Comprei uma arma. Não lembro há
quanto tempo, mas tenho uma arma. Uma Magnum 357. Linda, cano longo, seminova.
Sempre tive um fascínio por esta grande invenção humana de resolução de
problemas. Resolução definitiva. Resolução sumária. Tenho muitos problemas. O
meu trabalho era um problema do qual precisava – menos um. A minha vida é um
problema que herdei. Mas minha Magnum 357 é linda. Acredito que parte
considerável – percebam, não estou sendo absoluto, nos últimos tempos, tenho
procurado trabalhar a minha relatividade –, dos problemas humanos, gerais e
particulares, devem ser definidos com a sua intervenção. Políticos, familiares,
empregatícios – enfim. Tem momentos em que o respeito, a tolerância, o diálogo
e todas essas merdas tem limite. A Magnum 357 é o meu limite. Talvez, isso tudo
seja apenas blefe, ultimamente, tenho andando muito cansado e sem paciência,
ansioso e sem sexo. Ficar sem sexo fode a cabeça de qualquer cidadão de bem.
Fode. Mais um dia de vida. Nem sei qual é o dia da semana. Égua da ressaca. 1989.
Década perdida. O socialismo acabou. Adeus, Lênin. O capitalismo triunfou.
Malditos, Reagan e Thatcher. A humanidade prefere a barbárie do consumo. O espectro
dos militares é um fantasma insepulto. Vamos ver se estas próximas eleições vão
vingar. Pelo visto, entre Lula e Collor, vai ser o almofadinha que vai levar. O
Lula parece um morto de fome com boas propostas apresentadas a um povo
miserável e ignorante, que se agarra a qualquer promessa, sobretudo, aquelas de
crescimento econômico e estabilidade política tal qual os dos países de
primeiro mundo que Collor representa. Promessas sem pé, nem cabeça –
tradicionais nos raros pleitos eleitorais tupiniquins. Ele vai ganhar porque
sabe enganar um povo que quer ser enganado. Eu não quero crer desta forma. Sei
que estou errado. Que importar estar certo ou errado. Já perdi muito tempo
nisso. Sinto falta de Margarida. Faz dois meses que ela partiu. Parece que foi
semana passada, ou ontem. Não sei. Saudade. O seu jeito de pegar na minha
barba, desarrumar/arrumar meu cabelo, me fazer carinho, tratar feito criança
com aquele seu jeito infantil na intimidade. Sinto falta de sua voz reclamando
de mim, me dizendo para emagrecer e fazer a barba. Armando, eu não te amo - ela
sempre falava com um tom engraçado antes de me fazer um afago. Mas ela se foi.
Deixando-me prisioneiro da sua ausência. Suas carícias ainda me ferem. Um
cativo do seu corpo. Ela não era o meu tipo ideal para a foda perfeita. Mas não
era só sexo. Era sexo e amor. Pena perceber isso agora. O sexo é uma coisa
importante para mim, é um dos poucos momentos em que me sinto plenamente feliz.
Transando e bebendo são os meus dois momentos felizes. Efêmeros momentos de
alegria: bêbado e gozando. Ela me fazia feliz. O seu jeito de falar do dia, das
coisas que tinha feito, os problemas que havia tido, como tinha ficado puta com
fulana, que a beltrana era engraçada e que estava cansada de trabalhar. Eu
ficava ouvindo calado, apenas observando aquela criatura que me trazia tanta
paz, até ela dizer: vais ficar me olhando com essa cara de bobo, Armado. Fazia
o gesto para lhe beijar e ela me beijava. És um besta, Armando. O meu besta. Eu
era dela. Mas ela se foi. O que resta não é amargura, raiva, ódio ou qualquer
outro sentimento pernicioso e mesquinho peculiar às criaturas humanas. O que
ficou foi apenas a saudade, fragmentos de lembranças, a tristeza da ausência, e
o hábito de sofrer que sempre me consola. Adeus, Margarida. Adeus à única
mulher que tive, as outras são apenas fêmeas. Li o jornal. O café estava frio e
muito doce, mas tomei, prefiro café amargo e preto. Apenas dois cigarros na
carteira. Tenho que comprar cigarros. Gastei dois reais, diários populares, impressão
colorida, tão vagabunda que suja a mão, farto de imagens, diminuto em textos.
Compra jornal barato e ainda quer reclamar, Armando. O editorial é uma piada de
muito mau gosto. Este país não é sério. Os jornais não são sérios. Os
jornalistas não são sérios. Nem eu mesmo sou sério lendo uma porcaria dessas.
Parabéns, um pensamento honesto, sincero e sensato, Armando, estamos indo em
bom caminho. Deveriam prender alguém por escrever tanta merda. Acusações:
franco atentado contra a inteligência pública, fundamentalismo da burrice,
terrorismo da liberdade de expressão. As mesmas notícias, as mesmas imagens, as
mesmas mentiras. A única coisa que importa é saber que farei afinal da minha
existência nos dias vindouros. O mesmo papo de sempre, Armando, parece que tens
quinze aninhos, rapaz. Não sei sinceramente. Só sei que sou mais um dos
improdutivos. Amém. Ter pena de si mesmo não é uma boa saída, Armando, na
verdade, nunca é uma boa saída, rapaz. Na verdade, não sei se quero saber
realmente. O que quero talvez nem tenha a resposta para qual perco tempo
escrevendo estas linhas para que outro improdutivo leia e sinta a felicidade
inerente aos improdutivos. Felicidade? Sim, a felicidade dos improdutivos é a
única felicidade verdadeira. Verdade? Sim, aquela que tanto procuramos. Talvez
nunca encontremos. Nós não queremos a verdade. A verdade não nos interessa objetivamente.
O que interessa verdadeiramente é mentira apregoada em todas as bocas que
procuram a verdade hipocritamente sabendo consciente ou não que jamais a
encontrarão. Eles simplesmente não a querem. Ela não os quer. Ela é simples e
transparente. Presente nos semblantes das pessoas honestas. Cada vez mais raras.
Eu quero simplesmente a improdutividade que sempre procurava. Prazer, mais um
improdutivo. O prazer do contrato encerrado. Em uma reunião no fim de tarde de
sexta. Alívio foi o que senti de imediato. Nunca pensei sentiria tanto prazer
na demissão. Uma alegria inaudita invadiu-me. Devo concordar contigo, rapaz,
talvez, essa foi a melhor coisa que te aconteceu em anos. Sabe, vou ser bem
sincero. Olha, Armando, esse tom de conselheiro não lhe cai bem, porra, parece autoajuda,
se queres dar conselho, faz isso com a Magnum na mão. Mantenha-se em sua
improdutividade. É a melhor coisa que fazes da tua diminuta existência. Pense
bem antes de ser produtivo. Pense na vida gasta em frente a um trabalho
profundamente inútil no qual a única coisa que se acredita são os vencimentos
no fim de um longuíssimo mês que parece não acabar mais. É agonia de sobreviver
a qualquer custa de qualquer maneira. O fato é que ela não tem sentido. Não há
panaceia redentora. Não há solução transcendental para os problemas humanos que
não sejam irremediavelmente resolvidos por mãos humanas. Qualquer tipo de
elucubração deve ser feita no sentido único de fazer as questões corretas e
apresentar respostas adequadas para informar ações concretas. Acredito que
qualquer tipo de especulação filosófica que fuja disso é a mais imbecil
masturbação mental. Boa, boa, sensatez, estamos indo bem, rapaz. Não podemos
nos dar a idiotice de perder tempo. As contradições sociais estão cada vez mais
batendo a porta de nossa preguiça e covardia, nos cobrando síntese. É
necessário pensar e reagir a um só tempo. Na minha improdutividade, vou me
recolher a minha caverna temporariamente para resolver questões internas. A
minha biblioteca me espera. A saudade de Margarida me acossa. Estou perdido. Viva
a improdutividade daqueles que se querem improdutivos e a solidão dos
incompreendidos. Aos produtivos e amados, com a minha Magnum em punho, vão pra
puta que os pariu do caralho da porra. Ótimo conselho, Armando.
(Felipov)
3 comentários:
Gostei do Armando - da sua espécie de confusão mental que aparenta ter e da escolha adequada do nome também. Ele é o improdutivo que, no fundo, gostaríamos de ser, mesmo que momentaneamente.
Acho que os "loucos" poderiam ser escolhidos mais vezes como narradores.
:D
Grande texto!
Estais encontrando seu estilo, bacana. Quando vai rolar o próximo passo?
Sumistes cara, nunca mais te vi online!
Talvez muitos fatos que ocorreram comigo nesses meses me fizeram estranhamente me indentificar com o seu texto. Eu tentei fugir de mim utilizando um relacionamento fútil e quando acabou - sim, eu acabei da pior forma por causa do choque da verdade -, quando acabou restou somente o vazio e o desejo de redesenhar meu futuro. Não sei se me entrego de vez ao material, entro para uma academia e enriqueço ou se permaneço essa jornada niilista pela auto-satisfação. Eu me viciei na alegria momentanea e na futilidade simples que sempre me arrancava um sorriso... Mas, o que me restou agora? Estou arruinado financeiramente e me afastei de muitos amigos.
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