quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Jurunas – uma sala de recepção paid’égua




Habitada por gente simples e tão pobre
Que só tem o sol que a todos cobre
Como podes, mangueira, cantar?

(...)
Eu digo e afirmo que a felicidade aqui mora
E as outras escolas até choram
Invejando a tua posição

Minha mangueira essa sala de recepção
Aqui se abraça inimigo
Como se fosse irmão
(Sala de recepção – Cartola)


O Jurunas é um bairro peculiar. Diria melhor: é uma contradição disfarçada de bairro. Como qualquer outra periferia do país, é uma contradição humana montada em concreto e ferro, e construída sobre suor, sangue e esperança. Localizado na beira do Rio, é um dos maiores bairros da capital paraense, em extensão territorial. Entretanto, não é apenas isso que marca a sua grandeza. A desigualdade social é uma das suas marcas. Diferente dos outros bairros periféricos da “cidade das mangueiras”, no Jurunas, a riqueza que se ostenta em si mesmo, bela e triunfante, como testemunho e panegírico da sociedade liberal, convive ao lado da mais absurda, indignante e embrutecedora pobreza – o testemunho antitético do mesmo engodo liberal.

 Você, caro leitor, desavisado, em uma caminhada de meia hora pelas suas ruas tortas, vielas, vilas, alamedas e passagens, amontoadas e construídas ao ritmo alucinante da vida diária, esburacadas, quase sem calçadas, ocupadas ostensivamente por toda a sorte de atividades comerciais, borracharias, carrinhos de lanches, bancas de venda de DVD pirata, de venda de bombons, de banquinhas do jogo do bicho, o mercado informal espalhado por metro quadrado, vai confirmar isso que estou relatando – in loco.

A violência é o resultado direto da desigualdade. A falta de perspectiva gerada pela pobreza faz com que o bairro seja um dos mais violentos da cidade. A violência é um fenômeno profundamente social, a conjugação entre desigualdade e falta de oportunidade. Ultimamente, não se anda tranqüilo em seus logradouros. O assalto é um evento previsível nas suas ruas densamente povoadas, no qual o transcorrer do trânsito tem uma lógica própria, em que o caos entre transeuntes e veículos automotores é a norma.

A síntese da violência é o famigerado “dois na bike”. O roubo, o assalto, a expropriação de bens de outrem é praticado por jovens e adolescentes, que, impelidos pelos apelos incomensuráveis da sociedade do consumo, querem se incluir na mesma como consumidores, mas não tem como ser consumidor sem dinheiro, e não tem como ter dinheiro sem vender força de trabalho. Sem emprego e oportunidade, o apelo ao consumo é mantido, e o esforço em ser consumidor se mantém, diante do impasse e da impossibilidade, recorre-se a criminalidade. Salvo engano, não desconsidero aqueles indivíduos que caem voluntariamente na marginalidade – porém, não deixo igualmente de considerar que a marginalidade é produzida por uma sociedade desigual, hierarquizante e excludente. Logo, o marginal, o criminoso, o ladrão é um consumidor às avessas, ilegal, ilegítimo que indelevelmente consome. Em última análise, é o consumo que importa – sempre.

Obviamente, a grandeza do Jurunas não é apenas essa. Ele é uma legítima sala de recepção. É um lugar, que para muitos, é onde a felicidade mora. O jurunense médio tem orgulho do seu bairro – a despeito de suas contradições. Primeiro, os seus habitantes são peculiares no seu modo de ser e estar no mundo. Eles são de fácil identificação: efusivos, alegres, falam alto, gesticulam. Xingam, jogam futebol, bebem e brigam. Os domingos são os dias de churrasco, futebol, Cerpa e muito barulho. A poluição sonora é um desafio a sanidade. Tecnobrega, salsa, merengue, flashback e baile de saudade. O jurunense é profundamente crédulo, católico em sua maioria, e devoto de Santa Teresinha – e como bom paraense, é devoto da nazinha. O samba do Rancho embala a dura rotina cotidiana, como diz seu lema: não podemos nos amofinar. E não amofinamos, seguimos impávidos, fortes e renitentes. Nesse ambiente totalmente desfavorável, aqui se abraça inimigo como se fosse irmão – solidariedade nunca dantes vista. Seus moradores são de uma cordialidade insuperável, que conseguem conviver com todas essas contrariedades, com grande malabarismo social, sem perder o sorriso no rosto e a gentileza – em sua maioria. A maior riqueza do Jurunas é sua a gente simples que, sem razões aparentes, e contrariando qualquer padrão de sanidade social, consegue transformar tanto dissabor em amor pela vida. A vida em contradição.

(Felipov)

6 comentários:

Wanúbya Campelo disse...

Felipe, realmente o Jurunas é esse bairro de contradições, desiguladades, mas essencialmente de muita alegria...
Seu povo, de fato, se amontoa em suas ruas caóticas em meio a tantas opções sociais, são homens, mulheres, meninos, aliás, muitos meninos; crianças correndo por todo lado, brincado no meio da rua, obrigando os motoristas a fazer malabarismos na hora de dirigir!
Suas opções comerciais e sociais são o seu melhor...barraquinas de tacacá, lanches, barezinhos, lojinhas de roupa, importados, CDS e DVDS, enfim, um bairro muito divertido, que merece mais cuidado e acompanhamento por parte dos governantes para que ele possa manter suas qualidades e livrar-se das desigualdades.

disse...

É estereótipo demais num só texto, não achas? Já viveste no Jurunas? Ou só compartilhas da ideia de que jurunenses são bons selvagens?

Felipov disse...

Prezada Lí, agradeço a leitura e a exposição de sua opinião. Inicialmente um esclarecimento: quem vos escreve mora no Jurunas desde que nasceu. Desculpe-me, mas sua leitura é profundamente equivocada - embora, respeite-a. Primeiro, fizestes uma leitura rasteira do texto deste blog destinado ao Jurunas. E, ao mesmo tempo, da idéia de "bom selvagem" inscrita na obra de Rousseau. Para ele, o "bom selvagem" seriam ditos “povos primitivos”, que estariam no estágio de selvageria, bem aos moldes do esquema evolucionista que começa a imperar no seu tempo. Assim, o "bom selvagem" para Rousseau representaria a infância da Humanidade. Por isso, a imagem idílica que ele fazia das populações indígenas, por exemplo. Pelo visto, a partir desta breve exposição, não vejo aplicação da idéia de "bom selvagem" a imagem que é representada do jurunense no neste que ora é apresentado neste blog. É muito pelo contrário. Ela compartilha da idéia do Cartola na sua música “sala de recepção” que serve de epígrafe no texto. “Gente simples” que apesar de todas as adversidades sociais, principalmente, a desigualdade social, consegue viver alegre e feliz, até porque “a felicidade mora” no Jurunas. Minha cara, você tem total e irrestrito direito de não concordar com a matriz teórica que subjaz a compreensão literária que faço do bairro onde vivo. Contudo, quando for fazer críticas, faça-as de modo refletido e consubstanciado, que seja teoricamente fundamentado e criticamente refletido. No mais, vá estudar. Abraços cordiais.

disse...

Querido,

respeito, embora continue discordando do que escreveste. Eu também vivo no Jurunas. Minha família toda nasceu e também mora no bairro. Como disseste no início do teu texto, ele é uma contradição. Ou seja, não é apenas violência, muito menos as pessoas são efusivas e alegres diariamente. Generalizaste demais.
Quando me referi ao “bom selvagem” sabia, sim, do significado do termo. Usei-o para dizer que entendi que pensas que o jurunense é puro e inocente, apenas mais uma vítima de um sistema social injusto, que corrompe o indíviduo, nele incutindo a perversidade.
É certo que a violência do bairro é fruto de um sistema excludente, que tem como lema: “Consumo, logo existo”. Mas o que fica no texto é, mais uma vez, apenas a generalização, todo jurunense vira bandido, afinal todos vivem a mesma realidade.
O bairro do Jurunas é um exemplo perfeito das alternativas que a periferia encontra para superar os obstáculos impostos pela exclusão. Mas dizer que o trânsito é caótico e que não tem lei, perdoe a minha tão grande ignorância, também acontece em outros bairros como o Guamá e em países de Terceiro Mundo, como a Índia? Não é isso, portanto, o que diferencia o Jurunas.
Penso que o Jurunas destaca-se dos demais bairros por ser o único que tem a idéia de “nação”. Quem nasce no bairro não é belenense, e sim jurunense. É um bairro de tradição, que nasceu para viver lutando contra suas adversidades. Parafraseando Euclides da Cunha: “o jurunense é, antes de tudo, um forte”. Então, acho que a “alegria” tão exaltada no teu texto seja mais uma forma de resistência, não é nem de longe uma “efusiva” amostra do quanto é bom matar um leão por dia e viver num bairro esquecido pelas autoridades locais.
Ah sim... se houver uma próxima vez, garanto que coloco “a matriz teórica que me subjaz” no final do meu texto. Já deu pra perceber que não estou opinando num blog de uma pessoa qualquer.
E sim, eu estudo, para publicar trabalhos, não para escrever blog. A vida de verdade é lá fora. É onde geralmente se exige conhecimento, ou melhor, sabedoria e, mais ainda, humildade.
No mais, desejo-lhe conhecimento e, mais ainda, sensibilidade para usa-lo.

Felipov disse...

Prezada Lí, agradeço novamente a sua opinião. Percebo que temos a mesma condição de jurunenses natos, que bom – um diálogo entre iguais. Então, vamos as suas críticas. Primeiro, o que você chama de generalização é apenas uma caracterização literária de um ponto de vista particular do narrador. E continuo afirmando que fizestes uso equivocado do termo “bom selvagem” para criticar a percepção que o narrador tem dos habitantes do Jurunas – o que, aliás, é cair em franco anacronismo. Claro está, ele não tem a percepção do jurunense como um agente histórico inocente, pueril e idílico. É simplesmente o oposto, ele compreende que o jurunense tem a criatividade de se movimentar em um ambiente social profundamente adverso e com poucas oportunidades de sobrevivência digna. Em nenhum momento do texto o narrador disse que o jurunense vira bandido e torna-se perverso. Muitíssimo pelo contrário. Ele procurou demonstrar que a criminalidade é um complexo fenômeno social, e por conta da exclusão, desigualdade e falta de oportunidade, por um lado, e por outro, os impávidos apelos da sociedade do consumo, acabam fazendo com que jovens sem perspectiva, almejando serem consumidores a qualquer custo, acabem caindo na criminalidade – e ele ainda faz um esforço de relativização percebendo aqueles agentes que voluntariamente vêem o crime como opção de vida, infelizmente. Como é possível observar, o narrador concebe o agente histórico jurunense como sujeito e objeto no processo de dominação – e não apenas um agente determinado em suas ações pelas estruturas sociais, como o estruturalismo vulgar nos fez acreditar. O narrador, em nenhum momento, individualizou a questão, o que faz acreditar a sua crítica. E sim, o contrário, tentou mostrar as suas condicionantes sociais. Em segundo lugar, não se procurou individualizar o Jurunas como periferia. Se você, cara Li, observar no início do texto, o narrador compara-o qualquer outra periferia do país, e obviamente, em um texto que procurar retratar a realidade social do bairro, não ia se preocupar com a realidade de outras periferias do país e do mundo, mesmo que não desconsidere a condição comum de serem periferias. Concordo que a idéia de “nação” é um dos elementos de singularidade do Jurunas – indiretamente abordado no texto. Subscrevo igualmente a sua observação, parafraseando Euclides da Cunha, que o jurunense é um forte. Em terceiro lugar, no que diz respeito à alegria, é precisamente esse elemento de resistência que marca uma das grandezas do Jurunas, na figura de sua “gente simples” como ficou claro no texto, que vive as contradições sem perder alegria de viver. Percebo que aquilo que você criticou como ausente no meu texto foi precisamente a tese que ele procurou expressar – talvez sejam problemas meus de exposição de idéias. Quando disse, “estudar”, sem nenhum tom pejorativo, por conta das imprecisões conceituais da sua crítica – as quais, como é possível de perceber, continuam. Minha cara, eu não estudo para escrever blogs – o que seria uma total falta de tempo e inutilidade. Eu estudo e escrevo trabalhos, para consubstanciar a minha atuação profissional – sou professor e acadêmico. E concordo plenamente: a vida está nas ruas. Ruas que precisam de intervenção política para que se tornem lugares mais humanizados, e não esteios da barbárie, como temos vivenciado. Agradeço mais uma vez a sua inteligente intervenção. Faço os mesmo votos que os seus: conhecimento e sensibilidade. E algo mais: discernimento de crítica. Abraços cordiais.

Idalécio Lopes disse...

Nasci e me criei no Jurunas!
Morei na Timbiras, Caripunas, Pariquis, Mundurucus, Tamoios e Osvaldo de Caldas Brito. Quando chovia eu corria para apanhar mangas na Praça do Carmo, em tempo de maré grande tomava muito banho de rio escondido de minha mãe. Mudei de lá para a Terra Firme aos 18 anos de idade. Hoje, aos quarenta anos, o meu coração é meio jurunense e meio "terráqueo".

Postar um comentário