terça-feira, 28 de junho de 2011

Extemporâneo




Vai-se embora
Sem bagagem
Não sabe pra que veio
Foi passeio
Foi passagem

(O velho – Chico Buarque)



Extemporâneo. Ele era extemporâneo. Amadeu era extemporâneo. Morador do Jurunas. Gostava de viver em Belém. Apesar dos seus problemas óbvios. Calor, gente mal educada, o trânsito, a bandidagem, a violência, as abissais desigualdades sociais, a pobreza, a miséria, o embrutecimento humano diante de tal situação absurda e indignante. Esses problemas, ele simplesmente ignorava. Mesmo morando no Jurunas – uma das maiores periferias de Belém. Dizia que estava acima dos problemas de classe. Tinha o bastante para ter uma vida razoável. Pouco importava o resto. Sempre passou a impressão de ser um homem desprendido. Livre. Dono de si. Que estava pouco se importando com o universo alhures. Impávido. Muito inteligente. Racional deveras. Eloqüente. Bom argumentador. Explicava tudo nas minúcias, sem deixar dúvida, ou provocar crítica. Parecia que passava impune pela vida. Indiferente. Autoconfiante. Nada o atingia. Nada o afetava. Obviamente, vivia só. Sem família. Sem mulher. Sem filhos. Ele se bastava. Solidão, considerava ele, era a condição humana por excelência. Tinha muitas teorias e idéias sobre a vida e sobre a morte. Sempre que podia, as expunha. Era um chato. E não fazia questão de esconder. Amargurado, não conversava com ninguém. Julgava-se muito bom para a companhia das pessoas. Todas, segundo ele, demasiadamente idiotas e fracas. Ele arrogava ser um homem superior – nos termos nietzscherianos. Ou um homem extraordinário – de acordo com as reflexões de Raskolnikov. Em verdade, era apenas um pária. Simplesmente um pária. Um fraco. Um frustrado. Um medroso. Àquele que se furta de viver. De sofrer. De sentir dor. Amar. Viver de forma plena, entre o amor e o dissabor. Alegrias e tristezas. Amadeu acreditava estar acima das paixões humanas. Julgava-se um ente superior que sintetizava os elementos de elevação do espírito humano. Uma espécie de homem histórico-cósmico tal qual pensara Hegel. De todo modo, um homem fora do seu tempo. Inadequado. Inadaptado. Anacrônico. Não é necessário dizer que Amadeu era carrancudo, com uma expressão facial vincada por não sorrir, marcada pela tristeza e melancolia. Achava o ato de sorrir desnecessário. E o humor, uma perda de tempo. Tinha coisas mais importantes para fazer. Ler, escrever, trabalhar. Trabalhava amanuense em um cartório. Não raro, era o funcionário mais eficiente e elogiado. Para ele, nada mais natural. Alto e magro. Cabelos longos. Branco. Usava óculos. E andava vestido sempre social: paletó, gravata e calça bem passados – parecia que vivia com a mãe. Morava em um quarto-e-sala perto do trabalho. Percorria duas quadras, estava em casa. Sua rotina, basicamente, se restringia de segunda à sexta, trabalho-casa. E os finais de semana, ir à praça, ao cinema, ler, escutar música, cuidar do jardim, arrumar a casa, lavar roupa, fazer compras, fazer a barba, e escrever. Escrevia muito. Era um exímio escritor. Gostava muito de contos. Lia de tudo, mas tinha especial predileção por contos. Era fascinado pela concisão e expressão da escrita de textos curtos. Escrevia sobre a morte. A finitude da vida lhe inspirava.  Pensava que tudo tem um fim lhe trazia reconforto. Eu era o seu único amigo. Eu gostava de Amadeu, por conta da sua excentricidade e extemporaneidade. Saíamos para conversar nos finais de semana. Sentávamos em algum bar ou café. Ele apenas bebia água. Era abstêmio. Vocifera contra os vícios, dizia que é coisa de fracos. Bebia água para lubrificar a garganta de tanto que falava. Eu gostava da sua chatice e manias. Não sei por que, eu lhe entendia. Mesmo que não concordasse com tudo o que dizia. Eu ouvia. Era o meu gesto humanitário lhe fazer companhia. Não poucas vezes brigávamos e deixávamos de nos falar. Todavia, existia a amizade. Em alguma medida, me identificava com ele. Não obstante, faço essa breve nota em sua memória.  Aquele que se arrogava a perfeição de conduta e inteligência superior, morreu ontem, só. Eu paguei o enterro. Faço uma nota de uma existência extemporânea, que foi passeio, que foi passagem. Que tanto fez, como tanto faz. Foi-se embora, sem receio, sem saudade. Indiferente, como um papel em branco.

(Felipov)

1 comentários:

Juliana Brandão disse...

Provocou-me certa alegria pensar que mesmo os solitários por opção e chatice próprios possuem alguém que lembre deles.

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