aos quinze anos do seu primeiro namorado de dezesseis, depois de trinta anos de casado, o resultado de tão precoce união: quinze filhos, uma casa de pau-a-pique, ele na roça, ela em casa, e a vida seguindo na vagareza da vida suspensa no tempo.
A certidão de nascimento do décimo rebento do casal Ubaldo e Gertrudes chamado Benedito, que anos passados, sem terminar os estudos, semi-alfabetizado, mas eloqüente e persuasivo orador, muito prático e pragmático, virou político profissional.
Mais um título de propriedade do prefeito da cidade, dono de metade das terras agricultáveis da região, no qual colocava centenas de trabalhadores rurais para cultivar suas terras que depois da colheita pagava uma miséria por meios dos seus pistoleiros.
O registro do estatuto da associação dos pescadores da cidade, que, a partir da organização, montaram posteriormente, uma cooperativa, de modo a potencializar a sua produção e beneficiamento do pescado, abastecendo os mercados municipais e da capital com preços justos, os trabalhadores perceberam que o esforço coletivo e organizado é mais eficaz que a ação individual isolada, com essa simples atitude muitos fugiram da miséria.
Dona Rosa, Seu Alcir, entre inúmeros cidadãos da cidade conseguiram realizar o tão almejado sonho de ter seu próprio teto garantindo sua propriedade nos registros do cartório.
Valentino com muito esforço, emprestando dinheiro de amigos e parentes, conseguiu regularizar seu açougue, que hoje é um dos maiores supermercados da cidade, empregando centenas de pessoas com salários baixíssimos e com o mínimo de benefício social, enfim, uma vez capitalista sempre capitalista.
Dona Helena, a doceira de mão cheia da cidade, juntou-se com outras donas de casa que trabalhavam com alimentação, fundaram a associação das doceiras da cidade, e hoje conseguiram montar uma empresa que vende sua produção e ainda oferta cursos de culinária para os jovens que se interessasse pela profissão, ela quer apenas ver as pessoas com perspectivas na vida.
Sem contar àqueles desvalidos que na desmedido infortúnio de suas existências não tiveram a oportunidade de terem suas vidas grafadas pelos filetes de metal que machucavam a fita de tinta preta da máquina de escrever do tempo.
Estes são apenas alguns exemplos das vidas que registrei. Contudo, meu ofício tornou-se anacrônico, ele foi solapado com o advento do mundo informático. A máquina de escrever enferrujou, obsoleta, inútil no almoxarifado, minha vida, sem mais sentido, ficou restrita ao século passado, o progresso com o seu ímpeto de inovação tornou a datilógrafa uma peça datada no museu da vida que morreu imperceptivelmente no mundo virtual. As laudas que ora escrevo foram às derradeiras que a datilógrafa escreveu em vida.
(Felipov)
2 comentários:
Cara, me emocionei agora, pois lembro que até meus 10 anos de idade, mais ou menos, tinha uma máquina de datilografar portátil que vinha junto com uma malinha. Adorava ela! :)
Belo texto! Bela reflexão!
Maravilhoso exercício de descrição, bobinho. Parabéns.
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