terça-feira, 9 de agosto de 2011

Impossibilidades





Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. 
E examinai, sobretudo, o que parece habitual. 
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar.

(Nada é impossível de mudar – Bertold Brecht)





Estou cercado de impossibilidades. A minha existência cerceada por um complexo de mediocridade. A ignomínia está na ordem do dia. A estupidez é celebrada em praça pública. A televisão me ensina a ser um bom consumidor. O jornal quer me fazer crer na sua imparcialidade e verdade. A corrupção faz com que o salário seja mínimo, com o beneplático da opinião pública, que se indigna e resigna. A mais-valia é legitimada pela educação técnica. O Mercado anda nervoso e não pode ser contrariado. O Estado é apenas uma grande máquina burocrática pública de produção de riqueza privada. Nas ruas das cidades engrossam as fileiras dos desvalidos. O espectro do colonialismo tem varrido as periferias do Velho Mundo. Em Pindorama, a vida segue preguiçosa como sempre, sobretaxada de impostos, cara nos seus detalhes, e bamba para não sobrar mês no fim do parco salário.

Vejo-me impossibilitado.

Primeiro, de amar. O amor tornou-se um bem mercantilizado: uma mercadoria. Que fica a disposição das necessidades inventadas por algum publicitário nas suas modernas técnicas de marketing para vender um produto inovador no dia dos namorados, no dia das mães, no dia dos pais. O amor tornou-se fútil, banal, volátil. Sinto saudades do desespero do jovem Werther e seu ímpeto de auto-destruição. Ele ao menos sentia. A despeito de tudo, os românticos sentiam o amor no seu sentido mais puro e sublime. Mas, ele, o amor romântico, não resistiu aos tempos da desconstrução – pelo visto, nada tem resistido. Todavia, a minha impossibilidade de sentir o amor, não quer dizer que não acredite nele. Amar a minha própria falta de amor nunca fez tanto sentido para mim. E, ao mesmo tempo, ser um animal profundamente sentimental – paradoxal, não?

Continuando no quadro das impossibilidades, por sua vez, de ser bonito. Definitivamente, não sou “bombadinho”. Não me adéquo ao modelo hegemônico de beleza. Não gasto horas na academia malhando a bunda. Com suas gírias idiotas: bróder, véio, pácero. Não sou branquinho, bonitinho, arrumadinho. Com roupinha de surfista, camisa PP, todo apertadinho, com a bunda modelada e bracinho malhado. Não, sou muito melhor que isso: sou apenas feio. E não tenho a melhor intenção de mudar isso. Sou gordo, desgrenhado e decrépito. Preguiçoso e sedentário. Que detesta esse papo de vida saudável. Que vive desregradamente nos seus vícios socialmente aceitos, em franco processo de engorda – fazer o quê, é a Física e a Biologia. O que vou fazer contra a Ciência?

Na linha das impossibilidades: não me vejo rico. Concordo plenamente com Almeida Garrett que afirmou que para produzir um homem rico vários outros homens foram deitados na pobreza e miséria. É uma simples visão de totalidade: para ter muito em um lugar, tem que ter de menos em outro. Sempre tive a impressão que a riqueza não é impune. No capitalismo, a riqueza é produzia por mais-valia, exploração do trabalho. Logo, um homem rico chegou a essa condição à custa de outrem no sexo feito as pressas para chegar no horário, o não poder ir a praça com o filho, não ter tempo de ler seu livro favorito, jogar futebol, assistir aquele filme, conversar com os amigos, dormir um pouco mais, enfim, perder oito horas diárias de vida – alienação: pura e simples. A riqueza é a extração de vida dos outros, e, portanto, imoral e indigna.

Finalizando, enfim, a série das impossibilidades, completa-as, com a de ser feliz. Caro leitor, depois do breve quadro que discorri acima, é possível ser feliz? Se for, meu caro, vais me dizer isso qualquer dia desses em uma conversar de bar, ao som de Nelson Cavaquinho e Vinícius de Moraes. Acredito que a felicidade seja uma dimensão da condição humana de dupla entrada, a um só tempo, individual e coletiva – um par dialético. A satisfação pessoal não invalida o meu mal-estar, indignação e crise de consciência em compartilhar a condição de sofrimento de quem passa a vergonhosa situação da fome. A indignação pessoal me move para mudanças coletivas.

As impossibilidades em alguma medida me humanizam e me fazem ver que é razoável chegar ao impossível: a vida que valha ser vivida.

(Felipov)

2 comentários:

Anônimo disse...

"Amar a minha própria falta de amor nunca fez tanto sentido para mim."
Genial :)
Nicoly Uchôa.

Anônimo disse...

Bobinho, fico estupefata com o seu desenvolvimento como escritor. Lindo.
;D
Pode se limpar agora.
=*

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