Foi num dia em que passeávamos pelo
País. O carro contornava as colinas numa espiral, e o sorriso dela me fazia
crer em tudo, presente, passado e futuro, marcha a marcha, em aceleradas e
pontuações de freio, vírgula e ponto-e-vírgula, num discurso de homem e
máquina, sob um céu qualquer numa nação qualquer. Afinal, que é mais do que
podemos esperar do futuro que não seja um sorriso e uma serra inteira, cheia de
altos e baixos, cheia da expectativa de uma morte não realizada a cada curva,
cheia da plena indiferença das estradas. Foi quando vimos a casa.
Era uma casa de madeira, no alto de
um morro. O vento soprava a neblina como os adolescentes brincam com a fumaça
dos cigarros que fumam na entrada da escola, em cascata, fazendo anéis, e lá
estava a casa. Ela me olhou com um belo olhar de contemplação. Era tudo. Senha
e contrassenha. Eu sabia o que fazer, e isso é raro para a humanidade.
Descemos e logo notamos que estava
à venda. E o que não está, perguntam. Não sei dizer, aquela estava. E eu tinha
como comprá-la. Meus pais haviam morrido e meu avô havia morrido, e num rito
jurídico plenamente abalizado pelas instâncias competentes eu fora contemplado
com um imenso patrimônio conquistado a gotas de sangue, tiros, adiantadas de
cercas, negociações em cartórios. Certo. Eu tinha como comprá-la. E lá estava.
Não era muito grande, uma pequena
casa de madeira a três mil quilômetros de Belém, de onde não consigo tirar os
pés nem a cabeça, como se a terra tivesse entranhado nas minhas vísceras, como
as paredes das minas encrustam os pulmões dos mineiros e os levam para mortes
afogadas em lembranças escuras. Era simples, mas longe, e isso era tudo. E eu
também a tinha ao meu lado, conversando com o velho que tomava conta,
barganhando, assinando um cheque, pegando um recibo e a escritura, tudo isto
numa questão de dias. Tínhamos a casa.
Daí não precisávamos de mais nada.
Retornar para a cidade morena era uma possibilidade distante, a Baía era só um
monte de água, perdida num esgoto da memória, o Mercado, a gente que abarrotava
as ruas estreitas, o cheiro de verde que violentava os pulmões, misturado ao
odor de óleo queimado que escapava às descargas dos carros, as buzinas, tudo
para trás.
Eu liquidara no mesmo dia algo que
meu avô perseguiu por décadas. Vendi tudo a um alemão, Klaus, interessado em
terra, em Amazônia, no diabo que matou meus bisavós e meu avô, interessado em
qualquer coisa que não fosse Alemanha e que o fizesse rico, como o foi meu avô.
Cattle, ele disse. E logo uma transferência por computador me tornara rico, e
justo eu, que nunca fizera nada, nunca apertara um gatilho, nunca andara na
mata atento a qualquer som. Eu que nunca deixara de ter misericórdia de mim e
dos outros agora transferira a Herr Klaus todo o perecer humano dos meus
ascendentes. Ele sorriu e apertou minha mão e selamos o negócio. No outro dia
adiantei minhas férias e saímos, ela e eu, pelo País. Ricos.
Ela sorria sempre e dizia que era a
melhor casa no melhor lugar dos melhores sonhos dela. Dizia que podíamos fazer
isso ou aquilo, ela estudaria canto, eu escreveria meus livros, nós viveríamos
o céu que nos foi negado desde cedo, e por boas razões sempre. Sempre as boas
razões. Hoje eu sei por que nos é negado o céu: o assoalho não é muito espesso,
o peso das multidões o quebraria e seria mais um desastre na vida dos que
embaixo vivem. Permaneça o céu. Permanecíamos na casa. Permanecemos durante um
mês, e foi como estar no céu, um simulacro bem armado de céu, um céu
particular, nosso. E eu a amava como só, e somente só, se pode amar, estúpido,
voraz, egoísta, possessivo. Eu me assenhorei do patrimônio do meu avô, do
dinheiro europeu, da casa na serra, dela, e não há como negar que a mesa estava
ao meu favor, embora o crupiê não fosse parvo. Há a hora do jogador, mas a
banca sempre ganha.
A Alemanha estava em todo lugar
naquela parte do País. Nos olhos azuis, nos cabelos louros das pessoas, nas
roupas típicas que vestiam meninas emburradas que nos vendiam atrações
turísticas nas imediações. Era como uma republiqueta de cidadãos Klaus, a repetirem
seus costumes, seus apertos de mãos, o sacrifício do meu avô, as garrafas de
conhaque que ele bebia e que lotavam seu quarto imundo, cheirando a velhice,
cheirando a morte, o verde que o engoliu por completo, cuspindo só um resto
carcomido de homem, velho, doente, mau. E Klaus apertava minhas mãos de novo,
sorrindo e dizendo cattle, Klaus vendendo vinho local barato, Klaus
engarrafando o sangue do velho e selando um negócio forjado num aperto de mãos
limpas sem calos, entre homens que nunca conheceram o inferno. Mas estavam lá
também ela, o dinheiro, o morro e a casa, e, na balança, eu era mais feliz que
infeliz.
A serra era fria e pacata, e eu
escrevia como um possesso. Ela também fazia as suas coisas, compramos um piano
e ela estudava e cantava e o som da voz dela se perdia naquela paisagem e eu
era o beneficiário único de tudo isto. Sim, beneficiário. Ocorre-me agora que
não disse mais sobre meus pais a não ser que haviam morrido. Primeiro foi meu
pai, depois minha mãe. Mas se isso já não fazia diferença naquela casa, não o
faz a agora, enquanto escrevo num quarto de hotel, de onde ouço vozes em
espanhol vindo do lado de fora, e até as buzinas e os escapamentos falam
espanhol, e espanhol também é a língua das placas à beira da estrada por onde
passei o dia dirigindo, elas dizem que as ilhas Falkland pertencem a eles, a
essas pessoas que andam e desandam pelas ruas, pegam trens, tomam mate, torcem
para times de futebol e não se conformam com suas perdas, injustas como todas
que as sentem os que perdem. Quando se começa a perder algo, perguntam. Quando
já está perdido. Só agora vejo que a perdi, e sinto como se a perdesse toda vez
que recordo dela.
Eu a vi chorando algumas vezes.
Normal, era o isolamento, talvez Belém, talvez sua família que ainda vivia.
Talvez o verde sujo e enlameado que me corre pelas veias também corresse pelas
dela. Talvez tudo isso e talvez mais. Eu pouco sei por que as pessoas perdem as
coisas, mas a perdi, e consigo ver o fato. Depois de dois meses ela mencionou
que já não queria mais viver lá. Eu resisti, joguei contra ela tudo que ela
tinha anteriormente dito, ressentido. Mas nem só de amor vive o homem, nem a
mulher, nem qualquer coisa, e tampouco há palavras que nos saciem o desejo de
nos perdermos. Conversamos. Ela disse que precisava mudar, que havia mudado de
opinião, que éramos jovens, que havia futuro, que não devíamos nos isolar,
escapar dos nossos empregos, compromissos. A casa e o morro. Já não faziam mais
sentido para ela, nem o piano, nem o canto.
À noite, porém, nós nos
reconciliávamos e era o amor de sempre, o amor desesperado, convulsionado,
consciente da perda, cada vez mais próxima e inevitável. Lembro bem a última
noite. Entretanto há coisas sobre as quais não escrevemos, nem devemos,
guarde-se o indivisível, o inenarrável. Certo. De manhã, quando acordei ela
tinha ido e me deixara a casa, o dinheiro, o piano, o morro, e uma vastidão de
bens no País dos Klaus, como há tantos Países neste mesmo País. Sem bilhete,
sem adeus, sem explicações. Pus água na cafeteira e café no filtro e tomei um
gole d'água antes de entornar uma xícara de café. Para onde vão as mulheres
quando não as vemos, perguntam. Para onde querem. E eu fiquei ainda lá um dia
inteiro, sozinho. A página em branco. Não conseguia escrever. Quando um sonho
acaba, perguntam. Quando se acorda, abrem-se os olhos, os pés tocam no assoalho
frio de um céu usado, um céu de segunda mão, um céu extinto. Um incêndio nos
itens cenográficos de um espetáculo efêmero. Dois meses, dizia comigo mesmo.
Meus pais e meu avô continuavam
mortos e na cidadela que havia morro abaixo milhares de Klaus comemoravam minha
sucessão, meus hectares, frutos de litros de sangue derramados em vão. Cattle.
O dinheiro europeu ainda estava em minha conta, fumegando, como um revólver que
acabara de disparar, acidental como um assalto a uma joalheria, e eu ignorava e
só queria tomar um banho e tirar ela do corpo, e junto com isso me lavar de
Belém, do verde, das noites de nuvens avermelhadas que cobriam as estrelas,
queria me livrar de um sorriso fugitivo, desertor. Quando a guerra está
perdida, perguntam, constitui a deserção um crime? Que eu lá saiba de guerras
não é verdade, mas as placas em espanhol me dizem algo que os mapas contrariam.
Ela foi minha até quando? Quando passamos de carro, compramos e habitamos no
casebre, fodemos no chão, na cama, em pé, na mesa, em todo lugar, nisto tudo
ela foi minha? Não sei. Por isso não ter bastado a ela sou tentado pela ideia
de que ela sempre foi da saída surda e muda que meu sono não deixou surpreender.
Talvez ela sempre tenha sido daquele que a amará depois. Eu não tinha nada. Um
carro e dinheiro alemão. Klaus sorri numa planície enquanto divisa seus
horizontes verdes e os enxerga coberto de dinheiro em pé, os ossos do meu avô
devem estar brancos sobre a terra.
Peguei o carro e saí. Deixei lá as
roupas, o piano, tudo. E dirigi o dia todo. No outro dia estava em solo
argentino e já conseguia ver a cordilheira imensa que nos prova a
desnecessidade de qualquer coisa. Não pude evitar de pensar nela, então dei
meia volta até o morro, a casa, ela, e tudo mais que me prendia como se
estivesse amarrado num cais por algum cabo de aço. Acendi um cigarro. Juntei
depois um monte de livros no centro da casa e pus fogo num deles. A casa
demorou a arder. Quarenta e oito horas depois eu estava na estrada novamente, e
as placas me diziam o que minhas veias negavam: não estava em Belém e ela fora
embora e que as Malvinas eram argentinas. Olhei fixo para uma montanha coberta
de neve. No alto dela, nenhuma casa. Era julho.
(Igor Farias)
(*)Mais um texto do quase co-autor deste blog, Igor Farias. Valeu, chapa.
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