terça-feira, 21 de junho de 2011

Sapatos para a vida toda (*)

Ele queria sapatos para a vida toda, por isso, naquela manhã saiu cedo de casa rumo ao centro comercial da cidade. Passou o dia subindo as ladeiras, pisando nos ladrilhos bicentenários, ouvindo os sinos das igrejas antigas badalarem a cada hora, enquanto ele prosseguia sua infrutífera busca.
Entrou na décima loja e mirou os calçados expostos na vitrine. Eram vistosos, adornados, cheios de enfeites. Das mais variadas cores, os sapatos estavam dispostos de um jeito que chamava a atenção do homem, que parou e ficou olhando, fascinado pelo arranjo em exposição.
Notando o homem distraído, o atendente da loja abordou-o:
- Posso ajudar, patrão?
- Sim, meu amigo... Eu estive aqui, olhando esses sapatos... São bonitos, mas gostaria de saber por quanto tempo eu poderia usá-los.
O rapaz fitou o rosto inquisitivo do homem, julgando tratar-se de uma piada. Nunca havia ouvido aquela pergunta antes: estava acostumado com clientes que se sentavam nas cadeiras, calçavam e pagavam, sem grandes considerações acerca do material, da durabilidade. Lógico que havia a prateleira dos de couro, dos de couro sintético, dos tênis. Enfim, cada espécie de calçado estava organizada com seus pares, digo, semelhantes, o que tornava o questionamento do homem, para o atendente, mais absurdo. “Couro dura quanto tempo? Bem, quando está no animal, dura certo tempo. Quando é curtido e transformado em sapato, bom, isso já é uma história totalmente diferente”, com esse pensamento o atendente sorriu levemente.
- Eu disse algo engraçado? - perguntou o homem, já impaciente – Vá chamar o seu gerente.
- Tudo bem.
O gerente era um homem gordo e careca, muito suado. Vendia calçados desde quando tinha cabelos, porém já era gordo nessa época. Promovido a gerente pela sua fidelidade canina ao dono da loja, sentia orgulho de ter calçado deputados, juízes, delegados e até mesmo um jogador de futebol. Houvera também um cantor, muito popular, que só tinha uma perna (ele não gostava de falar sobre isso). O gerente se gabava de ter vendido um par de sapatos para ele, mas, como a prótese calçava 42 e o pé 38, ele teve que fazer uma combinação entre dois pares, conservando para si, devidamente autografados, os sapatos restantes. Estavam numa caixa, especialmente construída, com um lado maior que o outro, em cima de sua mesa.
- No que posso ser útil, senhor? - o gerente disse, amigavelmente.
- Eu queria sapatos para a vida toda – retorquiu o homem, duvidando que o recém-chegado pudesse resolver essa situação.
- Meu amigo, não existe tal item na indústria de calçados brasileira – falou, com os fonemas saindo das frestas do sorriso – Nós temos aqui bons, excelentes e sublimes sapatos. Confortáveis, arejados. De acordo com o preço que o senhor quiser. Mas não existe isso de sapatos para a vida toda, porque, se o senhor usá-los todo tempo, durante um período muito longo, eles irão estragar. Essa é uma grande verdade. Porque o homem não pode ter apenas um sapato, não é, Jorge – o atendente sorriu e balançou a cabeça afirmativamente, apesar desse não ser seu nome – Precisa ter vários, um para cada ocasião. Sapatos para festas, sapatos para caminhadas nas praças, para dançar, para trabalhar. Não há item mais importante para o vestuário do cidadão que o sapato. Sim, concordo que uma camisa bem arrumada faz a diferença, que uma calça passada também é importante, mas os sapatos não ficam para trás em nenhum momento! Sapatos são os mais importantes pilares da civilização! Olhe os índios: sem sapatos, condenados ao fracasso histórico. Esses camponeses, então, sempre descalços, imundos e cheios de parasitas. Meu amigo, a largada do progresso já foi dada e só chegará ao pódio quem estiver de sapatos. Então, esqueça essa ideia, compre um par, dois pares, quanto mais o senhor tiver, mais pronto estará para galgar seu caminho até o solene topo do sucesso.
- Não estou interessado nesses seus sapatos frágeis – vociferou o homem, chamando a atenção do público presente na loja. - Fique sabendo que este já foi um País onde um homem tinha um par de sapatos e apenas um. Meu pai foi um desses homens. Esta já foi uma terra de coisas boas. Agora tudo está corrompido por imbecis como o senhor, que revendem essas bobagens europeias. Tudo tão cheio de cores para hipnotizar os clientes, com o intuito de lhes tirar até o último centavo!
O homem então saiu nervosamente para a rua, recuperar o fôlego perdido. Sentou no meio fio e ficou observando uma carroça que subia uma ladeira com alguns móveis usados. A mula puxava o veículo que mexia de um lado para o outro, de vez em quando derrubando alguma cadeira, que o carroceiro tinha que puxar para dentro.
De repente, o homem ouviu uma voz:
- Vejo que precisas de sapatos, meu filho.
Quando ouviu a palavra “sapatos” virou instintivamente seu pescoço para a fonte sonora. Era uma velha, sentada no chão, com um vestido amarelado e carcomido, que, algum dia, fora branco. Olhava para cima fixamente e, quando o homem levantou-se para ter com ela, notou que seus olhos eram totalmente esbranquiçados. Passou a mão sobre seu rosto, para ter certeza. Era cega.
- Não enxergo, meu filho. Mas vejo que precisas de sapatos.
O homem em qualquer outra situação teria achado aquilo tudo bizarro. Mas nessa ocasião não se assustou. Encarou-a e disse:
- Sim, velha. Preciso de sapatos. Que tens com isso?
- Sei onde podes conseguir o que queres.
- Onde, velha?! - o homem estava esperando alguma bobagem. Alguma banca de alguém que dava comida para ela, com calçados vagabundos para vender, entre as antenas de rádio, trenas e cadeados.
- Tudo tem um preço, tu bem o sabes... Sejam sapatos ou endereços, tudo custa algo. Preciso de um vestido novo. Já tenho esse tem muito tempo e preciso estar bonita para a missa de domingo.
- Toma, velha – disse o homem, atirando algumas notas na cuia da mulher. “Se precisa estar bonita, é bom que volte no tempo e diga para ele que pare”, pensou o homem.
- Também tu irás envelhecer, meu filho. Não há nada que o tempo não traga, assim como não há nada que ele não leve. Toma teu endereço, vai com deus.
O homem pegou o papel surrado da mão da velha, sem prestar atenção nas suas palavras. Ficou contente, pois o lugar era a quatro quarteirões dali. Quinze minutos depois, estava na frente de uma velha oficina de sapatos. Da rua já sentia o cheiro da graxa e do couro dos muitos sapatos pendurados por toda parte do porão escuro. Desceu os degraus e bateu palmas. Não conseguia enxergar nada no fim do corredor de calçados que, aos montes, quase preenchiam totalmente o recinto.
Chamou por alguns minutos e, não vindo ninguém, deu meia volta e já estava na porta quando uma mão melada segurou seu braço. Assustou-se e imediatamente virou para ver o que era, deparando-se com um magro velhote sujo de graxa, com uma barba igualmente imunda. Não usava camisa, só uma calça esfarrapada, segura por suspensórios. Não fosse o cheiro forte do couro dos sapatos, que estavam em todo lugar, o homem não se espantaria se um cheiro mais desagradável exalasse do velho.
- Entre, rapaz. Não seja tímido, são só sapatos.
- Pode largar o meu braço, velho. Não há necessidade. Enxergo bem e queria que ligasses a luz, pelo menos – exigiu o homem, enquanto limpava com o lenço onde o velho pegou.
- Não há luz aqui, faz mal para o couro dos calçados. Bem, então diga-me, o que te trás aqui?
- Uma cega me deu teu endereço. Quero sapatos que durem a minha vida toda. Tens aqui?
- Estás com sorte, meu rapaz. Tenho aqui o que necessitas. Mas ela te avisou que tem um preço, não? - o velho fez a pergunta espremendo bem os olhos, para que enxergar o melhor possível a expressão no rosto do homem.
- Sim, ela mencionou que há um preço. Não interessa, pagarei se achar razoável.
- Pois bem, então. Estamos aqui com um homem razoável, hein... A razoabilidade, meu rapaz, é como um sapato folgado: dá alguma ilusão de conforto a quem usa e dá lucro a quem vende, embora não seja confiável. Espera aqui, já trago teus sapatos. - o velho então saiu pela escuridão e voltou com uma caixa de madeira.
Quando ele a abriu, o homem não acreditou no que viu. Eram sapatos de couro preto com cadarços da mesma cor, sem adornos nem nada que os decorasse, a não ser uma par de listras que corriam pelas bordas. Sem dúvida, o melhor par de calçados que já vira em toda sua vida. Do alto dos seus trinta e sete anos, não chegara a por os olhos em sapatos tão belos, que inspiravam tanta confiança quanto à sua durabilidade. Apesar dessa forte impressão, o homem perguntou ao velho:
- Velho, estes sapatos realmente são como parecem? São fortes e duráveis, ou não passa de ilusão?
- Ouça, meu rapaz: não há nada de ilusão nesses sapatos. Depois de prová-los, nunca mais tu vais querer outros. Serão teus. Estavam aqui esperando por ti a tua vida toda – dizendo isso, o velho foi acomodando o homem numa pilha de sapatos e, com destreza, foi removendo os trapos que o homem estava calçando e inserindo os novos sapatos em seus pés.
Ao ser calçado pelo velho, o homem sentiu-se bem. Não, sentiu-se ótimo. Estava realizado. Tinha, enfim os seus sapatos. Venderia a casa, o carro, a mulher, os filhos, a mãe e os órgãos internos para ter aquele par de sapatos. Quando o velho terminou, o homem levantou-se. “Deus! Como é boa a sensação!” pensou, efusivamente.
- Bons sapatos, velho. Quanto custam? - perguntou, esperando um valor exagerado.
- Olha, rapaz. Esses sapatos não custam dinheiro, pode levá-los. Só deixe a quantia da graxa, que já está de bom tamanho.
O homem sorriu, pegou uma nota de cem na carteira e deixou na mão do velho, que instantaneamente a sujou de graxa e disse, sorrindo enquanto o homem saía para a rua:
- É sempre bom um sujeito satisfeito.
Foi para casa, felicíssimo. Neste dia, nem tirou os sapatos para dormir. Cochilou calçado, enquanto encarava a ponta dos seus pés calçados, deitado na cama. Na verdade, após essa aquisição, o homem nunca mais tirou os sapatos.
De início a sua família não ligou. “Ah, deixa ele. Ele está feliz com os sapatos, apenas”, dizia a sua mulher. Dois meses passaram, sem que o homem ficasse descalço e a situação começou a trazer algum embaraço à unidade familiar.
- Mãe, por que o papai nunca tira aqueles sapatos? - interrogou um dia, seu filho de dez anos, visivelmente triste pelo fato de seu pai ter um comportamento fora do normal.
- Meu filho, seu pai está tendo um problema nervoso, deixe-o – desconversou. Mesmo ela tinha dúvidas acerca da sanidade do marido. “Ele nunca foi normal, bem que meu pai me avisou. Mas agora é tarde, temos que contornar a situação”, pensava o tempo todo.
Mas o homem não mudava. Nas férias escolares, eles iam aos balneários. O homem de bermuda, camiseta e sapatos de couro, despertava todo tipo de comentário maldoso.
A mulher olhava a extravagância do marido com olhos de quem tem vergonha e procurava sempre sugerir lugares para onde não haviam ido, menos pelo ineditismo do passeio, mais pela anonímia.
O homem não se importava. Na verdade ele até notou que a sua família estava preocupada com aquele hábito, mas pensava: "Que se dane, sou eu quem paga as contas!". Chamaram inclusive sua mãe para lhe dissuadir de continuar mantendo esse comportamento. De nada adiantou, já não dava ouvidos à ninguém desde que calçara os sapatos. Eles inspiravam nele uma hombridade nunca antes experimentada. Como um super-poder, um não-se-importar, alguma superioridade por poder calçá-los, enquanto todos os outros homens se encontravam no limbo, purgando seus pecados em sapatos inferiores. Sentia-se único, aqueles eram seus sapatos e com eles ficaria calçado. A sociedade não podia tirar aquilo dele. Já bastava o emprego imbecil, a mulher escandalosa, a parvoíce dos filhos. Não, seus sapatos jamais seriam tirados. Não haveria mais aquela concessão.
Seis meses depois da visita ao sapateiro, o homem estava andando numa das ruas mais movimentadas da cidade. Todo esse tempo ele desenvolvera um jeito peculiar de andar, curvado, encarando os sapatos enquanto caminhava. Pé após pé. Lustrosos, apesar de nunca lhes ter aplicado graxa.
Parou num cruzamento, olhou os semáforos. "O trânsito está movimentado", pensou. Apesar dessa consideração, continuou a caminhada, observando atentamente os sapatos.O relógio da praça marcava duas e quinze da tarde quando um ônibus atropelou o homem, matando-o.
O tempo avançou sobre a cidade como um furacão. Destruiu casas, ruas, prédios. Também o cemitério onde o homem estava enterrado havia duas décadas foi adquirido por uma empresa que queria construir quinhentas unidades habitacionais verticais. E o fez. O condomínio chama-se "Happy Living".
Ofereceram à família uma boa quantia em dinheiro vivo, em troca da remoção dos restos do morto.  Não há necessidade de dizer que a balança da moral pendeu para o lado da pecúnia, uma vez que o cadáver já não constituía patrimônio algum aos seus familiares e, por outro lado, o dinheiro até que viria a calhar.
Numa tarde ensolarada, os trabalhadores remexiam a terra com suas ferramentas, enquanto as máquinas cavavam cada vez mais fundo o terreno e o barulho dessa operação tornava o ambiente ainda mais quente. Cada ossada era colocada numa urna de plástico, com as iniciais e um número identificador num adesivo colado à superfície do recipiente. A surpresa não foi pequena quando, ao remexerem a tumba do homem, encontraram, no meio dos ossos, cabelos e panos apodrecidos, os sapatos. Intactos.

(*) Este é mais um texto do colaborador-simpatizante deste blog - o punk Igor Farias.

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