terça-feira, 6 de março de 2012

Galinhas e galos, galináceos (*)



 
 


 
Meu avô disse pra mim que tudo que vive morre. Ele disse isso quando tava torcendo o pescoço duma galinha lá no quintal. Eu não gostei de ver a galinha morrendo daquele jeito, tava com os olhos esbugalhados e cacarejava sem parar, então virei a cara, mas o vovô disse pra eu desvirar, pra poder ver ele fazendo o que tava fazendo. Eu disse que não sabia que ela tinha que morrer e ele disse, mas você acha que vem de onde aquele prato que a gente come meio dia? Eu não sabia, mas agora sei.

Mas eu não tava feliz então fui falar com a minha vó, eu disse, vovó, por que tudo que vive morre? Ela disse, porque é assim a vontade de deus, meu filho. Então eu falei, mas, vó, se a galinha tem que morrer, por que a senhora dá milho pra elas todo dia? Ela achou graça e disse, meu filho, se eu não der o milho as galinhas vão ficar magrinhas, magrinhas e a gente só vai comer osso. Quer dizer que a gente cria as galinhas pra comer?, eu perguntei e ela disse, sim, meu filho, e eu fiquei cada vez mais curioso e disse, então, vó, por que vocês me criam? Eu vou morrer igual a galinha?

Minha vó tava feliz, mas quando eu perguntei ela fechou a cara e ficou com cara de quem tava pensando em alguma coisa e depois disse, meu filho, a gente não cria os filhos como cria as galinhas, as galinhas não tem nome, não tem família e não tem futuro. E disse ainda, deus fez as galinhas pra que a gente pudesse comer galinha, porque já tinha feito os peixes, os bois, as frutas e os legumes, então ele achou que tinha que fazer outra coisa, senão os homens iam ficar chateados de ter tão pouco o que comer. Mas a vovó era esperta, não tinha respondido. Eu sei o que é uma resposta e ela não me respondeu, resposta é quando a pessoa diz o que a outra perguntou, então pensei que a vovó não tivesse ouvido porque já era senhora e perguntei de novo, mas, vó, e eu? Vou morrer?

A cara da vovó ficou muito fechada e ela ficou com a boca aberta e eu pensei que ela ia dizer alguma coisa, mas não saía nada. Ficava aberta assim, que nem quando a gente brinca de estátua. Então disse, meu filho, eu sou velha, não sei responder essas coisas, pergunta pro seu avô. Então fui lá fora no quintal de novo e meu avô tava com a faca em cima da galinha e tinha muito sangue e ela já não cacarejava. Eu disse, vô, a vovó mandou o senhor me dizer se eu vou morrer. Meu avô largou a faca e ficou me olhando, depois limpou as mãos num pano e me olhou, passando a mão na barba branca. Depois disse pra mim, Ricardo, tudo que é vivo morre, você vai morrer, mas ainda vai demorar um monte de tempo. Aí eu disse, mais que a galinha, vô? Ele riu, sim, meu filho, a galinha não vive muito, os galos acabam vivendo mais. Aí eu disse, mas vô, por que os galos vivem mais? Aí ele disse, é porque ninguém quer comer a carne do galo, pouca gente faz, porque é uma carne dura. Então eu perguntei, mas, vô, é tão dura assim que a sua faca não corta? Ele disse, não, a minha faca é uma boa faca, bem amolada. Então eu disse, vô, quando é que eu vou ter uma faca?, e ele me disse que quando eu fosse homem eu teria uma faca e poderia fazer o que eu quisesse e ter o que eu quisesse e eu perguntei, até uma estrela, vô?, e ele disse, até uma estrela, Ricardo, e eu fiquei feliz porque não ia demorar muito.

Mas tinha uma coisa martelando a minha cabeça, que nem quando um garfo arranha um prato, aquele barulho que faz dar dor na cabeça. Quando a gente tava almoçando eu olhei a galinha e nem parecia mais ela. Já tava depenada e sem cabeça e sem bico e vermelha e gostosa. A vovó botou a coxa no meu prato porque ela sabe que eu gosto mais da coxa, mas eu queria falar o que tava na minha cabeça e disse, vó, a senhora e o vovô me criam, né? Ela disse, sim, meu filho. Então eu disse, e cadê meu pai e minha mãe? Todo mundo tinha menos eu. Até o moleque pretinho filho do Tomás, empregado do vovô, tinha pai e eu não tinha, tinha só vô e vó. O meu avô afastou a cadeira, fazendo muito barulho, e se levantou e a vovó disse, meu filho, seu pai tá viajando, eu disse, mas pra onde, vó?, ela disse, pra longe, meu filho. Meu avô tava com cara de enfezado e disse, foi pra onde nunca deveria ter saído. A minha vó então olhou pra ele e disse, Manoel, larga disso, olha o menino, e voltou a olhar pra mim e sorriu e me abraçou e disse que o meu pai não ia demorar, mas não disse nada da minha mãe.

Um tempo depois eu tava no quintal botando sal nas lesmas. Elas iam andando pelas folhas podres e eu corria atrás delas e quando achava uma eu botava o saleiro em cima dela e ficava esperando ela derreter. Depois me cansei e fui pra casa esperar a chuva. Quando chove é muito bom, porque eu posso pegar as formigas no quintal e botar num grande folha e fingir que é um barco e botar na vala e seguir até o bueiro. Nesse dia eu tava sentado na sala e vi um caderno e comecei a desenhar, mas senti um cheiro de coisa queimada e fui na cozinha. Tinha um monte de fogo no fogão e uma panela pegando fogo e a vovó tava caída no chão, então eu corri e chamei o vovô no quarto, ele tava dormindo, mas acordou depressa. Ele veio e pegou um balde de água e jogou e o fogo virou um monte fumaça e depois foi ver o que a vovó tinha, só que acabou deitando perto dela e chorou muito alto.

Apareceram então os peões do vovô na casa e alguns dele pegaram o caminhão do vovô e foram até a cidade. Meu avô ainda tava no chão, abraçava com força a vovó e falava alto um monte de coisa que eu não sei dizer. Gritava muito alto e chorava. Ele disse pro Tomás me levar pro barraco dele e eu fui e fiquei brincando com filho dele o resto do dia e dormi e só de noite o Tomás me trouxe.



*


Quando cheguei em casa a tia Lorena já tava lá e me abraçou e também tava chorando. Tinha um monte de gente e a casa tava pequenina. A tia Lorena me deu banho e me passou talco e me vestiu com a roupa que eu tinha ido no batizado do filho dela que eu nunca mais tinha visto. Ela chorava e chorava e seus olhos já tavam vermelhos de tanto chorar. Eu disse pra ela, não precisa chorar, tia Lorena, ela riu e me abraçou e o abraço dela era tão cheiroso quanto o da vovó e eu disse, tia Lorena, seu abraço cheira igual o da vovó, e ela chorou mais ainda e me abraçou e não conseguia dizer nada. Toda vez que ia dizer eu via ela lagrimar e chorar e chorar. Abracei a tia Lorena forte e ela me vestiu e me levou pra sala.

Na sala tinha um monte de gente cantando e eu perguntei pra tia Lorena, tia, por que esse povo tá com tanta vela?, tem luz aí, aí ela riu e me disse, Ai Ricardo, eu queria ter seis anos também. Eles tavam cantando e falando baixo e tomando muito café, todo mundo de preto. Então eu vi no centro da sala, bem na mesa a vovó em cima, coberta com um pano cheio de furinhos, então disse, tia, o que a vovó tá fazendo lá? Ela não ouviu e me levou até uma cadeira e me fez sentar lá e foi conversar com umas senhoras com cara vermelha. Eu não consegui ficar lá como ela tinha me mandado então saí de lá e fui até lá fora, porque lá dentro tava muito quente. Acho que eram as velas.

Meu avô tava sentado numa cadeira de balanço, fumando. Quando me viu, me fez um sinal e deu um sorriso. Disse, vem aqui, Ricardo. E eu fui e ele puxou uma cadeira e me fez sentar lá e disse pra mim, você é a cara do seu pai, sabia. Então ele pegou uma garrafa que tava no chão e botou um pouco do que tava dentro num copo e depois bebeu tudo de uma vez, estalando a língua no final. E eu disse, vô, to com sede, e ele disse, mas dessa água você não pode beber. Então eu perguntei, só quando for homem?, e ele disse, sim, eu disse, quando for homem eu posso ter uma faca e beber dessa garrafa?, ele disse, sim, Ricardo, e apontou pro céu que tava estrelado e disse que uma delas ele tinha comprado pra vovó e outra pra mim.


(Igor Farias)


(*)Mais um texto do colaborador deste blog. Obrigado por mais uma brilhante contribuição.

3 comentários:

Felipov disse...

A ingenuidade infantil frente as coisas do mundo, ou no caso, da galinácea condição humana, é profundamente comovente!

Brilhante texto. Curto e brilhante!

Camila Travassos disse...

Igor,
Disse uma vez, volto a dizer agora: a escolha adequada do narrador, quem vai contar e com que olhar contará, faz a maior diferença na hora de escrever. Tu consegues pensar e construir um narrador diferente a cada texto. Por isso te aproximas tanto da verossimilhança. Por isso tuas histórias e seres fictícios são tão reais, palpáveis, e atingem tanto quem lê. A construção narrativa do inocente Ricardo está perfeita, de verdade. E ficou mais ainda porque em nenhum momento foi revelado na voz de Ricardo o que de fato acontecia. Claro que assim deveria ser, pois nem o próprio Ricardo sabia. Lindo demais isso, Igor. Que prazer é ler teus textos.

Só mais uma coisa: tua escrita é muito filha da puta.

night-night, friends. disse...

igor, meu filho, o negócio não é ter pau grande, e sim dizer que tem. mas, no caso da escrita, teu pau é enorme.

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