sexta-feira, 9 de março de 2012

Coletivo




Belém. Chuva. Almirante Barroso.
As chuvas que parecem suspender o tempo e a ordem do mundo, quando estou em casa, aquele cheiro de umidade familiar, provocando-me calma e preguiça, as lembranças de tempos remotos que se esvaíram na memória, de dormir eternamente nos lençóis quentes que acalentam a solidão.
No entanto, na condição de transeunte, é apenas o presente terrificante, a vida presente, o caos urbano com mais um obstáculo a ser vencido, dentre os vários que colocam em xeque a minha existência.
Dia após dia. Corro, com dificuldade, fugindo as poças d’água, desviando das pessoas, segurando meus pertences, e carregando o meu sobrepeso de pessoa sedentária. O sedentarismo das vidas consumidas pela era da internet.
8h30min – cheguei atrasado. Mais uma vez. Preguiça. Trânsito. Vida de merda.
Trabalho - relatórios, documentos para examinar, pessoa para agüentar. Paciência.
12h – almoço. Refeição engolida em duas horas indigestas de uma alimentação de proteínas, gorduras e carboidratos. Mal cozinhada. Mal mastigada. Mal comida.
18h – fim de expediente. Menos oito horas de vida.
Pé esquerdo no degrau.
Entro no ônibus. Lotado. Idosos, mulheres, crianças. Homens, jovens, trabalhadores. Negros, brancos, pardos. Cristãos. Uma passagem os equivale sentados ou em pé.
“Boa noite” – para o motorista. Sem resposta. Um olhar de desdém. Forço a educação alheia. Divirto-me.
Calor, gente mal educada, a vida em contradição. Em pé, equilibrando, cambaleando, ora para cá, ora para lá, penso na minha vida de assalariado, pessoas me olham, devem pensar nas contas a pagar, na roupa por lavar, no futebol com os amigos, que tem que ir a igreja, ou apenas chegar em casa, assistir a televisão e dormir.
Olho as pessoas, apenas olho, penso nas oito horas diárias, no parco salário, os filhos para sustentar, a mulher para agüentar, mandar o chefe para a puta-do-caralho-da-porra-escrota-que-o-pariu, que não fiz nada da vida, sinto-me velho, cansado e inútil, sem ânimo, sem iniciativa, sem expectativa, distraído e com fome, no leva-e-traz do trânsito. Pessoas entram, levantam, sentam, saem. Eu sento, com os pés doendo.
Entram os vendedores. Andam todo o corredor do ônibus, já transitável, com o entra e saí de pessoas, param de frente para os passageiros. Ajeitam a postura. Adaptavam a voz de acordo com o semblante dos clientes. Demonstram com grande habilidade suas modernas técnicas de venda e marketing social, eloqüência na exposição do produto, persuasão sobre o preço, justificativas sobre o ato. Rigorosamente padrão.
Vendem todo o tipo de porcarias saturadas de glicose ou concentradas de sódio que em longo prazo provocam obesidade, hipertensão, diabetes, cáries, ou qualquer outro tipo de complicação cancerígena derivado da nossa vida plástica, prática e pragmática na sociedade do hiperconsumo.
Outros vendem as suas doenças, a operação que ficou purulenta, a perna que não cicatrizou direito, a filha que precisa de remédio para a alergia que virou chaga, a mãe que é cardíaca e precisa de remédio regularmente, o pai que tem reumatismo e não pode trabalhar, o filho que nasceu com problemas congênitos e não tem tratamento, enfim, a lista infindável de doenças causadas e perpetuadas pela pobreza.
Tem aqueles que vendem a sua condição de desvalidos, de ex-presidiários, ex-prostitutas, ex-trabalhadores, que poderiam está roubando, matando, estuprando, destruindo a sociedade civilizada da qual eles são a corporificação do seu avesso, a razão de sua opulência, a sustentação da ordem, o sofrimento divino para a vida eterna, a faustosa vida terrena para quem não quer ser eterno. Fixei o olhar, ouvindo-os.

“Boa noites, senhores passageiro... desculpe atrapalhar sua viagem... a vida não tá fácil pra ninguém, estou aqui vendendo algumas deliciosa bala... chicretes... pé-de-moleque... e a tradicional paçoquinha... O aicequis tá um por setenta e na promoção dois por um real... o crocato é um por setenta e dois por um real... e a paçoquinha é um por quarenta e três por um real... senhores passageiro... que puder ajudar o meu trabalho eu fico muito agradecido e que deus abençoe e quem não puder ajudar... que deus abençõe e dê boa viagem... boa noite...”

Eu ouvi apenas o legado de cinco séculos de fardo histórico vendendo a sua miséria para consumidores de rendimentos mínimos, aquelas migalhas jogadas aos vencidos representam o nosso nível de consciência. Os mortos legam sua miséria aos vivos. Os vivos compram sua consciência para conviver com sua antítese. O coletivo tilinta as moedinhas das dívidas sociais.

(Felipov)

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