Com os afro-sambas, o violonista Baden Powell e o poeta e diplomata Vinicius de Moraes transportam a mpb para o terreiro de candomblé. Ao lado, a capa original do LP, lançado pelo selo Forma em 1966. |
Os afro-sambas foram feitos lá pelos idos de 1962 e gravados em 1965/1966. Em qualidade sonora – foi a pior naquele tempo; só existiam dois canais em hi-fi. Foi gravado num daqueles dias, em que caía um temporal histórico – o estúdio estava transbordando de água e chuva – cantava e tocávamos em cima de algumas caixas de cerveja e uísque que há muito já havíamos consumidos – estamos todos com muita raça, mas também bastante bêbados. Poucos profissionais – até as namoradas, mulheres e amigos participaram da gravação.
Baden Powell em carta ao amigo Joel em 1º de novembro de 1990.
Baden Powell em carta ao amigo Joel em 1º de novembro de 1990.
“Essas antenas que Baden têm ligadas para a Bahia e, em última instância, para a África, permitiram-lhe realizar um novo sincretismo: carioquizar, dentro do espírito do samba moderno, o candomblé afro-brasileiro, dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal”
Afirma Vinicius em nota do LP Os afro-sambas de Baden e Vinicius.
Estes depoimentos de dois gênios da música brasileira proporcionam um pouco a dimensão da obra-prima que produziram. Depois do LP “Os afro-sambas de Baden e Vinícius”, lançado em 1966, o cenário musical brasileiro não foi mais o mesmo. A África assume de vez um lugar de centralidade como referência, não mais limitada à influência estritamente musical, e sim, desponta como conteúdo de composição, no qual a sua cosmovisão de mundo é elevada a termos universais. Estabelece-se com este disco um elogio a africanidade brasileira. Digo de pronto: não sou crítico musical – ou coisa que o valha. Gostaria apenas de escrever um texto de impressões – de um apreciador de música. Na verdade, de um disco que me causa grande impressão, e, que, a meu ver, representa uma das mais bem sucedidas parcerias da música brasileira: Baden Powell e Vinícius de Moraes. Funde-se neste disco dois elementos geniais dessa parceria. Baden e as suas inovações no violão clássico, conseguindo de modo nunca visto na música brasileira combinar acordes eruditamente formados que expressavam a cultura popular. Por sua vez, Vinícius, poeta e compositor consagrado, nesse momento entrava em contato com a cultura africana, que lhe causara profunda impressão, sobretudo, a sua forte influência na cultura popular. Em outro momento, Antonio Candido, um dos maiores historiadores e críticos da Literatura Brasileira ainda vivo, havia dito que Vinícius tinha conseguido fazer com que a sua poesia fosse vivenciada de maneira cotidiana, por meio da sua musicalidade, coesão e expressão. Quer dizer, transformou-se a poesia em música popular. Acredito que aqui resida a especificidade destes afrosambas: seu caráter eminentemente popular que é construído com elementos refinadamente eruditos. Todavia, não somente isso. Há um só tempo, temos a conexão, por um lado, da complexa poética existencial que marca toda a obra de Vinícius de Moraes. Destaco aqui a sua idiossincrática concepção de amor. A rigor, em termos sintéticos, o ato de amar para o poetinha é visto com toda a passionalidade do amor romântico. Amar é se entregar. Amar é sofrer. Amar é ter paz. Amar é viver. Todavia, é um romantismo que tem uma dinâmica dialética com outras experiências existenciais – a tristeza e a solidão. Que é indelevelmente relacionado, por outro lado, com elementos da cultura, mitologia e cosmovisão africana. Uma vez que o berimbau, Ossanha, Iemanjá, Xangô, Exu, ser da linha de Umbanda, o Saravá, ir ao Babalaô, fazer mandiga de amor, são alguns dos aspectos que definem a mitologia africana e que servem de intermediação nos conflitos, amores e dissabores que a condição humana experimenta em sua trajetória errante. É esse elemento de profunda identificação que assentou a cultura africana de maneira definitiva como conteúdo e letra na música brasileira. Transpondo isso para o cotidiano. Se hoje, quando me reúno com os meus amigos em uma roda de samba, e temos a predileção em cantar os afrosambas, cantamos efusiva e alegremente, em termos de celebração, a cultura africana. Elogiamos, de algum modo, a nossa africanidade ancestral. Reconhecemos a África que está dentro de nós, e nos define como brasileiros, como afro-brasileiros. Saravá!
(Felipov)
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