Se matamos uma pessoa somos assassinos.
Se matamos milhões de homens,
celebram-nos como heróis”
(Charles Chaplin)
I
Só nós dois no quarto. Eu, em pé. Ele, deitado. Aproximei-me da cama. Seu olhar era de resignação e ódio, depois que ouviu aquela prolixa palestra ao pé da cama. O médico e os alunos saíram do quarto. Começou a lagrimar. Seu rosto ficou vermelho. Algum sinal de vida.
Calados. Dez minutos emudecidos. O reconhecimento. O silêncio da distância. O silêncio das lembranças. O silêncio da memória.
“Por favor... um pouco d’água” – ele solicitou com a voz hesitante, embargada pelo pranto calado, que identifiquei dos tempos idos.
Do lado da cama havia uma jarra cheia de água e três taças. Enchi uma delas pela metade. Cheguei perto dele, inclinei-me, apoiei um dos meus braços em sua costa e pescoço, aproximei o copo da boca. Ele bebeu tudo.
“Obrigado”
“Que isso, não precisa agradecer”
Afastei e sentei em uma cadeira do outro lado da cama. O meu rosto ficou a altura dos seus olhos. Conversamos olho no olho, sinceramente, fracamente.
“Agora que te vi... foi automático lembrar a universidade... apesar daquele monte de idiotas funcionais de calculadoras científicas nas mãos... existiam pessoas com as quais se podia conversar, estudar, compartilhar... eras uma dessas...”
“Vi o teu caso na televisão. Fiquei indignado com a exposição. Lembrei-me dos tempos da universidade também. Vim ver como estavas”
“Tenho pensando há dez anos como estou...”
“Dez anos...”
“Casaste? Tens filhos? Família? Trabalhas?”
“Não. Moro só. Estou namorando há dois anos. Nome dela é Isabela. Trabalho a cinco anos naquela construtora que começamos a estagiar”
“Ahh... sim... lembro que era bom trabalhar lá...”
“É... tem problemas como qualquer trabalho...”
“Depois do diagnóstico, Fernanda ficou três meses do meu lado... foi embora... depois de três anos de namoro... Não a culpo, é assim mesmo... talvez eu fizesse o mesmo no lugar dela”
“Eu já ia perguntar por ela”
“Sem problemas”
“Sabe, quando vi a reportagem, a primeira coisa que lembrei foram as conversas de bar, naqueles copos sujos perto da universidade, o bar do Jorge era muito bom... Lembra daquela vez que ficamos bebendo até tarde com aquela galera da História, ouvindo Belchior, e não tinha mais ônibus e fomos dormir em uma sala da universidade... bons tempos...”
Silêncio.
Ele ficou calado, olhos vermelhos, algumas lágrimas - novamente. Não devia ter falado isso. Acho que foi um erro essa visita. Falei demais. Como sempre.
“Estás bem?”
“Muito obrigado por ter vindo... tua visita está sendo muito importante para mim”
“Eu vim pelas lembranças de nossa amizade”
“Por favor, um pouco mais de água...” – interrompeu.
Fiz o mesmo movimento da primeira vez que lhe dei de beber. Senti nisso uma sensação de amizade restabelecida, de solidariedade genuína, de empatia legítima. Senti-me bem por está ali, ajudando um velho amigo.
“Obrigado mais uma vez... desculpe te interromper...”
“Sem problemas. Eu falava da lembrança da nossa amizade”
“Ahh... sim... claro. Nestes últimos anos, tenho vivido da memória. Em função das lembranças. Da vida antes do acidente. Das peraltices da infância, o pique-esconde com os primos, as brincadeiras de roda, de mexer na terra, subir nas árvores, comer manga e goiaba no sítio dos meus avós... o futebol da adolescência com o pessoal do conjunto... as bebedeiras e sacanagens nos tempos da universidade...”
“Sim, sim... sempre é bom recordar os momentos bons...”
“Não preciso nem dizer que quero morrer...”
“Como?”
“É isso mesmo que ouviste”
“Pensei que tinhas aceitado esta condição”
“Jamais”
“Compreendo”
“Não compreendes... nem eu compreendo direito depois de todos esses anos... apenas sei que estou aprisionado nesta cama há dez anos, lúcido, como podes observar... e com um desejo insuperável de morrer” – articulou a fala de maneira devagar e com a voz cambaleante, mais vigorosa e profundamente lúcida.
“Pode parecer uma pergunta óbvia e idiota: mas ainda não conversaste com os teus pais e o médico?”
“Conversei... mas não há diálogo possível com eles”
“Não?”
“Eles são profundamente cristãos... acreditam que me salvei por um milagre, que há algum propósito divino neste meu sofrimento...”
Tosse. Tosse. Tosse.
“Desculpe... um pouco mais de água... não estou acostumado a conversar tanto... hahaha...” – uma risada discreta.
“Claro, já vou pegar... um minuto”
Pela terceira vez fiz o mesmo movimento de lhe dar água. Com a obrigação instintiva de que garantir o conforto e o bem-estar, de restituir-lhe naquela breve conversa os anos de ausência.
Breve silêncio.
“Continuando... eles acreditam que talvez me cure e que o meu caso possa fazer avançar os estudos sobre neurologia e salvar muitas pessoas...”
“Há essa possibilidade. Pelo menos, a televisão está vendendo bem essa idéia”
“Então, eu sei disso... eles pedem para que eu não seja mesquinho e egoísta, que o meu sofrimento pode salvar muitas vidas... mas eles falam isso porque não estão no meu lugar, é muito fácil ser bom e compreensivo quando não se está sofrendo nesta condição na qual estou... eu realmente queria apenas morrer... deixar de existir...”
“É uma situação muito complexa mesmo...”
“A resposta deles é sempre a mesma: isso não pode acontecer em hipótese alguma, porque quem dá a vida é Deus e apenas Ele pode tirar... eu peço todas as noites quando estou só neste quarto que Deus me mate... se Ele é a bondade e a misericórdia, que Ele simplesmente me mate!” – disse com uma voz triste, forte, quase chorosa.
“Meu caro amigo... toda essa situação é muito complicada... e não sei o que posso fazer por ti, além, é claro, de lamentar toda essa situação...” – afirmei com profundo pesar.
“Podes sim”
“O que?”
“Ser a minha mão e acabar com tudo isso” – disse com um leve sorriso no rosto.
“Como assim? Queres que eu te mate?” – fiquei assustado com está idéia.
“Calma. Pense na idéia. Volte daqui a uma semana e me diga a tua posição” – com uma voz eloqüente e serena. Um tanto esperançosa.
“Tá bom. Vou pensar...”
“Até mais”
“Até”
Peguei em sua mão antes de sair. Mole, branca e gelada. Um cadáver – pensei.
II
Foram necessários apenas dez segundos. A cada dez segundos pessoas morrem, vivem, matam, trepam, compram, choram, amam, mentem, enfim, vivem, existem, são, a vida na qual cada um depende tão somente de suas forças, energias, inteligência para mantê-la no seu transcurso natural de nascer, crescer e morrer.
Dez segundos sem oxigênio. Uma vida ceifada. Diagnosticado há dez anos. Estirado no catre, aprisionado naquele metro quadrado de solteiro, confortável, lençóis limpos e marcados pelo seu corpo, que nos dias de calor exala o odor do seu suor nauseabundo de quem já morreu e permanece vivo, e nos dias de frio, as suas carnes mortificadas jazem no antecipado descanso da matéria orgânica que já tarda em transformar.
Obrigado a viver naquele corpo no qual não há vida, é submetido a essa morte antecipada, em vida, em consciência, em lucidez, em razão, na manutenção do seu juízo, que perdura, que prolonga, que perpetua essa triste condição de vegetal humano. Depois que soube do seu acidente, visitei-o em duas oportunidades.
III
Quando cheguei ao quarto, havia um médico falando em tom professoral e técnico e quatro estudantes ouvindo atenciosamente e anotando tudo. Olhei para a cama e vi aquele farrapo humano, pálido, com uma aparência de cadáver, que ainda mantinha o olhar inteligente e altivo, talvez o único aspecto que se manteve daquele engenheiro talentoso e promissor.
“Caros alunos, vocês tem o privilégio de acompanhar este caso raro na medicina mundial. Nunca dantes registrado na literatura médica. O ineditismo reside em que qualquer acidente vascular cerebral, dependendo da sua intensidade, causa danos irreversíveis e primordiais a todas as funções psicológicas superiores, como o pensamento e a linguagem, e de maneira secundária compromete há tantas outras funções motoras dos membros superiores e inferiores. Não obstante, a literatura médica afirma categoricamente isso: todo acidente vascular cerebral causa danos neurológicos de maior ou menor grau. E no caso aqui em questão, que foi um acidente de grande intensidade e complexidade, não houve qualquer dano nas suas funções psicológicas superiores, no caso, o pensamento e a linguagem se mantêm em padrão de normalidade. No entanto, seus membros superiores e inferiores foram totalmente afetados. Perdeu todos os movimentos de pernas e braços. Ficou tecnicamente paraplégico. Ele precisa desses aparelhos que auxiliam na sua ventilação respiratória. Não pode ficar, em hipótese alguma, sem esse auxílio, senão é morte instantânea. Por isso, é fundamental para a manutenção de sua vida que estes aparelhos fiquem ligados” – parou de falar e fez um gesto com a cabeça, permitindo que um dos alunos fizesse alguma pergunta.
“Doutor, quais os estudos estão sendo realizados para investigar as razões explicativas de tal ineditismo?” – perguntou se preocupado em dizer algo inteligente.
“Boa pergunta, meu caro. Então, estou orientando duas teses de doutorado e duas dissertações de mestrado que tem esse caso como objeto de estudo. Uma perscruta acerca dos danos causados na anatomia dos membros superiores pelo acidente; e a outra analisa aspectos fisiológicos dos membros inferiores. Por sua vez, o estudo que trata especificamente da manutenção das funções psicológicas superiores ficou sob a minha responsabilidade, era conditio sine qua non a experiência e o largo conhecimento sobre neurologia para realizar um estudo desta amplitude. Nesse sentido, apenas eu, nacionalmente, e dois estudiosos, um russo e outro alemão, temos a capacidade de fazer esta investigação. Estamos querendo no ano que vem iniciar a publicação dos resultados preliminares destas investigações, de maneira conjunta. A partir destas publicações, pretendemos apresentar um novo paradigma investigativo para os estudos e a diagnose em neurologia. Já ia me esquecendo, as dissertações, por fim, fazem algumas discussões pontuais a respeito da diagnose em neurologia e quais os efeitos que a exposição prolongada a psicotrópicos lícitos e ilícitos podem contribuir para a evolução de um quadro de acidente vascular cerebral” – na impostação de voz intrínseca a esses seres mitológicos que reinam no seus feudos epistemológicos, com a sua peculiar autoridade escolástica, habitam confortavelmente os montes olímpicos universitários.
“Doutor, acredito que falo em nome dos meus colegas, agradecemos muitíssimo a oportunidade de podermos participar por meio do nosso estágio e residência médica no acompanhamento deste caso tão importante para resolução de vários impasses investigativos no campo da neurologia. Muito obrigado pela confiança” – com aquele tom obediente e agradecido pela simples subordinação, característico dos lacaios aspirantes a tubarões.
“Meus caríssimos, eu dei esta oportunidade porque sei que vocês têm capacidade e disciplina para aproveitá-la. E os melhores trabalhos que forem produzidos por vocês, eu já digo de pronto, vão ter um lugar nesta publicação coletiva que estou planejando. Então, dediquem-se ao máximo e coloquem os seus nomes nos Anais da História da Medicina como partícipes do grupo que revolucionou os estudos em neurologia. Não precisam agradecer. Eu odeio agradecimentos. Apenas façam por onde e desfrutem dos seus méritos. Acredito que essa sessão de acompanhamento está encerrada. Peço apenas discrição quanto ao que disse da publicação. Ela está em tramite de sigilo. No mais, estão liberados” – sentencia como uma divindade orgulhosa de si mesmo depois da concessão de uma graça imerecida as suas indefesas criaturas.
Os alunos fizeram um gesto de positivo com a cabeça de maneira uniforme e orquestrada. O doutor cumprimentou-me de modo educado e saiu do quarto, e os alunos um após outro seguiram atrás dele.
Restou apenas eu e ele no quarto.
IV
Conheci-o na universidade, há uma década. Cursávamos Engenharia Civil. Participávamos do mesmo grupo de estudo. Alguns gostos em comum, algumas conversas de bar, listas de exercício vencidas, cálculos e mais cálculos, projetos realizados, aquela amizade compulsório dos bancos universitários.
Vi o seu caso ser curiosamente abordado em uma reportagem na televisão. Havia sofrido um acidente vascular cerebral muito raro, um caso totalmente inédito para a medicina contemporânea. A reportagem na linguagem sensacionalista inerente aos meios televisivos transformou em algo bizarro e extemporâneo aquela tragédia pessoal, apresentando o caso como uma possível solução para os problemas relacionados a graves lesões neurológicas, legitimando totalmente o sofrimento daquela cobaia em favor da humanidade.
Fiquei indignado em ver aquela situação, aquela exposição estúpida da vida humana, aquele embrutecimento da vida na era da cibercultura. Por uma obrigação quase moral, impulsionado pelas boas lembranças, fui ver o caso de perto. Apresentei-me aos seus pais, um casal elegante, ela médica, ele advogado, bem sucedidos, envelhecidos por dez anos de sofrimentos, abnegação e esperança.
V
Uma semana se passou. Fiquei com esta idéia fixa. Vivi a minha vida. Trabalhei. Estudei. Li meus livros. Saí com meus amigos. Bebi. Fiquei bêbado. Fumei. Trepei. Briguei. Discuti. Fiquei só. Paguei contas. Fiz almoço. Comprei uma pizza para janta. Enfrentei trânsito. Fui ao cinema. Namorei. Fui roubado. Fiquei puto. Caguei. Mixei. Peidei. Fui ao dentista. Lavei roupa. Planejei duas viagens. Planejei minha vida. Contudo, a idéia fixa permaneceu. Tomei uma decisão.
Voltei exatamente uma semana depois. O médico estava lá monitorando os aparelhos e fazendo notas. Entrei no quarto. Ele cumprimentou-me educamente, formal e sóbrio. Logo depois saiu.
“Qual a tua decisão?”
“Vou ser tua mão”
“Deus ouviu minhas preces. Obrigado”
Tomada. Desliga. Liga. Dez segundos. Fim.
“Ai, meu Deus, não podias levar meu filho!!! Não podias!!! O que vai ser de mim agora, meu Deus!!??” – uivos, gritos, pranto de desespero da mãe.
“Rápido!! É urgente!! Mandem para cá uma ambulância! É caso de vida ou morte!!” – gritava o médico ao telefone.
Fui herói.
VI
A vida continuou. Ela sempre continua. Indiferente, violenta, frenética, injusta e bela. Enterro discreto. Ele queria ser cremado. Dez pessoas compareceram. Chorei frente ao irremediável. Não há heróis na vida. Há sobreviventes.
(Felipov)
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