Estava eu numa saleta abarrotada de
gente, esperando uma consulta num dentista. Queria que ele me arrancasse um
pedaço calcinado de dor que fazia às vezes de dente num canto do meu maxilar.
Todos ao redor tinham caras doloridas e torciam o pescoço rumo ao nada aparente
na saleta, para evitar seus reflexos no espelho dos outros. Eu, que venço e sou
vencido pela maioria, peguei então uma revista sobre gente famosa, com o
intuito de me livrar dos anônimos semblantes desconfortáveis que rodeavam o
cômodo, menor ainda pelo tamanho das dores.
Abri numa página qualquer e, ao
invés dos sorrisos e poses forçados, me deparei com uma fotografia de um belo
parque paquistanês ou indiano, na Caxemira. As folhas das árvores estavam
amareladas, e em todo o enquadramento pairava um lamento outonal. Aí que me
ocorreu algo fora do comum, objeto real e provisório desta narrativa.
Dois demônios surgiram caminhando
pelo bosque, calmos como organismos adocicados por um vento forte de haxixe.
Caminhavam assim, um ao lado do outro, mantendo uma distância segura porém
intimista. Afinal, tratavam-se de dois demônios.
Descolei os olhos da revista e os
passei pela saleta, duvidando do que estava vendo. Novamente as caras mulatas,
nipônicas, judaicas, italianas, todas crivadas por uma metralhadora incessante
em cada uma de suas mandíbulas. Meu dente doía também, e talvez por isso voltei
à fotografia e aos demônios, que me pareceram, e haveria de confirmar depois,
mais interessantes que os outros à minha volta.
Os dois demônios caminhavam pelo
bosque, presos móveis a uma moldura sujeita a conflitos e bombas e gritos a
qualquer hora, mas transbordavam a paz de um dia qualquer, uma paz opiácea. Era
um passeio, então eu vi. E ouvi, em seguida.
Então, andei ouvindo que há um
certo país – e riu diplomaticamente o que primeiro falou – há um certo país
encoberto por um espesso manto – e riu ainda mais – como um grande cobertor.
• Sim
– retorquiu o outro. Continuavam caminhando – Há um deles.
• E
por acaso você sabe onde ele fica – perguntou o primeiro.
• Sei,
como não saberia?
• Não
sei – respondeu sério o demônio que rira – Somos demônios. E aos demônios é
negado certo tipo de conhecimento.
• Lá
vem - demônio parecia cansado - Toda vez essa mesma história: somos, e o somos
limitadamente, como tudo que é. Quantas vezes preciso te repetir isso?
• O
suficiente – e tornou a rir o demônio de riso fácil.
A atendente disse um nome em voz
alta. Tinha muitos is, então não era o meu, que tem poucos. Os demônios se
agitaram e riram juntos de algo que não distingui com clareza. Levantou-se um
velho, que caminhou ao consultório usando passos de patíbulo. Alguém
subitamente espirrou e desviou minha atenção, mas logo que pus os olhos no
retrato lá estavam: dois demônios parados na paisagem. E prosseguiram.
• E
lá, como são as mulheres?
• Tem
ouvidos fáceis.
• Ah
sim.
• E
o manto?
• É
espesso, como um carpete muito usado e enrugado de repartição pública.
Um grito do velho, acompanhado de
um ruído de broca, entortou os pescoços de todos em direção a porta fechada. Os
dois demônios se divertiam com isso, ou com outra coisa. Pareciam estar
atentos, embora indiferentes, mas calmos. Tudo isto no bosque imóvel do
retrato.
• Há
tanto o que fazer por lá.
• Pensei
que o trabalho já estava todo feito.
• Não,
como você é ingênuo. Lá tem pleno emprego.
• Não
gosto quando você utiliza esses termos técnicos e afrescalhados.
• Tem
trabalho para todo e qualquer demônio.
• Até
para os antigos?
• Sim,
lá eles arranjam algo para que façam. Nem que seja algo pequeno. Você sabe.
• Entendo.
Os dois sentaram ao pé de uma
árvore, sobre umas folhas caídas. No consultório, nada mudara. Pedaços de
rostos entrecortados por lancinantes apelos por técnicos habilitados para a
extirpação de molares, pré-molares, caninos, ajustes protéticos. Cutuquei com a
língua meu dente podre. Doeu bastante e deixei escapar um gemido, que abafei
com um pigarro. Engoli a seco o catarro resultante. Os dois demônios contavam
uma história, a duas vozes, num coral de longo aprendizado.
• Era
uma vez um país,
• em
que nada era duradouro,
• e
pela inconstância
• contraíram
um grande empréstimo.
• Logo
cobriram-no com um cobertor,
• espesso
como o melhor sangue coagulado do melhor açougue,
• e
diziam que era melhor que permanecesse coberto,
• posto
que se o descobrissem nada de bom restaria
• no
ouvido inconstante das mulheres.
• Era
uma vez um país.
• E
era o fim, de uma vez por todas. Pois, se há país, esqueceram de avisar ao
nada.
E, dito isso, levantaram e
caminharam. Eu adormeci pouco tempo depois, fixando a Caxemira distante. Quando
acordei a atendente me sacudia docemente do sono de volta para a dor. O
dentista fora embora e só retornaria na sexta-feira, ela me disse. A saleta
vazia de pacientes me parecia bem maior. Cabia só a minha dor lá, que se
expandia como uma galáxia rasteira, entumescendo minha boca com o gosto metálico
do inútil.
Na mesa da atendente, abarrotada de
fichas com pequenos retratos, havia um monte de material de escritório. Escolhi
o estilete e me livrei do dente, cuspindo-o junto a um monte de sangue no chão.
Depois, destaquei o retrato da revista e enfiei no bolso da camisa. A atendente
estava muda quando saí para a rua. O sol iluminou minha mão e dois demônios
riam. Era dezembro, que calor.
(Igor Farias)
(*) Dada a insistência, já é um colaborador assíduo deste blog. Valeu por mais essa colaboração, rapaz.
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