segunda-feira, 13 de junho de 2011

O papel (*)




Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
(...)
Lutar com palavras
parece sem fruto
Não tem carne e sangue...
No entanto, luto. 

(O lutador - Carlos Drummond de Andrade)

O papel em branco me desafia. A vida me desafia. Quero resolver problemas, para os quais não tenho solução. O sentimento de incapacidade me invade. E começa a tomar lugar resoluto, renitente. A única vontade que tenho é de não fazer nada. Duvido, sinceramente, das minhas capacidades. Competências. Inteligência. Iludi-me seriamente arrogando-me ser capaz de construir alguma coisa com as minhas próprias mãos. O niilismo domina todas as minhas capacidades mentais. Cinismo. Ceticismo. Sofismo. Enfim, coloco em xeque a minha própria existência. Qual seu sentido, que valia o meu suor e respiração tem tido abaixo do tórrido sol equatorial? É necessário ter sentido? O que realmente importa? Não sei. O que apenas sei é que um cansaço, uma indisposição com as pessoas, as suas idiotices, a sua estupidez e ignorância. Com a realidade desigual que me determina ser egoísta e imediatista. A ser individualista e ter orgulho de ser igualmente idiota e estúpido. Parece-me que há a reprodução em massa dessa forma de sentir e estar no mundo. Andar bem vestido. Na moda. Cabelo cortado, barba feita. Linguagem culta. Inglês, Francês e Espanhol. Voz empostada. Ereto. Nariz empinado. Hierarquia. Seriedade. Disciplina. Organização. Restrição. Legitimação. Status Quo. E qual o sentido disto? A adaptação, a submissão. Ao modelo. A sociedade. Ao capital. A vida da forma em que se apresenta, e que apenas quer reprodução. Contas, e mais contas. Salário. Responsabilidades. Solidão. Carência. Modelos pré-fabricados de felicidade artificial. Conseguir um emprego melhor. Ambição. Formar uma família. Votar. Comprar. Pagar. Consumir. Pensar de menos. Repetir o que o jornal diz. Acreditar que o amor existe. E se adequar ao modelo monogâmico. Casar. Por quê? Porque Espírito Absoluto quis assim. Ele fez e achou bom. É assim. E assim deve ser. Questionou? Azar o seu. As margens são o seu destino. O único sentido que vejo em minha parca existência é a escrita. Escrever me faz dissipar muitas coisas. É comunicar-me comigo mesmo. É dialogar com o papel em branco. Com o nada branco. É uma possibilidade de diálogo. Mesmo que indireto. Com outras existências em igual condição. Ao menos nisso possa ter alguma identidade entre os humanos tão isolados e separados, individualizados em seus quadriláteros sociais mesquinhos e inertes. O papel em branco me desafia a pensar. E eis o que faço: penso e sinto, a um só tempo, no papel alvo da minha existência sôfrega. Diante das pessoas na sala de jantar que estão ocupadas em nascer e morrer em algum lugar miserável da América do Sul. Contudo, tenho uma patética esperança: no papel seja escrita uma história mais humana. E sigo lutando quixotescamente com as palavras e a vida. As palavras, por sua vez, são vida. A vida escrita.  

(Felipov) 


(*) Este texto é uma singela e humilde homenagem ao aniversário de Fernando Pessoa. Uma das fontes de inspiração dos textos escritos neste blog. Uma das referências através do eu-lírico da tabacaria da minha forma de ver e estar no mundo. Fica a saudosa lembrança a esse extraordinário escritor. 

3 comentários:

Eduardo Rodrigues disse...

Nesses dias andei pensando bastante sobre esses momentos de reflexões solitárias. E, pra'além de análises incompletas e minhas considerações mal talhadas, admiro quem expresse bem e saiba criticar.

Temos um prato cheio quando procuramos o que criticar, haha. E ao nos criticarmos, temos um prato infinitamente profundo no qual poderiamos afogar-nos. É oceânica essa filosófica sopa de letras que chamamos de subjetivo, de pessoal, de individual...

Continuarei acompanhando a presente alquimia-culinária. E parabéns Fernando, que antes de tudo, é Pessoa. Como a gente.

Suellen disse...

Oi Felipov! Conheci ontem você no níver da Denise, como a Camila me falou que você tinha um blog, resolvi dar uma olhada. Gostei desse texto, bem desafiador das regras sociais que são impostas na sociedade. O papel em branco e a liberdade individual de pensamento e expressão estão relacionados com a luta contra o sistema, como uma luta de palavras, sem carne e sangue, bem representada pelo Carlos Drummond. Muito bom.

Anônimo disse...

Felipov, meu querido! Lindo texto como sempre! Devo dizer que realmente é sempre um prazer ler Fernando Pessoa e até é uma honra realizarmos aniversários próximo um do outro, de fato ele era um geminiano bem plural com seus diversos heterônimos... ele 13 eu 15... distância curta cronologicamente porém enorme talentosamente.

Chamou-me muito a atenção o seguinte trecho:

"E sigo lutando quixotescamente com as palavras e a vida. As palavras, por sua vez, são vida. A vida escrita."

Quixote, falava ironicamente mais rebuscado para aproximar-se dos cavaleiros dos romances, você fala como fala, escreve como escreve sem ironia, mas uma necessidade de viver a escrita plena. Compartilho o mesmo sentimento, a escrita não só é uma inspiração para viver como também é a minha catarse grega.

Belo texto, mais uma vez traduziste o indizível.
Beijos!

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