sexta-feira, 23 de março de 2012

Sexta-feira




I

7h30min. Sexta-feira. Periferia de Belém. Jurunas. Bairro de gente preta, parda, indígena, suja de pele, herdeiros da derrota, de pouca escolaridade, quase analfabeta, um bolsão de miséria, calabouço de força de trabalho abundante e abaixo do preço de mercado. Manhã chuvosa. A vida fica mais lenta, mas sempre agitada. Barulho dos carros, buzinas, vrum-vrum de motores, falta de paciência, cordialidade, educação, “Seu preto filhodaputa, a preferência era minha”, “Caralho, tinha que ser mulher mesmo, só faz merda no volante”. Ônibus queimam paradas, lotados, latas de sardinhas humanas sob rodas desgastadas e sem manutenção, motorista cansado, mal pago e velho, cobrador mascando chicletes, cabelo com luzes, cordões e anéis de aços enfeitam pescoço e dedos, ouvindo tecnobrega no seu smartphone, “Porraaa, motoraaa, a parada já passou, seu filhodaputa”, “Ei, motora, pára o bond, esse filhodaputa não quer pagar passagem, já quer fuder com a gente”. Kombis, vans, aos milhares, é o transporte da maioria, sucatas desconfortáveis, acidentes prévios, perigos do trânsito, pais e mães de família pagando suas contas, pagando suas vidas, “Veropeso, olha veropeso, olha veropeso, olha tem vaga meu patrão”, “Mano, aí na frente, os parcero me deram a letra, os hômi tão metendo a caneta, fuga, fuga”. Bicicletas, muitos economizam o da passagem, velhas, sem tinta, sem freio, são as menores em meio a motores, vento no rosto, chuva na cara, uma atividade física no sedentarismo em massa. Transeuntes, passo a passo, vencem calçadas irregulares, ruas alagadas, pé na água, doenças à vista, cura a prazo, o descaso com o público.  Carros-som gritam a diversão, anunciam o alento, prescrevem a catarse, a alienação como remédio, “Festa da galera da golada, mulher e universitário não pagam até onze horas, muitos baldes de gelada e curtição, muita curtição”, “Baile da mussarada, o fuscão da saudade, só as melhores do passado, só recordação, no São Domingo, cerveja noventa e nove centavos a festa toda, mulheres não pagam até meia-noite”.
Sons frenéticos da barbárie. Ecos altissonantes da sobrevivência. Pessoas vão à escola. Pessoas vão ao trabalho. Pessoas vão batalhar a vida. Todos os dias. Todas as sextas.

“Bora, coronel... acorda, porra”
“Hummm... pera, porra... tô fudido de ressaca, ontem fui beber com os parcero da vila”
“Fouda-se, seu leproso... não quero saber... temos que fazer uma missão hoje”
“Que missão, sujeira?”
“Temos que pagar o bagulho pro Ninja, rapa, ele vem pra derrubar a gente... tu sabes como ele resolve as dívida... na bala...”
“Putaquepariu... é verdade, bora logo meter o bicho... a gente vai se fuder... vamos rodar...”
“Mete o bicho naquelas madames no centro... consegue um troco, paga essa porra... e ainda tomamos umas geladas...”
“Selado... caralho da dor de cabeça fudida... vou tomar banho...”
“Vai, que estou te esperando na rua... na bike”

Sujeira e coronel. Os dois na bike. Em direção ao centro. Sujeira guiava, coronel na garupa – com o 38. Os dois de boné da nike, um de camisa adidas e short do Paysandu, o outro com camisa do Barcelona, do Messi, e bermuda do Remo, ambos com cabelo do Neymar e sandália kenner. Eles queriam salvar a pele, beber, comprar roupas novas e na festa do Super Pop que estava com nova aparelhagem – iam para foder as piriguetes. Afinal, era sexta-feira.




II

8h00min. Sexta-feira. Centro de Belém. Batista Campos. Bairro de pessoas brancas, ascendência européia, bem educadas, bem sucedidas, os que medicam, os que defendem, os que julgam, os que governam, os que vendem uma vida feliz nas propagandas, os que pagam salários irrisórios, aqueles que fundamentalmente mandam, aqueles que fazem da sociedade e sua imagem e semelhança. Saúde, Educação, Saneamento, Segurança são atributos do quadrilátero das mangueiras. Quadrilátero no qual a qualidade de vida faz parte da fatura no final do mês. Direitos humanos comprados à vista. Mulheres bonitas, a beleza dos comerciais de tintura de cabelo, a estética do mercado, cabelos alisados, mechas californianas, franja, aloirados, maças avermelhadas de tanto blush, brilho labial, pó compacto, caricaturas de bonecas, trajes finos e sofisticados, bolsas e acessórios, Victor Hugo, Valentino e Christian Dior, rugas disfarçadas em creme Lancôme, perfume francês Chanel nº5, em dieta permanente, o medo eminente de embarangar, seguem para o trabalho, academia ou faculdade. Adolescentes com os seus fones de ouvido, uniformes de escolas caras, nutridos de leite ninho e farinha láctea, preparam-se para ocupar o lugar legado pela família, a hereditariedade de ser medalhão. Crianças são dirigidas para o maternal bilíngue, acompanhadas de suas babás com o ensino fundamental, suas roupas infantis fedem a amaciante e Jonhson & Jonhson, para aprender a serem pessoas empreendedoras e de sucesso. Homens de barba feita, jovens ou de meia idade, cabelo cortado, alguns barrigudos, cabelos grisalhos, tiozinhos pagando de gatões, meia idade, outros com tórax e braços definidos, tatuagem, cara de mau, jovens, ternos, camisas e calças sociais, trajes casuais ou esportes, Armani, Hering, Overend, pastas ou mochilas, cheiro de Calvin Klein, Ferrari ou Polo, são a imagem daqueles que venceram: os vendedores. Nenhum deles sabe quais os preços são praticados nos ônibus ou kombis da cidade. Se o feijão, o arroz ou a carne estão caros. Os serviços domésticos são terceirizados. Conduzidos confortavelmente em seus acentos individuais, observando alheados pela caverna automotiva de seu grilhão de classe, as sombras que se movem através da janela, as sombras que se molham na chuva que lhe provoca impaciência no trânsito. Aquelas sombras são encaradas da mesma forma que a vida na internet. Ponto comum: a assepsia da interatividade e participação na vida virtual é equivalente ao vislumbrar tedioso e aborrecido por trás do vidro fechado. A realidade é francamente ignorada. Trânsito lento ferve a paciência. Todos chegam aos seus lugares de destino esperando que o dia termine logo.
Happy hour com a rapaziada do trabalho, fofocar com as amigas no salão de beleza, jogar vídeo game com os amigos, encontrar o namorado, foder umas doidas no reggae, ser bancada por algum otário na Louvre. Os interesses são diversos. Afinal, era sexta-feira.

Ricardo e Carolina entram no carro. Dois filhos. Clara, dez anos. João, doze. Estudam perto de casa. Ele, advogado. Ela, administradora. Padre Eutíquio. A caminho de seus respectivos trabalhos: o escritório da família, a empresa do pai. Ouvem Chico Buarque.

“Égua, mas o trânsito hoje tá lento né, amor?”
“Quando ele tá assim, eu prefiro ouvir o velho Francisco”
“Baixa um pouco, tá muito alto”
“Eu gosto muito dessa música... ‘Todo dia ela faz tudo sempre igual, me sacode às seis horas da amanhã’” – Ricardo canta empolgado.
“Eu sei, mas tá alto. Baixa um pouco... é o que peço” – Carolina meio grossa.
“Tá bom. Desculpe” – resignado.
“Não precisa pedir desculpa” – irritada.
Silêncio. Aqueles incontáveis minutos da contrariedade dos casais de longa data.
“Mas hoje esse trânsito está infernal, é só chover que fica assim, mesmo sendo essa chuva chata” – Carolina querendo restabelecer o diálogo de maneira amistosa.
“É, agora todo mundo tem carro nessa porra, não se fazem mais pobres como antigamente” – sendo engraçado para agradá-la.
“Hahahaha... pelo menos você mantém o senso de humor” – a paz armada se estabelece.
“Alguma coisa tem que se manter nesse trânsito”
“Viste as notas da Clarinha?”
“Vi. Vou falar com o João para ajudá-la. Vou acompanhar também. Mas acredito que deva ser algum problema com a professora de História, pelo que vi, ela foi muito rigorosa”.
“Eu também acho. Ela não precisa do passado. Precisa de números”
Ricardo gosta de História. Mas não falou nada. Sem mais contrariedades.
“Hoje o dia vai ser cheio. Já estou atrasada. Estou com o dinheiro para fazer o pagamento do pessoal lá do trabalho. Detesto ter que carregar dinheiro que não é meu”
“Eu já te falei para não te submeter a isso”
“Eu sou de confiança, sou da família”
“Sempre a tua família”
“Enfim, são problemas do meu trabalho. Não vou discutir mais uma vez isso contigo. Não quero que o que está ruim, fique pior. Mudemos de assunto”.
“Certo. Mudemos”
Silêncio. Novamente, o silêncio.
O celular de Carolina toca. É do trabalho. Ela diz que está no trânsito. Fica um pouco mais tranqüila. Já está justificada.
“Agora, conseguiu resolver?”
“Sim. Eles entenderam. O trânsito é igual para todos”
“Menos mal” – escolhendo as palavras. Sabia a mulher que tinha. Estava cansado.
“Depois quando chegarmos em casa, quero que me tires uma dúvida de direito tributário. Tenho que passar nesse concurso. Aquilo tudo é muito chato e complicado”
“Tá bom, tiro sim. Quero que esse dia acabe logo. Essa semana foi cansativa. Quero descansar”
“Eu também”

III

Sujeira e coronel assaltaram três carros. Mataram duas pessoas. Sujeira, mais corpulento, é rápido em pedalar. Coronel, com o dedo forte, é ligeiro no gatilho. Deu dois tiros na cara. Pá, pá. O bicho foi gordo: dinheiro, alguns livros, câmera digital, notebook, tablet e vários smartphones.  Os livros jogaram fora. Não tem valor, não valem nada. Os demais objetos já sabiam com quem atravessar a bom preço. Almoçaram satisfeitos na casa do coronel. Dormiram felizes. Marcaram no fim da tarde o pagamento do Ninja. Coronel levou o 38. Tudo estava dando certo, achou que deviam desfrutar da sorte. Estava certo. Era uma sexta infeliz para Ninja. Baixa nas vendas, sem apoio, sem armas, sem moral. Foi inevitável. Três tiros. Pá, pá, pá. Coronel pagou a dívida com sangue. Sujeira ficou atônito e aliviado. Era ele ou eles. Era dia dele. Foram para casa. Tomaram banho, vestiram a melhor roupa, o melhor perfume. O Super Pop e as piriguetes os esperavam. Foi derrame de gelada e muitas piriguetes fodidas.  Sexta de sorte, vingança e putaria.
Carolina chegou no tempo previsto ao trabalho. Tomou café. Conversou com o pessoal do RH. Marcou duas reuniões. Almoçou cansada, engoliu tudo. Fez os pagamentos. Levou a tarde toda. Chegou em casa, arrumou algumas coisas. Ricardo ainda não havia chegado. Ficou vendo algumas coisas na internet. Clara estava no seu quarto ouvindo música. João jogava vídeo game na sala. Ricardo chegou. Beijou os filhos, disse que lhes amava mais que tudo. Eles estranharam. “Eu também, papai” – disseram, indiferentes. Olhou para Carolina da porta do quarto. Ela percebeu sua presença. Viu que havia algo diferente no seu olhar. “Viste a minha mensagem” – disse Ricardo. “Não, nem vi direito o meu celular o dia todo, meu dia foi cheio” – ela disse, procurando o celular. A mensagem dizia: “Eu te amo, meu amor”. “Hoje, depois que te deixei no trabalho, quando estava a caminho do meu, um casal foi morto no carro que estava na minha frente por dois marginais na bicicleta” – disse Ricardo com lágrimas nos olhos. Carolina correu em sua direção, abraçou-o com força e beijou como a muito não fazia. Amaram-se naquela sexta como a muito não se via ao som de “Valsinha” do Chico. O sábado amanheceu em paz.
Todos naquela noite agradeceram a Deus por mais uma semana.
Por mais uma sexta-feira.
(Felipov)














2 comentários:

Tony Leão disse...

O Texto é muito bom, gostei muito mesmo, porém, fizeste uma escolha discursiva na qual as imagens do desfecho são do casal burguês. Percebes o que isso significa, do ponto de vista da ambientação do enredo: saíste da periferia para o centro, mas o que reinou no final foi a perspectiva do centro, aquele que foi ferido pela existência da periferia, mas sobreviveu...
(Provocação) Apesar de o narrador ser onipresente e onisciente, senti no final de tudo o seu suspiro pequeno burguês de alívio, junto com o suspiro burguês de Ricardo e Carolina! rsrs

Eveline disse...

Achei bem legal, você se descolocou do seu eixo para experimentar um desfecho diferente de tudo aquilo que você está acostumado a produzir: um final feliz. Todos as personagens terminam satisfeitas. Interessante exercício literário.

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