quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Afrosambas – um elogio da africanidade brasileira


Com os afro-sambas, o violonista Baden Powell e o poeta e diplomata Vinicius de Moraes transportam a mpb para o terreiro de candomblé. Ao lado, a capa original do LP, lançado pelo selo Forma em 1966.



Os afro-sambas foram feitos lá pelos idos de 1962 e gravados em 1965/1966. Em qualidade sonora – foi a pior naquele tempo; só existiam dois canais em hi-fi. Foi gravado num daqueles dias, em que caía um temporal histórico – o estúdio estava transbordando de água e chuva – cantava e tocávamos em cima de algumas caixas de cerveja e uísque que há muito já havíamos consumidos – estamos todos com muita raça, mas também bastante bêbados. Poucos profissionais – até as namoradas, mulheres e amigos participaram da gravação.

Baden Powell em carta ao amigo Joel em 1º de novembro de 1990. 

“Essas antenas que Baden têm ligadas para a Bahia e, em última instância, para a África, permitiram-lhe realizar um novo sincretismo: carioquizar, dentro do espírito do samba moderno, o candomblé afro-brasileiro, dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal”

Afirma Vinicius em nota do LP Os afro-sambas de Baden e Vinicius.


Estes depoimentos de dois gênios da música brasileira proporcionam um pouco a dimensão da obra-prima que produziram. Depois do LP “Os afro-sambas de Baden e Vinícius”, lançado em 1966, o cenário musical brasileiro não foi mais o mesmo. A África assume de vez um lugar de centralidade como referência, não mais limitada à influência estritamente musical, e sim, desponta como conteúdo de composição, no qual a sua cosmovisão de mundo é elevada a termos universais. Estabelece-se com este disco um elogio a africanidade brasileira. Digo de pronto: não sou crítico musical – ou coisa que o valha. Gostaria apenas de escrever um texto de impressões – de um apreciador de música. Na verdade, de um disco que me causa grande impressão, e, que, a meu ver, representa uma das mais bem sucedidas parcerias da música brasileira: Baden Powell e Vinícius de Moraes. Funde-se neste disco dois elementos geniais dessa parceria. Baden e as suas inovações no violão clássico, conseguindo de modo nunca visto na música brasileira combinar acordes eruditamente formados que expressavam a cultura popular. Por sua vez, Vinícius, poeta e compositor consagrado, nesse momento entrava em contato com a cultura africana, que lhe causara profunda impressão, sobretudo, a sua forte influência na cultura popular. Em outro momento, Antonio Candido, um dos maiores historiadores e críticos da Literatura Brasileira ainda vivo, havia dito que Vinícius tinha conseguido fazer com que a sua poesia fosse vivenciada de maneira cotidiana, por meio da sua musicalidade, coesão e expressão. Quer dizer, transformou-se a poesia em música popular. Acredito que aqui resida a especificidade destes afrosambas: seu caráter eminentemente popular que é construído com elementos refinadamente eruditos. Todavia, não somente isso. Há um só tempo, temos a conexão, por um lado, da complexa poética existencial que marca toda a obra de Vinícius de Moraes. Destaco aqui a sua idiossincrática concepção de amor. A rigor, em termos sintéticos, o ato de amar para o poetinha é visto com toda a passionalidade do amor romântico. Amar é se entregar. Amar é sofrer. Amar é ter paz. Amar é viver. Todavia, é um romantismo que tem uma dinâmica dialética com outras experiências existenciais – a tristeza e a solidão. Que é indelevelmente relacionado, por outro lado, com elementos da cultura, mitologia e cosmovisão africana. Uma vez que o berimbau, Ossanha, Iemanjá, Xangô, Exu, ser da linha de Umbanda, o Saravá, ir ao Babalaô, fazer mandiga de amor, são alguns dos aspectos que definem a mitologia africana e que servem de intermediação nos conflitos, amores e dissabores que a condição humana experimenta em sua trajetória errante. É esse elemento de profunda identificação que assentou a cultura africana de maneira definitiva como conteúdo e letra na música brasileira. Transpondo isso para o cotidiano. Se hoje, quando me reúno com os meus amigos em uma roda de samba, e temos a predileção em cantar os afrosambas, cantamos efusiva e alegremente, em termos de celebração, a cultura africana. Elogiamos, de algum modo, a nossa africanidade ancestral. Reconhecemos a África que está dentro de nós, e nos define como brasileiros, como afro-brasileiros. Saravá!

(Felipov)

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