domingo, 22 de julho de 2012

Casa (*)





Foi num dia em que passeávamos pelo País. O carro contornava as colinas numa espiral, e o sorriso dela me fazia crer em tudo, presente, passado e futuro, marcha a marcha, em aceleradas e pontuações de freio, vírgula e ponto-e-vírgula, num discurso de homem e máquina, sob um céu qualquer numa nação qualquer. Afinal, que é mais do que podemos esperar do futuro que não seja um sorriso e uma serra inteira, cheia de altos e baixos, cheia da expectativa de uma morte não realizada a cada curva, cheia da plena indiferença das estradas. Foi quando vimos a casa.

Era uma casa de madeira, no alto de um morro. O vento soprava a neblina como os adolescentes brincam com a fumaça dos cigarros que fumam na entrada da escola, em cascata, fazendo anéis, e lá estava a casa. Ela me olhou com um belo olhar de contemplação. Era tudo. Senha e contrassenha. Eu sabia o que fazer, e isso é raro para a humanidade.

Descemos e logo notamos que estava à venda. E o que não está, perguntam. Não sei dizer, aquela estava. E eu tinha como comprá-la. Meus pais haviam morrido e meu avô havia morrido, e num rito jurídico plenamente abalizado pelas instâncias competentes eu fora contemplado com um imenso patrimônio conquistado a gotas de sangue, tiros, adiantadas de cercas, negociações em cartórios. Certo. Eu tinha como comprá-la. E lá estava.

Não era muito grande, uma pequena casa de madeira a três mil quilômetros de Belém, de onde não consigo tirar os pés nem a cabeça, como se a terra tivesse entranhado nas minhas vísceras, como as paredes das minas encrustam os pulmões dos mineiros e os levam para mortes afogadas em lembranças escuras. Era simples, mas longe, e isso era tudo. E eu também a tinha ao meu lado, conversando com o velho que tomava conta, barganhando, assinando um cheque, pegando um recibo e a escritura, tudo isto numa questão de dias. Tínhamos a casa.

Daí não precisávamos de mais nada. Retornar para a cidade morena era uma possibilidade distante, a Baía era só um monte de água, perdida num esgoto da memória, o Mercado, a gente que abarrotava as ruas estreitas, o cheiro de verde que violentava os pulmões, misturado ao odor de óleo queimado que escapava às descargas dos carros, as buzinas, tudo para trás.

Eu liquidara no mesmo dia algo que meu avô perseguiu por décadas. Vendi tudo a um alemão, Klaus, interessado em terra, em Amazônia, no diabo que matou meus bisavós e meu avô, interessado em qualquer coisa que não fosse Alemanha e que o fizesse rico, como o foi meu avô. Cattle, ele disse. E logo uma transferência por computador me tornara rico, e justo eu, que nunca fizera nada, nunca apertara um gatilho, nunca andara na mata atento a qualquer som. Eu que nunca deixara de ter misericórdia de mim e dos outros agora transferira a Herr Klaus todo o perecer humano dos meus ascendentes. Ele sorriu e apertou minha mão e selamos o negócio. No outro dia adiantei minhas férias e saímos, ela e eu, pelo País. Ricos.


Ela sorria sempre e dizia que era a melhor casa no melhor lugar dos melhores sonhos dela. Dizia que podíamos fazer isso ou aquilo, ela estudaria canto, eu escreveria meus livros, nós viveríamos o céu que nos foi negado desde cedo, e por boas razões sempre. Sempre as boas razões. Hoje eu sei por que nos é negado o céu: o assoalho não é muito espesso, o peso das multidões o quebraria e seria mais um desastre na vida dos que embaixo vivem. Permaneça o céu. Permanecíamos na casa. Permanecemos durante um mês, e foi como estar no céu, um simulacro bem armado de céu, um céu particular, nosso. E eu a amava como só, e somente só, se pode amar, estúpido, voraz, egoísta, possessivo. Eu me assenhorei do patrimônio do meu avô, do dinheiro europeu, da casa na serra, dela, e não há como negar que a mesa estava ao meu favor, embora o crupiê não fosse parvo. Há a hora do jogador, mas a banca sempre ganha.

A Alemanha estava em todo lugar naquela parte do País. Nos olhos azuis, nos cabelos louros das pessoas, nas roupas típicas que vestiam meninas emburradas que nos vendiam atrações turísticas nas imediações. Era como uma republiqueta de cidadãos Klaus, a repetirem seus costumes, seus apertos de mãos, o sacrifício do meu avô, as garrafas de conhaque que ele bebia e que lotavam seu quarto imundo, cheirando a velhice, cheirando a morte, o verde que o engoliu por completo, cuspindo só um resto carcomido de homem, velho, doente, mau. E Klaus apertava minhas mãos de novo, sorrindo e dizendo cattle, Klaus vendendo vinho local barato, Klaus engarrafando o sangue do velho e selando um negócio forjado num aperto de mãos limpas sem calos, entre homens que nunca conheceram o inferno. Mas estavam lá também ela, o dinheiro, o morro e a casa, e, na balança, eu era mais feliz que infeliz.

A serra era fria e pacata, e eu escrevia como um possesso. Ela também fazia as suas coisas, compramos um piano e ela estudava e cantava e o som da voz dela se perdia naquela paisagem e eu era o beneficiário único de tudo isto. Sim, beneficiário. Ocorre-me agora que não disse mais sobre meus pais a não ser que haviam morrido. Primeiro foi meu pai, depois minha mãe. Mas se isso já não fazia diferença naquela casa, não o faz a agora, enquanto escrevo num quarto de hotel, de onde ouço vozes em espanhol vindo do lado de fora, e até as buzinas e os escapamentos falam espanhol, e espanhol também é a língua das placas à beira da estrada por onde passei o dia dirigindo, elas dizem que as ilhas Falkland pertencem a eles, a essas pessoas que andam e desandam pelas ruas, pegam trens, tomam mate, torcem para times de futebol e não se conformam com suas perdas, injustas como todas que as sentem os que perdem. Quando se começa a perder algo, perguntam. Quando já está perdido. Só agora vejo que a perdi, e sinto como se a perdesse toda vez que recordo dela.

Eu a vi chorando algumas vezes. Normal, era o isolamento, talvez Belém, talvez sua família que ainda vivia. Talvez o verde sujo e enlameado que me corre pelas veias também corresse pelas dela. Talvez tudo isso e talvez mais. Eu pouco sei por que as pessoas perdem as coisas, mas a perdi, e consigo ver o fato. Depois de dois meses ela mencionou que já não queria mais viver lá. Eu resisti, joguei contra ela tudo que ela tinha anteriormente dito, ressentido. Mas nem só de amor vive o homem, nem a mulher, nem qualquer coisa, e tampouco há palavras que nos saciem o desejo de nos perdermos. Conversamos. Ela disse que precisava mudar, que havia mudado de opinião, que éramos jovens, que havia futuro, que não devíamos nos isolar, escapar dos nossos empregos, compromissos. A casa e o morro. Já não faziam mais sentido para ela, nem o piano, nem o canto.

À noite, porém, nós nos reconciliávamos e era o amor de sempre, o amor desesperado, convulsionado, consciente da perda, cada vez mais próxima e inevitável. Lembro bem a última noite. Entretanto há coisas sobre as quais não escrevemos, nem devemos, guarde-se o indivisível, o inenarrável. Certo. De manhã, quando acordei ela tinha ido e me deixara a casa, o dinheiro, o piano, o morro, e uma vastidão de bens no País dos Klaus, como há tantos Países neste mesmo País. Sem bilhete, sem adeus, sem explicações. Pus água na cafeteira e café no filtro e tomei um gole d'água antes de entornar uma xícara de café. Para onde vão as mulheres quando não as vemos, perguntam. Para onde querem. E eu fiquei ainda lá um dia inteiro, sozinho. A página em branco. Não conseguia escrever. Quando um sonho acaba, perguntam. Quando se acorda, abrem-se os olhos, os pés tocam no assoalho frio de um céu usado, um céu de segunda mão, um céu extinto. Um incêndio nos itens cenográficos de um espetáculo efêmero. Dois meses, dizia comigo mesmo.

Meus pais e meu avô continuavam mortos e na cidadela que havia morro abaixo milhares de Klaus comemoravam minha sucessão, meus hectares, frutos de litros de sangue derramados em vão. Cattle. O dinheiro europeu ainda estava em minha conta, fumegando, como um revólver que acabara de disparar, acidental como um assalto a uma joalheria, e eu ignorava e só queria tomar um banho e tirar ela do corpo, e junto com isso me lavar de Belém, do verde, das noites de nuvens avermelhadas que cobriam as estrelas, queria me livrar de um sorriso fugitivo, desertor. Quando a guerra está perdida, perguntam, constitui a deserção um crime? Que eu lá saiba de guerras não é verdade, mas as placas em espanhol me dizem algo que os mapas contrariam. Ela foi minha até quando? Quando passamos de carro, compramos e habitamos no casebre, fodemos no chão, na cama, em pé, na mesa, em todo lugar, nisto tudo ela foi minha? Não sei. Por isso não ter bastado a ela sou tentado pela ideia de que ela sempre foi da saída surda e muda que meu sono não deixou surpreender. Talvez ela sempre tenha sido daquele que a amará depois. Eu não tinha nada. Um carro e dinheiro alemão. Klaus sorri numa planície enquanto divisa seus horizontes verdes e os enxerga coberto de dinheiro em pé, os ossos do meu avô devem estar brancos sobre a terra.

Peguei o carro e saí. Deixei lá as roupas, o piano, tudo. E dirigi o dia todo. No outro dia estava em solo argentino e já conseguia ver a cordilheira imensa que nos prova a desnecessidade de qualquer coisa. Não pude evitar de pensar nela, então dei meia volta até o morro, a casa, ela, e tudo mais que me prendia como se estivesse amarrado num cais por algum cabo de aço. Acendi um cigarro. Juntei depois um monte de livros no centro da casa e pus fogo num deles. A casa demorou a arder. Quarenta e oito horas depois eu estava na estrada novamente, e as placas me diziam o que minhas veias negavam: não estava em Belém e ela fora embora e que as Malvinas eram argentinas. Olhei fixo para uma montanha coberta de neve. No alto dela, nenhuma casa. Era julho.


(Igor Farias)


(*)Mais um texto do quase co-autor deste blog, Igor Farias. Valeu, chapa. 

0 comentários:

Postar um comentário