segunda-feira, 26 de março de 2012

Deus (*)




O avião cortava o céu nublado como o punhal atravessa a carne do vencido. Abaixo, a floresta estendia-se como um imenso tapete esverdeado, permeada por pequenos corrégos barrentos que se juntavam, formando caudalosas correntes que fluíam agitadas. O piloto não prestava atenção à paisagem que se desenhava até o horizonte: estava ocupado lendo informações nos painéis da aeronave. Para ele era só um pedaço de terra coberta por árvores e rios, uma faixa no mapa a ser percorrida entre dois destinos, um nada que pulsava vivo sem porquê.
Em outro compartimento o co-piloto dormia. Tinham trazido do norte do continente um grupo de homens de negócio para a maior cidade do país, à sudeste de onde estavam, e naquele momento voltavam porque um dos empresários solicitara que regressassem e trouxessem sua família para passar férias fora de época numa praia paradisíaca. “O empresário é um vencedor”. Este pensamento causou um sorriso no rosto do piloto, interrompido subitamente por uma furiosa tempestade que chegara sem ser anunciada pelo rádio. A turbulência acordou o co-piloto, que se dirigiu à cabine e rapidamente os dois repassaram os procedimentos enquanto o avião era sacudido pelo temporal. Comunicaram então à torre que precisavam mudar de altitude, no que foram prontamente autorizados.
Tudo ocorreu em poucos segundos: nem bem o avião alcançou a nova altitude, uma enorme aeronave de passageiros apareceu indo para oeste, rumo ao oceano. Chocaram-se e ambos perderam estabilidade e entraram em pane. O maior perdeu uma asa e caiu em parafuso na floresto e o impacto da queda formou uma enorme clareira; as malas e pedaços dos corpos dos cento e oitenta tripulantes foram instantaneamente espalhados pelas árvores, misturados a fragmentos da fuselagem e folhetos de segurança . O menor conseguiu manter um precário controle após a colisão e o piloto desesperadamente tentou um pouso de emergência na mata: a máquina raspou com brutalidade as copas até entrar totalmente na selva, como uma bala, esfacelando-se toda no caminho.


*
O piloto abriu os olhos e notou que não estava sozinho. Olhares surgiam e desapareciam ao seu redor, fugazes. Tinha uma bruta dor de cabeça e sentia seu corpo todo quebrado; estava numa espécie de torpor e, num primeiro momento, não acreditou que estava vivo. De cabeça para baixo, com o painel do avião esmagando seu peito, fazia força para recompor o que acontecera; lembrou-se da outra aeronave, da colisão e da queda, mas as lembranças vinham fragmentadas, desconexas. Movimentou com dificuldade a cabeça e viu que o co-piloto estava em pedaços ao seu  lado e a imagem das ferragens esquartejando o outro durante a queda veio à sua mente, embora não estivesse certo de que vira acontecer. A situação, no entanto, provocou no piloto algum alívio, pois se convenceu de que não estava morto: o homem dilacerado no outro canto da cabine destruída e as moscas pousando no seu braço ensanguentado trouxeram-lhe uma sensação incômoda mas familiar. “Isto aqui parece parece ser a realidade”. Sorriu por estar vivo, por se sentir vivo.
De repente, um braço tocou seu rosto. Não podia virar para ver de onde vinha, o que lhe causou grande angústia. Tentou gritar, mas seus pulmões estavam muito comprimidos e faltava-lhe fôlego. Concentrou-se e inspirou o máximo que pode e perguntou quem estava lá. Como resposta, ouviu diversos risos e alguma linguagem claramente humana.  “Convém ter calma, esta gente irá me ajudar. Não devo estar tão mal, estou consciente. Apenas estou preso aqui”. Ele falava três idiomas e pôs-se a repetir palavras nestas línguas, esperando que alguma delas fosse compreendida. “Maldita hora que eu não fiz aquele curso de espanhol na faculdade!”. Sabia que lá falavam outra língua, mas se recordou da sua empregada doméstica, do jardineiro e dos pedreiros: vinham de todas as nações ao sul do seu país, no entanto tinham os mesmos traços e havia uma certa compreensão comum entre eles, os imigrantes, que podia, aos olhos dele, muito bem funcionar com aquela gente.
A mansidão das falas deu lugar a uma discussão acalorada e o piloto preocupou-se. Teve medo de serem canibais. Ele supervalorizava sua carne mais pela literatura infanto-juvenil que lera e pelos filmes de terror italianos a que assistira do que pela vida real: até o mais faminto dos antropófagos não daria a mínima para aquela carcaça envolta em ferro retorcido. Logo afastou a ideia da cabeça porque vários braços apareceram, desta vez com seus donos visíveis; doze nativos, fortes e com os rostos pintados, examinaram cautelosamente a situação e, em seguida, puxaram o painel até que saísse de cima do piloto, que desmaiou no processo, em meio a gritos de dor e palavras de agradecimento.



*
O piloto despertou assustado, como se tivesse sido expulso rispidamente de um sonho agitado. Estava no centro de um círculo limitado por indivíduos com lanças, cercado por várias habitações de madeira com telhados de palha e, da frente das suas casas, seus benfeitores olhavam-no com atenção.
Examinou seu corpo com as mãos e viu que, por algum milagre probabilístico, obra do acaso, ou algo que o valha, não quebrara nenhum osso, embora sentisse muita dor por toda parte. Esforçou-se para levantar, apoiando-se nas pernas vacilantes, que se recusavam a apoiar seu peso quase morto; quando ficou em pé, viu que os nativos deram um passo atrás, amedrontados. Deu um passo em frente e o grupo que estava na sua direção recuou. “Que está acontecendo? Por que o temor?”. Um velho então apareceu e todos abriram caminho para que ele adentrasse ao círculo e parasse em frente ao piloto.
Logo seu rosto ganhou uma expressão fingidamente humilde e encarou o ancião com seu traquejo de subordinado, aprendido, aperfeiçoado e bastante apreciado no seu emprego. Não contava que o velho ignorava largamente aquela hierarquia; a humilhação consentida do patronato não chegara até aqueles nativos e o ancião estranhou aquele olhar débil, a covardia não lhe tocava a alma.
Ao ver que não surtira o efeito desejado, o piloto analisou friamente o caso através de uma sucessão de lugares-comuns e deparou-se, ao final da rápida reflexão, com um dilema. Só havia duas coisas a fazer: podia ajoelhar-se e humilhar-se perante o velho, realizando o gesto universal da subserviência, ou ficava como estava e aguentava as consequências. Ponderou, “se eu me prostrar diante dele podem tomar-me por fraco e, neste caso, a morte é certa; por outro lado, se fico de pé e eles me tomam por rebelde, morro do mesmo jeito”. Ocorreu-lhe a reação do povo ao seu levantar e aos passos que dera e sorriu. Fez sua escolha.
Tal qual uma estrela do cinema mudo, o piloto mudou totalmente sua postura e transmitiu ares de intensa superioridade de um instante a outro. Como um general, apoiou-se numa rigidez militar e seu rosto, antes lacaio, agora era grave. Esta mudança não passara desapercebida aos olhos do ancião que, vendo um mínimo de dignidade no interlocutor, falou-lhe algumas palavras, lenta e hipnoticamente; o piloto, que nada entendeu, a tudo ouviu enquanto preparava sua réplica. Findo o discurso do velho, todos estavam silenciosos, esperando o próximo ato daquela insólita tarde – insólita para todos – quando ouviu-se a áspera voz, desafinadamente empostada, do piloto, expressando o que conhecia de mais forte, digno, emocionante. Entoou o hino do seu país.


*
Quando terminou, reparou que todos o encaravam, espantados, inclusive o velho. “Devo ter acertado as notas desta vez”. O povo não entendera as menções à mísseis, bombas, lutas, a um deus em que confiavam naquele distante lar dos bravos; mas um trecho da melodia pareceu aos nativos com um cântico sagrado, usado apenas num de seus rituais mais elaborados. Por essa razão os nativos observaram o piloto com um misto de admiração e susto: aquela criatura molambenta diante deles devia ser alguma coisa muito especial para conhecer tão oculta peça musical.
O piloto, agoniado, deu um passo a frente e todos se assustaram novamente. Levantou os braços e todos se abaixaram. Deu um grito raivoso e todos ficaram sobressaltados. De súbito, foi tomado por uma intensa vontade de gargalhar e o fez sonoramente e todos os nativos então começaram a imitá-lo. Logo estavam achando graça sem parar, alguns começaram a dançar, e o ancião riu tanto que caiu no chão.
Tudo ficou animado como um dia ensolarado e o povo preparou na mesma hora uma grande festividade: as crianças foram recolher frutas, animais silvestres foram colocados para assar e todos conversavam e cantavam coisas alegres. O piloto sentiu-se um vencedor; já se imaginava contando a história para seus colegas e esperando que chegasse aos ouvidos dos homens de negócio que transportava. Seria capa de revistas, jornais, matérias em noticiários, tema de documentários. “O homem branco vence a selva novamente”. Era o que mais gargalhava, feliz da vida por ter passado, irredutivelmente racional, por aquele teste.
Os nativos faziam reverências para o piloto que enxergava naqueles gestos um esboço de reza. Sentiu-se bem com aquilo, afinal, não era diferente de como se sentia em relação a eles. Havia triunfado numa situação hostil, utilizando um artífício que só poderia enganar as pessoas mais primitivas da face da Terra, aqueles devotos de crenças e superstições infundadas, baseadas no que havia de mais ridículo e pitoresco. Claro que ele era superior e mais claro ainda que eles lhe deviam respeito por tudo que representava: a civilização, o progresso, a ciência. Se o reverenciavam por outra coisa, era um mero detalhe. Na cabeça do piloto só havia lugar para os pensamentos dos que vencem, dos que contam a História a seu modo, da sua perspectiva. Aprendera cedo que a realidade era uma ficção comungada pela maioria, nada mais. Uma construção unilateral da verdade. Um ilusionismo para entreter a opinião pública.
Sentiu fome ao ver um belo pernil de porco do mato e caminhou, com a solenidade e distinção da posição recém alcançada, em direção à comida, sendo gentilmente barrado por um homem com uma lança e um sorriso no rosto. Esperneou alguns desaforos mas o nativo só fez rir da cara vermelha do piloto e contou, como quem passa para frente uma piada, aos   outros lanceiros Todos desataram a achar graça e isto enfureceu o piloto, que tentou furar o bloqueio, sendo facilmente controlado por um dos homens e conduzido com serenidade até o centro do círculo.
Desesperou-se de novo: havia tanto que comer ao seu redor que ele podia sentir o gosto, mas aqueles primitivos não deixavam que saísse de jeito nenhum. O ancião ainda estava lá e o piloto foi argumentar com ele através de mímicas, dizendo que tinha uma grande fome que o roía por dentro. O velho então deu um sorriso largo e caminhava para fora do círculo quando o piloto atirou-se aos seus pés, suplicando que lhe desse água ao menos. O velho respondeu-lhe algumas palavras alegres e depois ele mesmo se ajoelhou diante do piloto e cantou o fragmento do hino que ouvira antes; na verdade, cantou seu cântico e apenas para o outro aquelas notas musicas lembravam alguma nação com causas justas - o piloto nem na súplica enxergava o mundo, acostumado que estava à retórica do seu próprio interesse.
Permaneceu no chão, inerte. Estava sem forças para se levantar e atirar-se violentamente contra aquele povo; aquela última humilhação havia extenuado seu corpo já combalido pelo acidente. Não havia o que fazer, exceto observar as pessoas que iam perto dele, faziam uma reverência e depois copiosamente riam na sua cara avermelhada e suja. Algumas horas depois os lanceiros foram substituídos por outros, mas o piloto estava desmaiado e nem notou. Acordou de madrugada com a chuva e bebeu um pouco de água, mas continuava fraco e acabou resignando-se; letargicamente, esperou o fim.
Quanto aos nativos, veneraram aquele homem por cinco dias, até que morreu devido à inanição. Ainda teve forças para dizer em inglês que não era o que pensavam, mas suas derradeiras palavras foram abafadas pelas risadas do povo que assistia sua agonia.

Como são engraçados esses deuses.

(Igor Farias)

(*) Mais um brilhante texto deste colaborador do blog. Obrigado, Igor Farias. 

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