Era um casal, domingo na Praça da República. Caminhando de mãos dadas, ela um pouco tímida, ele falando muito e muito alto, como que alertando o mundo sobre o tamanho da sua felicidade. Era feliz, sem dúvidas. Ela também parecia ser, embora seu gestual fosse menos expansivo.
Os pés corriam pela calçada, enquanto ele roubava, de quando em quando, algum beijinho da mulher. Pararam para ver algumas peças de artesanato, algumas camisas com aquelas mensagens "FUI EM BELÉM E LEMBREI DE VOCÊ", "A CIDADE DAS MANGUEIRAS".
Ele viu algumas peças dessas pirateadas que os camelôs vendem, numa metáfora dos seres humanos. Somos todos falsificados, contrabandeados, com o essencial comprometido por algum defeito irremediável que não se anuncia num primeiro exame, mas que fatalmente irá comprometer a nossa alma ou o nosso corpo, ou mesmo ambos. Não há futuro para os seres humanos a não ser o mal funcionamento típico dos produtos de procedência duvidosa, feitos pelas mãos ineptas de um ser subdesenvolvido com material igualmente pobre. E eles continuavam andando.
Passando por debaixo desse sol quase equatorial, com a consciência casual de serem únicos, os dois espíritos prosseguiam pelo passeio público com a carapaça material de ossos, sorrisos, sangue e lágrimas, lentamente, passo a passo, em direção, imediatamente, à Avenida Nazaré, e, mediatamente, rumo ao nada que nos espera do outro lado.
Ah, como eu amo essa cidade... Quando eu ando por essas ruas de trezentos anos ou me perco nessa selva de águas aterradas me sinto vivo por compreender a inevitável verdade cósmica do caos. Quando o cartorário declarou a minha naturalidade, para a boa fé dos documentos e outros papéis públicos, não fez nada que não fosse reconhecer o fato indisponível da camada mais aparente da minha alma. Belém, quando eu te vejo, iluminada em meio ao negror das matas e rios, através de uma pequena janela, eu te sinto morena, abrindo os braços, e, à visão do primeiro menino de rua pulando no primeiro canal, me sinto de volta. De volta a eu mesmo. O que eu realmente sou. Que coincide com o que realmente és.
O casal continua andando. Ele fala alguma bobagem, diz alguma piada. Ela sorri um meio sorriso. Aquele sorriso que é meio sorriso, meio tristeza. Não pela qualidade da piada, mas por haver, atrás dos dentes, atrás dos olhos, atrás do rosto de quem sorri, alguma nódoa, como as que salpicam o lado esquerdo do seu rosto e que insistem em sair dos óculos escuros que tentam, a todo custo, esconder o dia anterior.
Ela se limita a falar "sim" e "não" e rir da forma supramencionada. Mas ele não liga. Há pessoas que não ligam. Quem pode culpá-los por não ligarem? Ele não liga porque deve ter tido uma infância ruim, ou qualquer outra desculpa psicanalítica para as pessoas serem filhas das putas umas com as outras. É o mundo em que vivemos: escolha sua desculpa e seja um filho da puta, não necessariamente nessa ordem.
Nenhuma dessas coisas passa na cabeça do homem. Ele está muito ocupado com sua própria felicidade. Ele gostaria de emitir pseudópodes para fagocitar a mulher, englobando-a para seu mundo e sua felicidade. Queria estender esse estado de espírito para ela, pensando que, quanto mais radiante parecesse, mais influenciaria o ânimo dela. Ela também não parecia ligar. Já havia visto aquele filme.
Ele continua falando, falando e falando. Sobre seu trabalho, como tudo vai ser diferente a partir de segunda feira, que vai comprar um carro, que pretende levá-la pra Buenos Aires em setembro. Ela abana a cabeça e dissimula algum interesse nessas coisas, fazendo que com ele se sentisse um pouco fora da sua positividade dominical.
Neste momento, eles passaram por mim, sentado no banco lendo o jornal, algo sobre a guerra, ou sobre as guerras, algum colunista social, alguma alpinista social, algum fosso social em algum país de 190 milhões pessoas, e, tão facilmente quanto se ensina marxismo a um homem faminto, diz a ela:
- Sabe, a gente se diverte tanto quando eu esqueço que tu era puta...
(Igor Farias)
(*) Este é mais um texto do colaborador-simpatizante deste blog - o punk Igor Farias.
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