sábado, 27 de agosto de 2011

Baltasar





Mas a filosofia hoje me auxilia 
A viver indiferente assim

(Filosofia - Noel Rosa) 


Estava andando com pressa, em passadas ritmadas, ora rápidas, ora vagarosas, e visivelmente exausto – sempre temia de ser seguido ou assaltado. Barba mal-feita, cabelo desarrumado, decrepitamente magro e um cigarro na boca – desprezava o padrão dominante de beleza. Cabeça baixa e mãos nos bolsos – a taciturnidade lhe definia. Sapatos gastos, calça de um marrom desbotado, e uma camisa social branca, puída e amarelada – visivelmente não gastava dinheiro com roupas. Caminhava se desviando das calçadas irregulares, camelôs e transeuntes mal-educados e com pressa. Vinha do trabalho. De mais um dia cansativo de trabalho. O expediente no escritório havia sido profundamente estafante. Ter que lidar com pessoas com as quais não tinha a menor afinidade – mentecaptos tecnicamente instruídos que não conseguem fazer um exercício de pensamente independente, não foram treinadas para tal. Suportar um chefe prepotente, arrogante e doutamente ignorante – que arrota uma erudição inócua, que arroga ter sucesso, e possuir uma família feliz. Fazer o trabalho de analisar várias peças criminais como se aquelas vidas ali descritas fossem apenas um amontoado de casos juridicamente prescritos e abstratamente resolvidos pelo enquadramento em meia dúzia de artigos, parágrafos e incisos – e dizem que isso se chama Justiça. Baltasar era um especialista adestrado a decorar um sem número de leis chamado advogado – o velho bacharel oitocentista. Não queria conversa com ninguém. Estava preso nos seus pensamentos. Queria apenas sentar em um bar, sozinho e ter o prazer de beber uma cerveja. Apenas isso. Nada mais que isso. Deu uma última tragada no cigarro e cuspiu no chão. Desejava um gole de cerveja. Chegou ao bar que sempre freqüentava. Sentou-se e esperou ser atendido. O garçon veio, e pediu uma cerveja. Tomou um gole, e veio aquela sensação prazerosa de beber uma cerveja. Acendeu mais um cigarro. Inesperadamente, ela veio pedir fogo. Simplesmente linda. Cabelo castanho, crespo, olhos cor de mel, alvamente branca, era impossível não notá-la. Ela agradeceu toda interessada naquele tipo profundamente estranho. Quando a viu ficou um pouco perturbado com a sua beleza, mas continuou indiferente. Era indiferente a tudo. Exceto a sua cerveja. Achou uma tremenda insolência o seu pedido de fogo. Não gostava de contatos humanos, da Humanidade em geral. As pessoas, a seu ver, eram demasiadamente ridículas, estúpidas, crédulas, chatas e cansativas. Nenhum contato valia à pena. Ela fitava-o, interessada, entre goles de cerveja e a conversa com as amigas na mesa vizinha. Ele olhava indiferente. Duas coisas ocupavam seu pensamento: o mal-estar que seu trabalho lhe provocava e o planejamento de sua viagem à Europa. A cerveja acabou. Levantou-se para ir embora, e passou ao lado da mesa dela. Ela pegou no seu braço, dando-lhe um susto, carinhosamente abriu sua mão, colocou um bilhete, e a fechou com um beijo. O bilhete dizia: “me telefone e um número de celular”. Baltasar leu o bilhete, amassou-o, fez uma bolinha de papel e jogou na mesa, olhou-a com asco e disse: “não venha me intimidar com a sua estúpida beleza, guarde-a para si. Vou te prestar um serviço, mesmo em um bilhete informal, inicia-se um período com ênclise. Vá estudar. Eu simplesmente desprezo a sua beleza. FOUUUDA-SE”. Disse e foi embora. Antes de ir em casa, tinha que passar na farmácia, comprar pasta e fio dental, e alguns antigripais – estava com rinite. Chegou em casa, tomou banho e foi dormir – tinha que acordar cedo para trabalhar. Este foi menos um dia na vida de Baltasar.

(Felipov)

2 comentários:

Anônimo disse...

- O Baltasar é o verdadeiro TRÁGICO.

Falta de consideração com os possíveis sentimentos da moça, ela não pediu p/ ter a beleza ímpar "impossível de não.." ser notada.
Até porque o próprio ficou perturbado, mesmo tendo a indiferença como o seu ponto mais forte.
Outra..
"Não gostava de contatos humanos" aliada a falta de qualquer pensamento consciente sobre a repercussão da sua atitude, agindo naturalmente, só demonstra um comportamento nada sadio.

Resumo da ópera: Ainda pode haver salvação p/ transtorno do Baltasar.

Eu curti(Y)
Nicoly Uchôa.
:D

PS: Daqui p/ frente, manter distância dos magros fumantes com manias de perseguição.
Hahahahaha...

Anônimo disse...

Eu gostei dele *-* eheheheh... nova essa. Rafa.

Postar um comentário