segunda-feira, 26 de março de 2012

Deus (*)




O avião cortava o céu nublado como o punhal atravessa a carne do vencido. Abaixo, a floresta estendia-se como um imenso tapete esverdeado, permeada por pequenos corrégos barrentos que se juntavam, formando caudalosas correntes que fluíam agitadas. O piloto não prestava atenção à paisagem que se desenhava até o horizonte: estava ocupado lendo informações nos painéis da aeronave. Para ele era só um pedaço de terra coberta por árvores e rios, uma faixa no mapa a ser percorrida entre dois destinos, um nada que pulsava vivo sem porquê.
Em outro compartimento o co-piloto dormia. Tinham trazido do norte do continente um grupo de homens de negócio para a maior cidade do país, à sudeste de onde estavam, e naquele momento voltavam porque um dos empresários solicitara que regressassem e trouxessem sua família para passar férias fora de época numa praia paradisíaca. “O empresário é um vencedor”. Este pensamento causou um sorriso no rosto do piloto, interrompido subitamente por uma furiosa tempestade que chegara sem ser anunciada pelo rádio. A turbulência acordou o co-piloto, que se dirigiu à cabine e rapidamente os dois repassaram os procedimentos enquanto o avião era sacudido pelo temporal. Comunicaram então à torre que precisavam mudar de altitude, no que foram prontamente autorizados.
Tudo ocorreu em poucos segundos: nem bem o avião alcançou a nova altitude, uma enorme aeronave de passageiros apareceu indo para oeste, rumo ao oceano. Chocaram-se e ambos perderam estabilidade e entraram em pane. O maior perdeu uma asa e caiu em parafuso na floresto e o impacto da queda formou uma enorme clareira; as malas e pedaços dos corpos dos cento e oitenta tripulantes foram instantaneamente espalhados pelas árvores, misturados a fragmentos da fuselagem e folhetos de segurança . O menor conseguiu manter um precário controle após a colisão e o piloto desesperadamente tentou um pouso de emergência na mata: a máquina raspou com brutalidade as copas até entrar totalmente na selva, como uma bala, esfacelando-se toda no caminho.


*
O piloto abriu os olhos e notou que não estava sozinho. Olhares surgiam e desapareciam ao seu redor, fugazes. Tinha uma bruta dor de cabeça e sentia seu corpo todo quebrado; estava numa espécie de torpor e, num primeiro momento, não acreditou que estava vivo. De cabeça para baixo, com o painel do avião esmagando seu peito, fazia força para recompor o que acontecera; lembrou-se da outra aeronave, da colisão e da queda, mas as lembranças vinham fragmentadas, desconexas. Movimentou com dificuldade a cabeça e viu que o co-piloto estava em pedaços ao seu  lado e a imagem das ferragens esquartejando o outro durante a queda veio à sua mente, embora não estivesse certo de que vira acontecer. A situação, no entanto, provocou no piloto algum alívio, pois se convenceu de que não estava morto: o homem dilacerado no outro canto da cabine destruída e as moscas pousando no seu braço ensanguentado trouxeram-lhe uma sensação incômoda mas familiar. “Isto aqui parece parece ser a realidade”. Sorriu por estar vivo, por se sentir vivo.
De repente, um braço tocou seu rosto. Não podia virar para ver de onde vinha, o que lhe causou grande angústia. Tentou gritar, mas seus pulmões estavam muito comprimidos e faltava-lhe fôlego. Concentrou-se e inspirou o máximo que pode e perguntou quem estava lá. Como resposta, ouviu diversos risos e alguma linguagem claramente humana.  “Convém ter calma, esta gente irá me ajudar. Não devo estar tão mal, estou consciente. Apenas estou preso aqui”. Ele falava três idiomas e pôs-se a repetir palavras nestas línguas, esperando que alguma delas fosse compreendida. “Maldita hora que eu não fiz aquele curso de espanhol na faculdade!”. Sabia que lá falavam outra língua, mas se recordou da sua empregada doméstica, do jardineiro e dos pedreiros: vinham de todas as nações ao sul do seu país, no entanto tinham os mesmos traços e havia uma certa compreensão comum entre eles, os imigrantes, que podia, aos olhos dele, muito bem funcionar com aquela gente.
A mansidão das falas deu lugar a uma discussão acalorada e o piloto preocupou-se. Teve medo de serem canibais. Ele supervalorizava sua carne mais pela literatura infanto-juvenil que lera e pelos filmes de terror italianos a que assistira do que pela vida real: até o mais faminto dos antropófagos não daria a mínima para aquela carcaça envolta em ferro retorcido. Logo afastou a ideia da cabeça porque vários braços apareceram, desta vez com seus donos visíveis; doze nativos, fortes e com os rostos pintados, examinaram cautelosamente a situação e, em seguida, puxaram o painel até que saísse de cima do piloto, que desmaiou no processo, em meio a gritos de dor e palavras de agradecimento.



*
O piloto despertou assustado, como se tivesse sido expulso rispidamente de um sonho agitado. Estava no centro de um círculo limitado por indivíduos com lanças, cercado por várias habitações de madeira com telhados de palha e, da frente das suas casas, seus benfeitores olhavam-no com atenção.
Examinou seu corpo com as mãos e viu que, por algum milagre probabilístico, obra do acaso, ou algo que o valha, não quebrara nenhum osso, embora sentisse muita dor por toda parte. Esforçou-se para levantar, apoiando-se nas pernas vacilantes, que se recusavam a apoiar seu peso quase morto; quando ficou em pé, viu que os nativos deram um passo atrás, amedrontados. Deu um passo em frente e o grupo que estava na sua direção recuou. “Que está acontecendo? Por que o temor?”. Um velho então apareceu e todos abriram caminho para que ele adentrasse ao círculo e parasse em frente ao piloto.
Logo seu rosto ganhou uma expressão fingidamente humilde e encarou o ancião com seu traquejo de subordinado, aprendido, aperfeiçoado e bastante apreciado no seu emprego. Não contava que o velho ignorava largamente aquela hierarquia; a humilhação consentida do patronato não chegara até aqueles nativos e o ancião estranhou aquele olhar débil, a covardia não lhe tocava a alma.
Ao ver que não surtira o efeito desejado, o piloto analisou friamente o caso através de uma sucessão de lugares-comuns e deparou-se, ao final da rápida reflexão, com um dilema. Só havia duas coisas a fazer: podia ajoelhar-se e humilhar-se perante o velho, realizando o gesto universal da subserviência, ou ficava como estava e aguentava as consequências. Ponderou, “se eu me prostrar diante dele podem tomar-me por fraco e, neste caso, a morte é certa; por outro lado, se fico de pé e eles me tomam por rebelde, morro do mesmo jeito”. Ocorreu-lhe a reação do povo ao seu levantar e aos passos que dera e sorriu. Fez sua escolha.
Tal qual uma estrela do cinema mudo, o piloto mudou totalmente sua postura e transmitiu ares de intensa superioridade de um instante a outro. Como um general, apoiou-se numa rigidez militar e seu rosto, antes lacaio, agora era grave. Esta mudança não passara desapercebida aos olhos do ancião que, vendo um mínimo de dignidade no interlocutor, falou-lhe algumas palavras, lenta e hipnoticamente; o piloto, que nada entendeu, a tudo ouviu enquanto preparava sua réplica. Findo o discurso do velho, todos estavam silenciosos, esperando o próximo ato daquela insólita tarde – insólita para todos – quando ouviu-se a áspera voz, desafinadamente empostada, do piloto, expressando o que conhecia de mais forte, digno, emocionante. Entoou o hino do seu país.


*
Quando terminou, reparou que todos o encaravam, espantados, inclusive o velho. “Devo ter acertado as notas desta vez”. O povo não entendera as menções à mísseis, bombas, lutas, a um deus em que confiavam naquele distante lar dos bravos; mas um trecho da melodia pareceu aos nativos com um cântico sagrado, usado apenas num de seus rituais mais elaborados. Por essa razão os nativos observaram o piloto com um misto de admiração e susto: aquela criatura molambenta diante deles devia ser alguma coisa muito especial para conhecer tão oculta peça musical.
O piloto, agoniado, deu um passo a frente e todos se assustaram novamente. Levantou os braços e todos se abaixaram. Deu um grito raivoso e todos ficaram sobressaltados. De súbito, foi tomado por uma intensa vontade de gargalhar e o fez sonoramente e todos os nativos então começaram a imitá-lo. Logo estavam achando graça sem parar, alguns começaram a dançar, e o ancião riu tanto que caiu no chão.
Tudo ficou animado como um dia ensolarado e o povo preparou na mesma hora uma grande festividade: as crianças foram recolher frutas, animais silvestres foram colocados para assar e todos conversavam e cantavam coisas alegres. O piloto sentiu-se um vencedor; já se imaginava contando a história para seus colegas e esperando que chegasse aos ouvidos dos homens de negócio que transportava. Seria capa de revistas, jornais, matérias em noticiários, tema de documentários. “O homem branco vence a selva novamente”. Era o que mais gargalhava, feliz da vida por ter passado, irredutivelmente racional, por aquele teste.
Os nativos faziam reverências para o piloto que enxergava naqueles gestos um esboço de reza. Sentiu-se bem com aquilo, afinal, não era diferente de como se sentia em relação a eles. Havia triunfado numa situação hostil, utilizando um artífício que só poderia enganar as pessoas mais primitivas da face da Terra, aqueles devotos de crenças e superstições infundadas, baseadas no que havia de mais ridículo e pitoresco. Claro que ele era superior e mais claro ainda que eles lhe deviam respeito por tudo que representava: a civilização, o progresso, a ciência. Se o reverenciavam por outra coisa, era um mero detalhe. Na cabeça do piloto só havia lugar para os pensamentos dos que vencem, dos que contam a História a seu modo, da sua perspectiva. Aprendera cedo que a realidade era uma ficção comungada pela maioria, nada mais. Uma construção unilateral da verdade. Um ilusionismo para entreter a opinião pública.
Sentiu fome ao ver um belo pernil de porco do mato e caminhou, com a solenidade e distinção da posição recém alcançada, em direção à comida, sendo gentilmente barrado por um homem com uma lança e um sorriso no rosto. Esperneou alguns desaforos mas o nativo só fez rir da cara vermelha do piloto e contou, como quem passa para frente uma piada, aos   outros lanceiros Todos desataram a achar graça e isto enfureceu o piloto, que tentou furar o bloqueio, sendo facilmente controlado por um dos homens e conduzido com serenidade até o centro do círculo.
Desesperou-se de novo: havia tanto que comer ao seu redor que ele podia sentir o gosto, mas aqueles primitivos não deixavam que saísse de jeito nenhum. O ancião ainda estava lá e o piloto foi argumentar com ele através de mímicas, dizendo que tinha uma grande fome que o roía por dentro. O velho então deu um sorriso largo e caminhava para fora do círculo quando o piloto atirou-se aos seus pés, suplicando que lhe desse água ao menos. O velho respondeu-lhe algumas palavras alegres e depois ele mesmo se ajoelhou diante do piloto e cantou o fragmento do hino que ouvira antes; na verdade, cantou seu cântico e apenas para o outro aquelas notas musicas lembravam alguma nação com causas justas - o piloto nem na súplica enxergava o mundo, acostumado que estava à retórica do seu próprio interesse.
Permaneceu no chão, inerte. Estava sem forças para se levantar e atirar-se violentamente contra aquele povo; aquela última humilhação havia extenuado seu corpo já combalido pelo acidente. Não havia o que fazer, exceto observar as pessoas que iam perto dele, faziam uma reverência e depois copiosamente riam na sua cara avermelhada e suja. Algumas horas depois os lanceiros foram substituídos por outros, mas o piloto estava desmaiado e nem notou. Acordou de madrugada com a chuva e bebeu um pouco de água, mas continuava fraco e acabou resignando-se; letargicamente, esperou o fim.
Quanto aos nativos, veneraram aquele homem por cinco dias, até que morreu devido à inanição. Ainda teve forças para dizer em inglês que não era o que pensavam, mas suas derradeiras palavras foram abafadas pelas risadas do povo que assistia sua agonia.

Como são engraçados esses deuses.

(Igor Farias)

(*) Mais um brilhante texto deste colaborador do blog. Obrigado, Igor Farias. 

sexta-feira, 23 de março de 2012

Sexta-feira




I

7h30min. Sexta-feira. Periferia de Belém. Jurunas. Bairro de gente preta, parda, indígena, suja de pele, herdeiros da derrota, de pouca escolaridade, quase analfabeta, um bolsão de miséria, calabouço de força de trabalho abundante e abaixo do preço de mercado. Manhã chuvosa. A vida fica mais lenta, mas sempre agitada. Barulho dos carros, buzinas, vrum-vrum de motores, falta de paciência, cordialidade, educação, “Seu preto filhodaputa, a preferência era minha”, “Caralho, tinha que ser mulher mesmo, só faz merda no volante”. Ônibus queimam paradas, lotados, latas de sardinhas humanas sob rodas desgastadas e sem manutenção, motorista cansado, mal pago e velho, cobrador mascando chicletes, cabelo com luzes, cordões e anéis de aços enfeitam pescoço e dedos, ouvindo tecnobrega no seu smartphone, “Porraaa, motoraaa, a parada já passou, seu filhodaputa”, “Ei, motora, pára o bond, esse filhodaputa não quer pagar passagem, já quer fuder com a gente”. Kombis, vans, aos milhares, é o transporte da maioria, sucatas desconfortáveis, acidentes prévios, perigos do trânsito, pais e mães de família pagando suas contas, pagando suas vidas, “Veropeso, olha veropeso, olha veropeso, olha tem vaga meu patrão”, “Mano, aí na frente, os parcero me deram a letra, os hômi tão metendo a caneta, fuga, fuga”. Bicicletas, muitos economizam o da passagem, velhas, sem tinta, sem freio, são as menores em meio a motores, vento no rosto, chuva na cara, uma atividade física no sedentarismo em massa. Transeuntes, passo a passo, vencem calçadas irregulares, ruas alagadas, pé na água, doenças à vista, cura a prazo, o descaso com o público.  Carros-som gritam a diversão, anunciam o alento, prescrevem a catarse, a alienação como remédio, “Festa da galera da golada, mulher e universitário não pagam até onze horas, muitos baldes de gelada e curtição, muita curtição”, “Baile da mussarada, o fuscão da saudade, só as melhores do passado, só recordação, no São Domingo, cerveja noventa e nove centavos a festa toda, mulheres não pagam até meia-noite”.
Sons frenéticos da barbárie. Ecos altissonantes da sobrevivência. Pessoas vão à escola. Pessoas vão ao trabalho. Pessoas vão batalhar a vida. Todos os dias. Todas as sextas.

“Bora, coronel... acorda, porra”
“Hummm... pera, porra... tô fudido de ressaca, ontem fui beber com os parcero da vila”
“Fouda-se, seu leproso... não quero saber... temos que fazer uma missão hoje”
“Que missão, sujeira?”
“Temos que pagar o bagulho pro Ninja, rapa, ele vem pra derrubar a gente... tu sabes como ele resolve as dívida... na bala...”
“Putaquepariu... é verdade, bora logo meter o bicho... a gente vai se fuder... vamos rodar...”
“Mete o bicho naquelas madames no centro... consegue um troco, paga essa porra... e ainda tomamos umas geladas...”
“Selado... caralho da dor de cabeça fudida... vou tomar banho...”
“Vai, que estou te esperando na rua... na bike”

Sujeira e coronel. Os dois na bike. Em direção ao centro. Sujeira guiava, coronel na garupa – com o 38. Os dois de boné da nike, um de camisa adidas e short do Paysandu, o outro com camisa do Barcelona, do Messi, e bermuda do Remo, ambos com cabelo do Neymar e sandália kenner. Eles queriam salvar a pele, beber, comprar roupas novas e na festa do Super Pop que estava com nova aparelhagem – iam para foder as piriguetes. Afinal, era sexta-feira.




II

8h00min. Sexta-feira. Centro de Belém. Batista Campos. Bairro de pessoas brancas, ascendência européia, bem educadas, bem sucedidas, os que medicam, os que defendem, os que julgam, os que governam, os que vendem uma vida feliz nas propagandas, os que pagam salários irrisórios, aqueles que fundamentalmente mandam, aqueles que fazem da sociedade e sua imagem e semelhança. Saúde, Educação, Saneamento, Segurança são atributos do quadrilátero das mangueiras. Quadrilátero no qual a qualidade de vida faz parte da fatura no final do mês. Direitos humanos comprados à vista. Mulheres bonitas, a beleza dos comerciais de tintura de cabelo, a estética do mercado, cabelos alisados, mechas californianas, franja, aloirados, maças avermelhadas de tanto blush, brilho labial, pó compacto, caricaturas de bonecas, trajes finos e sofisticados, bolsas e acessórios, Victor Hugo, Valentino e Christian Dior, rugas disfarçadas em creme Lancôme, perfume francês Chanel nº5, em dieta permanente, o medo eminente de embarangar, seguem para o trabalho, academia ou faculdade. Adolescentes com os seus fones de ouvido, uniformes de escolas caras, nutridos de leite ninho e farinha láctea, preparam-se para ocupar o lugar legado pela família, a hereditariedade de ser medalhão. Crianças são dirigidas para o maternal bilíngue, acompanhadas de suas babás com o ensino fundamental, suas roupas infantis fedem a amaciante e Jonhson & Jonhson, para aprender a serem pessoas empreendedoras e de sucesso. Homens de barba feita, jovens ou de meia idade, cabelo cortado, alguns barrigudos, cabelos grisalhos, tiozinhos pagando de gatões, meia idade, outros com tórax e braços definidos, tatuagem, cara de mau, jovens, ternos, camisas e calças sociais, trajes casuais ou esportes, Armani, Hering, Overend, pastas ou mochilas, cheiro de Calvin Klein, Ferrari ou Polo, são a imagem daqueles que venceram: os vendedores. Nenhum deles sabe quais os preços são praticados nos ônibus ou kombis da cidade. Se o feijão, o arroz ou a carne estão caros. Os serviços domésticos são terceirizados. Conduzidos confortavelmente em seus acentos individuais, observando alheados pela caverna automotiva de seu grilhão de classe, as sombras que se movem através da janela, as sombras que se molham na chuva que lhe provoca impaciência no trânsito. Aquelas sombras são encaradas da mesma forma que a vida na internet. Ponto comum: a assepsia da interatividade e participação na vida virtual é equivalente ao vislumbrar tedioso e aborrecido por trás do vidro fechado. A realidade é francamente ignorada. Trânsito lento ferve a paciência. Todos chegam aos seus lugares de destino esperando que o dia termine logo.
Happy hour com a rapaziada do trabalho, fofocar com as amigas no salão de beleza, jogar vídeo game com os amigos, encontrar o namorado, foder umas doidas no reggae, ser bancada por algum otário na Louvre. Os interesses são diversos. Afinal, era sexta-feira.

Ricardo e Carolina entram no carro. Dois filhos. Clara, dez anos. João, doze. Estudam perto de casa. Ele, advogado. Ela, administradora. Padre Eutíquio. A caminho de seus respectivos trabalhos: o escritório da família, a empresa do pai. Ouvem Chico Buarque.

“Égua, mas o trânsito hoje tá lento né, amor?”
“Quando ele tá assim, eu prefiro ouvir o velho Francisco”
“Baixa um pouco, tá muito alto”
“Eu gosto muito dessa música... ‘Todo dia ela faz tudo sempre igual, me sacode às seis horas da amanhã’” – Ricardo canta empolgado.
“Eu sei, mas tá alto. Baixa um pouco... é o que peço” – Carolina meio grossa.
“Tá bom. Desculpe” – resignado.
“Não precisa pedir desculpa” – irritada.
Silêncio. Aqueles incontáveis minutos da contrariedade dos casais de longa data.
“Mas hoje esse trânsito está infernal, é só chover que fica assim, mesmo sendo essa chuva chata” – Carolina querendo restabelecer o diálogo de maneira amistosa.
“É, agora todo mundo tem carro nessa porra, não se fazem mais pobres como antigamente” – sendo engraçado para agradá-la.
“Hahahaha... pelo menos você mantém o senso de humor” – a paz armada se estabelece.
“Alguma coisa tem que se manter nesse trânsito”
“Viste as notas da Clarinha?”
“Vi. Vou falar com o João para ajudá-la. Vou acompanhar também. Mas acredito que deva ser algum problema com a professora de História, pelo que vi, ela foi muito rigorosa”.
“Eu também acho. Ela não precisa do passado. Precisa de números”
Ricardo gosta de História. Mas não falou nada. Sem mais contrariedades.
“Hoje o dia vai ser cheio. Já estou atrasada. Estou com o dinheiro para fazer o pagamento do pessoal lá do trabalho. Detesto ter que carregar dinheiro que não é meu”
“Eu já te falei para não te submeter a isso”
“Eu sou de confiança, sou da família”
“Sempre a tua família”
“Enfim, são problemas do meu trabalho. Não vou discutir mais uma vez isso contigo. Não quero que o que está ruim, fique pior. Mudemos de assunto”.
“Certo. Mudemos”
Silêncio. Novamente, o silêncio.
O celular de Carolina toca. É do trabalho. Ela diz que está no trânsito. Fica um pouco mais tranqüila. Já está justificada.
“Agora, conseguiu resolver?”
“Sim. Eles entenderam. O trânsito é igual para todos”
“Menos mal” – escolhendo as palavras. Sabia a mulher que tinha. Estava cansado.
“Depois quando chegarmos em casa, quero que me tires uma dúvida de direito tributário. Tenho que passar nesse concurso. Aquilo tudo é muito chato e complicado”
“Tá bom, tiro sim. Quero que esse dia acabe logo. Essa semana foi cansativa. Quero descansar”
“Eu também”

III

Sujeira e coronel assaltaram três carros. Mataram duas pessoas. Sujeira, mais corpulento, é rápido em pedalar. Coronel, com o dedo forte, é ligeiro no gatilho. Deu dois tiros na cara. Pá, pá. O bicho foi gordo: dinheiro, alguns livros, câmera digital, notebook, tablet e vários smartphones.  Os livros jogaram fora. Não tem valor, não valem nada. Os demais objetos já sabiam com quem atravessar a bom preço. Almoçaram satisfeitos na casa do coronel. Dormiram felizes. Marcaram no fim da tarde o pagamento do Ninja. Coronel levou o 38. Tudo estava dando certo, achou que deviam desfrutar da sorte. Estava certo. Era uma sexta infeliz para Ninja. Baixa nas vendas, sem apoio, sem armas, sem moral. Foi inevitável. Três tiros. Pá, pá, pá. Coronel pagou a dívida com sangue. Sujeira ficou atônito e aliviado. Era ele ou eles. Era dia dele. Foram para casa. Tomaram banho, vestiram a melhor roupa, o melhor perfume. O Super Pop e as piriguetes os esperavam. Foi derrame de gelada e muitas piriguetes fodidas.  Sexta de sorte, vingança e putaria.
Carolina chegou no tempo previsto ao trabalho. Tomou café. Conversou com o pessoal do RH. Marcou duas reuniões. Almoçou cansada, engoliu tudo. Fez os pagamentos. Levou a tarde toda. Chegou em casa, arrumou algumas coisas. Ricardo ainda não havia chegado. Ficou vendo algumas coisas na internet. Clara estava no seu quarto ouvindo música. João jogava vídeo game na sala. Ricardo chegou. Beijou os filhos, disse que lhes amava mais que tudo. Eles estranharam. “Eu também, papai” – disseram, indiferentes. Olhou para Carolina da porta do quarto. Ela percebeu sua presença. Viu que havia algo diferente no seu olhar. “Viste a minha mensagem” – disse Ricardo. “Não, nem vi direito o meu celular o dia todo, meu dia foi cheio” – ela disse, procurando o celular. A mensagem dizia: “Eu te amo, meu amor”. “Hoje, depois que te deixei no trabalho, quando estava a caminho do meu, um casal foi morto no carro que estava na minha frente por dois marginais na bicicleta” – disse Ricardo com lágrimas nos olhos. Carolina correu em sua direção, abraçou-o com força e beijou como a muito não fazia. Amaram-se naquela sexta como a muito não se via ao som de “Valsinha” do Chico. O sábado amanheceu em paz.
Todos naquela noite agradeceram a Deus por mais uma semana.
Por mais uma sexta-feira.
(Felipov)














quarta-feira, 21 de março de 2012

Dez segundos




Se matamos uma pessoa somos assassinos.
Se matamos milhões de homens,
celebram-nos como heróis”
(Charles Chaplin)

I

Só nós dois no quarto. Eu, em pé. Ele, deitado. Aproximei-me da cama. Seu olhar era de resignação e ódio, depois que ouviu aquela prolixa palestra ao pé da cama. O médico e os alunos saíram do quarto. Começou a lagrimar. Seu rosto ficou vermelho. Algum sinal de vida.
Calados. Dez minutos emudecidos. O reconhecimento. O silêncio da distância. O silêncio das lembranças. O silêncio da memória.
“Por favor... um pouco d’água” – ele solicitou com a voz hesitante, embargada pelo pranto calado, que identifiquei dos tempos idos.
Do lado da cama havia uma jarra cheia de água e três taças. Enchi uma delas pela metade. Cheguei perto dele, inclinei-me, apoiei um dos meus braços em sua costa e pescoço, aproximei o copo da boca. Ele bebeu tudo.
“Obrigado”
“Que isso, não precisa agradecer”
Afastei e sentei em uma cadeira do outro lado da cama. O meu rosto ficou a altura dos seus olhos. Conversamos olho no olho, sinceramente, fracamente.
“Agora que te vi... foi automático lembrar a universidade... apesar daquele monte de idiotas funcionais de calculadoras científicas nas mãos... existiam pessoas com as quais se podia conversar, estudar, compartilhar... eras uma dessas...”
“Vi o teu caso na televisão. Fiquei indignado com a exposição. Lembrei-me dos tempos da universidade também. Vim ver como estavas”
“Tenho pensando há dez anos como estou...”
“Dez anos...”
“Casaste? Tens filhos? Família? Trabalhas?”
“Não. Moro só. Estou namorando há dois anos. Nome dela é Isabela. Trabalho a cinco anos naquela construtora que começamos a estagiar”
“Ahh... sim... lembro que era bom trabalhar lá...”
“É... tem problemas como qualquer trabalho...”
“Depois do diagnóstico, Fernanda ficou três meses do meu lado... foi embora... depois de três anos de namoro... Não a culpo, é assim mesmo... talvez eu fizesse o mesmo no lugar dela”
“Eu já ia perguntar por ela”
“Sem problemas”
“Sabe, quando vi a reportagem, a primeira coisa que lembrei foram as conversas de bar, naqueles copos sujos perto da universidade, o bar do Jorge era muito bom... Lembra daquela vez que ficamos bebendo até tarde com aquela galera da História, ouvindo Belchior, e não tinha mais ônibus e fomos dormir em uma sala da universidade... bons tempos...”
Silêncio.
Ele ficou calado, olhos vermelhos, algumas lágrimas - novamente. Não devia ter falado isso. Acho que foi um erro essa visita. Falei demais. Como sempre.
“Estás bem?”
“Muito obrigado por ter vindo... tua visita está sendo muito importante para mim”
“Eu vim pelas lembranças de nossa amizade”
“Por favor, um pouco mais de água...” – interrompeu.
Fiz o mesmo movimento da primeira vez que lhe dei de beber. Senti nisso uma sensação de amizade restabelecida, de solidariedade genuína, de empatia legítima. Senti-me bem por está ali, ajudando um velho amigo.
“Obrigado mais uma vez... desculpe te interromper...”
“Sem problemas. Eu falava da lembrança da nossa amizade”
“Ahh... sim... claro. Nestes últimos anos, tenho vivido da memória. Em função das lembranças. Da vida antes do acidente. Das peraltices da infância, o pique-esconde com os primos, as brincadeiras de roda, de mexer na terra, subir nas árvores, comer manga e goiaba no sítio dos meus avós... o futebol da adolescência com o pessoal do conjunto... as bebedeiras e sacanagens nos tempos da universidade...”
“Sim, sim... sempre é bom recordar os momentos bons...”
“Não preciso nem dizer que quero morrer...”
“Como?”
“É isso mesmo que ouviste”
“Pensei que tinhas aceitado esta condição”
“Jamais”
“Compreendo”
“Não compreendes... nem eu compreendo direito depois de todos esses anos... apenas sei que estou aprisionado nesta cama há dez anos, lúcido, como podes observar... e com um desejo insuperável de morrer” – articulou a fala de maneira devagar e com a voz cambaleante, mais vigorosa e profundamente lúcida.
“Pode parecer uma pergunta óbvia e idiota: mas ainda não conversaste com os teus pais e o médico?”
“Conversei... mas não há diálogo possível com eles”
“Não?”
“Eles são profundamente cristãos... acreditam que me salvei por um milagre, que há algum propósito divino neste meu sofrimento...”
Tosse. Tosse. Tosse.
“Desculpe... um pouco mais de água... não estou acostumado a conversar tanto... hahaha...” – uma risada discreta.
“Claro, já vou pegar... um minuto”
Pela terceira vez fiz o mesmo movimento de lhe dar água. Com a obrigação instintiva de que garantir o conforto e o bem-estar, de restituir-lhe naquela breve conversa os anos de ausência.
Breve silêncio.
“Continuando... eles acreditam que talvez me cure e que o meu caso possa fazer avançar os estudos sobre neurologia e salvar muitas pessoas...”
“Há essa possibilidade. Pelo menos, a televisão está vendendo bem essa idéia”
“Então, eu sei disso... eles pedem para que eu não seja mesquinho e egoísta, que o meu sofrimento pode salvar muitas vidas... mas eles falam isso porque não estão no meu lugar, é muito fácil ser bom e compreensivo quando não se está sofrendo nesta condição na qual estou... eu realmente queria apenas morrer... deixar de existir...”
“É uma situação muito complexa mesmo...”
“A resposta deles é sempre a mesma: isso não pode acontecer em hipótese alguma, porque quem dá a vida é Deus e apenas Ele pode tirar... eu peço todas as noites quando estou só neste quarto que Deus me mate... se Ele é a bondade e a misericórdia, que Ele simplesmente me mate!” – disse com uma voz triste, forte, quase chorosa.
“Meu caro amigo... toda essa situação é muito complicada... e não sei o que posso fazer por ti, além, é claro, de lamentar toda essa situação...” – afirmei com profundo pesar.
“Podes sim”
“O que?”
“Ser a minha mão e acabar com tudo isso” – disse com um leve sorriso no rosto.
“Como assim? Queres que eu te mate?” – fiquei assustado com está idéia.
“Calma. Pense na idéia. Volte daqui a uma semana e me diga a tua posição” – com uma voz eloqüente e serena. Um tanto esperançosa.
“Tá bom. Vou pensar...”
“Até mais”
“Até”
Peguei em sua mão antes de sair. Mole, branca e gelada. Um cadáver – pensei.

II

Foram necessários apenas dez segundos. A cada dez segundos pessoas morrem, vivem, matam, trepam, compram, choram, amam, mentem, enfim, vivem, existem, são, a vida na qual cada um depende tão somente de suas forças, energias, inteligência para mantê-la no seu transcurso natural de nascer, crescer e morrer.
Dez segundos sem oxigênio. Uma vida ceifada. Diagnosticado há dez anos. Estirado no catre, aprisionado naquele metro quadrado de solteiro, confortável, lençóis limpos e marcados pelo seu corpo, que nos dias de calor exala o odor do seu suor nauseabundo de quem já morreu e permanece vivo, e nos dias de frio, as suas carnes mortificadas jazem no antecipado descanso da matéria orgânica que já tarda em transformar.
Obrigado a viver naquele corpo no qual não há vida, é submetido a essa morte antecipada, em vida, em consciência, em lucidez, em razão, na manutenção do seu juízo, que perdura, que prolonga, que perpetua essa triste condição de vegetal humano. Depois que soube do seu acidente, visitei-o em duas oportunidades.

III

Quando cheguei ao quarto, havia um médico falando em tom professoral e técnico e quatro estudantes ouvindo atenciosamente e anotando tudo. Olhei para a cama e vi aquele farrapo humano, pálido, com uma aparência de cadáver, que ainda mantinha o olhar inteligente e altivo, talvez o único aspecto que se manteve daquele engenheiro talentoso e promissor.
“Caros alunos, vocês tem o privilégio de acompanhar este caso raro na medicina mundial. Nunca dantes registrado na literatura médica. O ineditismo reside em que qualquer acidente vascular cerebral, dependendo da sua intensidade, causa danos irreversíveis e primordiais a todas as funções psicológicas superiores, como o pensamento e a linguagem, e de maneira secundária compromete há tantas outras funções motoras dos membros superiores e inferiores. Não obstante, a literatura médica afirma categoricamente isso: todo acidente vascular cerebral causa danos neurológicos de maior ou menor grau. E no caso aqui em questão, que foi um acidente de grande intensidade e complexidade, não houve qualquer dano nas suas funções psicológicas superiores, no caso, o pensamento e a linguagem se mantêm em padrão de normalidade. No entanto, seus membros superiores e inferiores foram totalmente afetados. Perdeu todos os movimentos de pernas e braços. Ficou tecnicamente paraplégico. Ele precisa desses aparelhos que auxiliam na sua ventilação respiratória. Não pode ficar, em hipótese alguma, sem esse auxílio, senão é morte instantânea. Por isso, é fundamental para a manutenção de sua vida que estes aparelhos fiquem ligados” – parou de falar e fez um gesto com a cabeça, permitindo que um dos alunos fizesse alguma pergunta.
“Doutor, quais os estudos estão sendo realizados para investigar as razões explicativas de tal ineditismo?” – perguntou se preocupado em dizer algo inteligente.
“Boa pergunta, meu caro. Então, estou orientando duas teses de doutorado e duas dissertações de mestrado que tem esse caso como objeto de estudo. Uma perscruta acerca dos danos causados na anatomia dos membros superiores pelo acidente; e a outra analisa aspectos fisiológicos dos membros inferiores. Por sua vez, o estudo que trata especificamente da manutenção das funções psicológicas superiores ficou sob a minha responsabilidade, era conditio sine qua non a experiência e o largo conhecimento sobre neurologia para realizar um estudo desta amplitude. Nesse sentido, apenas eu, nacionalmente, e dois estudiosos, um russo e outro alemão, temos a capacidade de fazer esta investigação. Estamos querendo no ano que vem iniciar a publicação dos resultados preliminares destas investigações, de maneira conjunta. A partir destas publicações, pretendemos apresentar um novo paradigma investigativo para os estudos e a diagnose em neurologia. Já ia me esquecendo, as dissertações, por fim, fazem algumas discussões pontuais a respeito da diagnose em neurologia e quais os efeitos que a exposição prolongada a psicotrópicos lícitos e ilícitos podem contribuir para a evolução de um quadro de acidente vascular cerebral” – na impostação de voz intrínseca a esses seres mitológicos que reinam no seus feudos epistemológicos, com a sua peculiar autoridade escolástica, habitam confortavelmente os montes olímpicos universitários.
“Doutor, acredito que falo em nome dos meus colegas, agradecemos muitíssimo a oportunidade de podermos participar por meio do nosso estágio e residência médica no acompanhamento deste caso tão importante para resolução de vários impasses investigativos no campo da neurologia. Muito obrigado pela confiança” – com aquele tom obediente e agradecido pela simples subordinação, característico dos lacaios aspirantes a tubarões.
“Meus caríssimos, eu dei esta oportunidade porque sei que vocês têm capacidade e disciplina para aproveitá-la. E os melhores trabalhos que forem produzidos por vocês, eu já digo de pronto, vão ter um lugar nesta publicação coletiva que estou planejando. Então, dediquem-se ao máximo e coloquem os seus nomes nos Anais da História da Medicina como partícipes do grupo que revolucionou os estudos em neurologia. Não precisam agradecer. Eu odeio agradecimentos. Apenas façam por onde e desfrutem dos seus méritos. Acredito que essa sessão de acompanhamento está encerrada. Peço apenas discrição quanto ao que disse da publicação. Ela está em tramite de sigilo. No mais, estão liberados” – sentencia como uma divindade orgulhosa de si mesmo depois da concessão de uma graça imerecida as suas indefesas criaturas.
Os alunos fizeram um gesto de positivo com a cabeça de maneira uniforme e orquestrada. O doutor cumprimentou-me de modo educado e saiu do quarto, e os alunos um após outro seguiram atrás dele.
Restou apenas eu e ele no quarto.


IV

Conheci-o na universidade, há uma década. Cursávamos Engenharia Civil. Participávamos do mesmo grupo de estudo. Alguns gostos em comum, algumas conversas de bar, listas de exercício vencidas, cálculos e mais cálculos, projetos realizados, aquela amizade compulsório dos bancos universitários.
Vi o seu caso ser curiosamente abordado em uma reportagem na televisão. Havia sofrido um acidente vascular cerebral muito raro, um caso totalmente inédito para a medicina contemporânea. A reportagem na linguagem sensacionalista inerente aos meios televisivos transformou em algo bizarro e extemporâneo aquela tragédia pessoal, apresentando o caso como uma possível solução para os problemas relacionados a graves lesões neurológicas, legitimando totalmente o sofrimento daquela cobaia em favor da humanidade.
Fiquei indignado em ver aquela situação, aquela exposição estúpida da vida humana, aquele embrutecimento da vida na era da cibercultura. Por uma obrigação quase moral, impulsionado pelas boas lembranças, fui ver o caso de perto. Apresentei-me aos seus pais, um casal elegante, ela médica, ele advogado, bem sucedidos, envelhecidos por dez anos de sofrimentos, abnegação e esperança.


V

Uma semana se passou. Fiquei com esta idéia fixa. Vivi a minha vida. Trabalhei. Estudei. Li meus livros. Saí com meus amigos. Bebi. Fiquei bêbado. Fumei. Trepei. Briguei. Discuti. Fiquei só. Paguei contas. Fiz almoço. Comprei uma pizza para janta. Enfrentei trânsito. Fui ao cinema. Namorei. Fui roubado. Fiquei puto. Caguei. Mixei. Peidei. Fui ao dentista. Lavei roupa. Planejei duas viagens. Planejei minha vida. Contudo, a idéia fixa permaneceu. Tomei uma decisão.
Voltei exatamente uma semana depois. O médico estava lá monitorando os aparelhos e fazendo notas. Entrei no quarto. Ele cumprimentou-me educamente, formal e sóbrio. Logo depois saiu.
“Qual a tua decisão?”
“Vou ser tua mão”
“Deus ouviu minhas preces. Obrigado”

Tomada. Desliga. Liga. Dez segundos. Fim.
“Ai, meu Deus, não podias levar meu filho!!! Não podias!!! O que vai ser de mim agora, meu Deus!!??” – uivos, gritos, pranto de desespero da mãe.
“Rápido!! É urgente!! Mandem para cá uma ambulância! É caso de vida ou morte!!” – gritava o médico ao telefone.
Fui herói.


VI

A vida continuou. Ela sempre continua. Indiferente, violenta, frenética, injusta e bela. Enterro discreto. Ele queria ser cremado. Dez pessoas compareceram. Chorei frente ao irremediável. Não há heróis na vida. Há sobreviventes.

(Felipov)

sexta-feira, 9 de março de 2012

Coletivo




Belém. Chuva. Almirante Barroso.
As chuvas que parecem suspender o tempo e a ordem do mundo, quando estou em casa, aquele cheiro de umidade familiar, provocando-me calma e preguiça, as lembranças de tempos remotos que se esvaíram na memória, de dormir eternamente nos lençóis quentes que acalentam a solidão.
No entanto, na condição de transeunte, é apenas o presente terrificante, a vida presente, o caos urbano com mais um obstáculo a ser vencido, dentre os vários que colocam em xeque a minha existência.
Dia após dia. Corro, com dificuldade, fugindo as poças d’água, desviando das pessoas, segurando meus pertences, e carregando o meu sobrepeso de pessoa sedentária. O sedentarismo das vidas consumidas pela era da internet.
8h30min – cheguei atrasado. Mais uma vez. Preguiça. Trânsito. Vida de merda.
Trabalho - relatórios, documentos para examinar, pessoa para agüentar. Paciência.
12h – almoço. Refeição engolida em duas horas indigestas de uma alimentação de proteínas, gorduras e carboidratos. Mal cozinhada. Mal mastigada. Mal comida.
18h – fim de expediente. Menos oito horas de vida.
Pé esquerdo no degrau.
Entro no ônibus. Lotado. Idosos, mulheres, crianças. Homens, jovens, trabalhadores. Negros, brancos, pardos. Cristãos. Uma passagem os equivale sentados ou em pé.
“Boa noite” – para o motorista. Sem resposta. Um olhar de desdém. Forço a educação alheia. Divirto-me.
Calor, gente mal educada, a vida em contradição. Em pé, equilibrando, cambaleando, ora para cá, ora para lá, penso na minha vida de assalariado, pessoas me olham, devem pensar nas contas a pagar, na roupa por lavar, no futebol com os amigos, que tem que ir a igreja, ou apenas chegar em casa, assistir a televisão e dormir.
Olho as pessoas, apenas olho, penso nas oito horas diárias, no parco salário, os filhos para sustentar, a mulher para agüentar, mandar o chefe para a puta-do-caralho-da-porra-escrota-que-o-pariu, que não fiz nada da vida, sinto-me velho, cansado e inútil, sem ânimo, sem iniciativa, sem expectativa, distraído e com fome, no leva-e-traz do trânsito. Pessoas entram, levantam, sentam, saem. Eu sento, com os pés doendo.
Entram os vendedores. Andam todo o corredor do ônibus, já transitável, com o entra e saí de pessoas, param de frente para os passageiros. Ajeitam a postura. Adaptavam a voz de acordo com o semblante dos clientes. Demonstram com grande habilidade suas modernas técnicas de venda e marketing social, eloqüência na exposição do produto, persuasão sobre o preço, justificativas sobre o ato. Rigorosamente padrão.
Vendem todo o tipo de porcarias saturadas de glicose ou concentradas de sódio que em longo prazo provocam obesidade, hipertensão, diabetes, cáries, ou qualquer outro tipo de complicação cancerígena derivado da nossa vida plástica, prática e pragmática na sociedade do hiperconsumo.
Outros vendem as suas doenças, a operação que ficou purulenta, a perna que não cicatrizou direito, a filha que precisa de remédio para a alergia que virou chaga, a mãe que é cardíaca e precisa de remédio regularmente, o pai que tem reumatismo e não pode trabalhar, o filho que nasceu com problemas congênitos e não tem tratamento, enfim, a lista infindável de doenças causadas e perpetuadas pela pobreza.
Tem aqueles que vendem a sua condição de desvalidos, de ex-presidiários, ex-prostitutas, ex-trabalhadores, que poderiam está roubando, matando, estuprando, destruindo a sociedade civilizada da qual eles são a corporificação do seu avesso, a razão de sua opulência, a sustentação da ordem, o sofrimento divino para a vida eterna, a faustosa vida terrena para quem não quer ser eterno. Fixei o olhar, ouvindo-os.

“Boa noites, senhores passageiro... desculpe atrapalhar sua viagem... a vida não tá fácil pra ninguém, estou aqui vendendo algumas deliciosa bala... chicretes... pé-de-moleque... e a tradicional paçoquinha... O aicequis tá um por setenta e na promoção dois por um real... o crocato é um por setenta e dois por um real... e a paçoquinha é um por quarenta e três por um real... senhores passageiro... que puder ajudar o meu trabalho eu fico muito agradecido e que deus abençoe e quem não puder ajudar... que deus abençõe e dê boa viagem... boa noite...”

Eu ouvi apenas o legado de cinco séculos de fardo histórico vendendo a sua miséria para consumidores de rendimentos mínimos, aquelas migalhas jogadas aos vencidos representam o nosso nível de consciência. Os mortos legam sua miséria aos vivos. Os vivos compram sua consciência para conviver com sua antítese. O coletivo tilinta as moedinhas das dívidas sociais.

(Felipov)

terça-feira, 6 de março de 2012

Galinhas e galos, galináceos (*)



 
 


 
Meu avô disse pra mim que tudo que vive morre. Ele disse isso quando tava torcendo o pescoço duma galinha lá no quintal. Eu não gostei de ver a galinha morrendo daquele jeito, tava com os olhos esbugalhados e cacarejava sem parar, então virei a cara, mas o vovô disse pra eu desvirar, pra poder ver ele fazendo o que tava fazendo. Eu disse que não sabia que ela tinha que morrer e ele disse, mas você acha que vem de onde aquele prato que a gente come meio dia? Eu não sabia, mas agora sei.

Mas eu não tava feliz então fui falar com a minha vó, eu disse, vovó, por que tudo que vive morre? Ela disse, porque é assim a vontade de deus, meu filho. Então eu falei, mas, vó, se a galinha tem que morrer, por que a senhora dá milho pra elas todo dia? Ela achou graça e disse, meu filho, se eu não der o milho as galinhas vão ficar magrinhas, magrinhas e a gente só vai comer osso. Quer dizer que a gente cria as galinhas pra comer?, eu perguntei e ela disse, sim, meu filho, e eu fiquei cada vez mais curioso e disse, então, vó, por que vocês me criam? Eu vou morrer igual a galinha?

Minha vó tava feliz, mas quando eu perguntei ela fechou a cara e ficou com cara de quem tava pensando em alguma coisa e depois disse, meu filho, a gente não cria os filhos como cria as galinhas, as galinhas não tem nome, não tem família e não tem futuro. E disse ainda, deus fez as galinhas pra que a gente pudesse comer galinha, porque já tinha feito os peixes, os bois, as frutas e os legumes, então ele achou que tinha que fazer outra coisa, senão os homens iam ficar chateados de ter tão pouco o que comer. Mas a vovó era esperta, não tinha respondido. Eu sei o que é uma resposta e ela não me respondeu, resposta é quando a pessoa diz o que a outra perguntou, então pensei que a vovó não tivesse ouvido porque já era senhora e perguntei de novo, mas, vó, e eu? Vou morrer?

A cara da vovó ficou muito fechada e ela ficou com a boca aberta e eu pensei que ela ia dizer alguma coisa, mas não saía nada. Ficava aberta assim, que nem quando a gente brinca de estátua. Então disse, meu filho, eu sou velha, não sei responder essas coisas, pergunta pro seu avô. Então fui lá fora no quintal de novo e meu avô tava com a faca em cima da galinha e tinha muito sangue e ela já não cacarejava. Eu disse, vô, a vovó mandou o senhor me dizer se eu vou morrer. Meu avô largou a faca e ficou me olhando, depois limpou as mãos num pano e me olhou, passando a mão na barba branca. Depois disse pra mim, Ricardo, tudo que é vivo morre, você vai morrer, mas ainda vai demorar um monte de tempo. Aí eu disse, mais que a galinha, vô? Ele riu, sim, meu filho, a galinha não vive muito, os galos acabam vivendo mais. Aí eu disse, mas vô, por que os galos vivem mais? Aí ele disse, é porque ninguém quer comer a carne do galo, pouca gente faz, porque é uma carne dura. Então eu perguntei, mas, vô, é tão dura assim que a sua faca não corta? Ele disse, não, a minha faca é uma boa faca, bem amolada. Então eu disse, vô, quando é que eu vou ter uma faca?, e ele me disse que quando eu fosse homem eu teria uma faca e poderia fazer o que eu quisesse e ter o que eu quisesse e eu perguntei, até uma estrela, vô?, e ele disse, até uma estrela, Ricardo, e eu fiquei feliz porque não ia demorar muito.

Mas tinha uma coisa martelando a minha cabeça, que nem quando um garfo arranha um prato, aquele barulho que faz dar dor na cabeça. Quando a gente tava almoçando eu olhei a galinha e nem parecia mais ela. Já tava depenada e sem cabeça e sem bico e vermelha e gostosa. A vovó botou a coxa no meu prato porque ela sabe que eu gosto mais da coxa, mas eu queria falar o que tava na minha cabeça e disse, vó, a senhora e o vovô me criam, né? Ela disse, sim, meu filho. Então eu disse, e cadê meu pai e minha mãe? Todo mundo tinha menos eu. Até o moleque pretinho filho do Tomás, empregado do vovô, tinha pai e eu não tinha, tinha só vô e vó. O meu avô afastou a cadeira, fazendo muito barulho, e se levantou e a vovó disse, meu filho, seu pai tá viajando, eu disse, mas pra onde, vó?, ela disse, pra longe, meu filho. Meu avô tava com cara de enfezado e disse, foi pra onde nunca deveria ter saído. A minha vó então olhou pra ele e disse, Manoel, larga disso, olha o menino, e voltou a olhar pra mim e sorriu e me abraçou e disse que o meu pai não ia demorar, mas não disse nada da minha mãe.

Um tempo depois eu tava no quintal botando sal nas lesmas. Elas iam andando pelas folhas podres e eu corria atrás delas e quando achava uma eu botava o saleiro em cima dela e ficava esperando ela derreter. Depois me cansei e fui pra casa esperar a chuva. Quando chove é muito bom, porque eu posso pegar as formigas no quintal e botar num grande folha e fingir que é um barco e botar na vala e seguir até o bueiro. Nesse dia eu tava sentado na sala e vi um caderno e comecei a desenhar, mas senti um cheiro de coisa queimada e fui na cozinha. Tinha um monte de fogo no fogão e uma panela pegando fogo e a vovó tava caída no chão, então eu corri e chamei o vovô no quarto, ele tava dormindo, mas acordou depressa. Ele veio e pegou um balde de água e jogou e o fogo virou um monte fumaça e depois foi ver o que a vovó tinha, só que acabou deitando perto dela e chorou muito alto.

Apareceram então os peões do vovô na casa e alguns dele pegaram o caminhão do vovô e foram até a cidade. Meu avô ainda tava no chão, abraçava com força a vovó e falava alto um monte de coisa que eu não sei dizer. Gritava muito alto e chorava. Ele disse pro Tomás me levar pro barraco dele e eu fui e fiquei brincando com filho dele o resto do dia e dormi e só de noite o Tomás me trouxe.



*


Quando cheguei em casa a tia Lorena já tava lá e me abraçou e também tava chorando. Tinha um monte de gente e a casa tava pequenina. A tia Lorena me deu banho e me passou talco e me vestiu com a roupa que eu tinha ido no batizado do filho dela que eu nunca mais tinha visto. Ela chorava e chorava e seus olhos já tavam vermelhos de tanto chorar. Eu disse pra ela, não precisa chorar, tia Lorena, ela riu e me abraçou e o abraço dela era tão cheiroso quanto o da vovó e eu disse, tia Lorena, seu abraço cheira igual o da vovó, e ela chorou mais ainda e me abraçou e não conseguia dizer nada. Toda vez que ia dizer eu via ela lagrimar e chorar e chorar. Abracei a tia Lorena forte e ela me vestiu e me levou pra sala.

Na sala tinha um monte de gente cantando e eu perguntei pra tia Lorena, tia, por que esse povo tá com tanta vela?, tem luz aí, aí ela riu e me disse, Ai Ricardo, eu queria ter seis anos também. Eles tavam cantando e falando baixo e tomando muito café, todo mundo de preto. Então eu vi no centro da sala, bem na mesa a vovó em cima, coberta com um pano cheio de furinhos, então disse, tia, o que a vovó tá fazendo lá? Ela não ouviu e me levou até uma cadeira e me fez sentar lá e foi conversar com umas senhoras com cara vermelha. Eu não consegui ficar lá como ela tinha me mandado então saí de lá e fui até lá fora, porque lá dentro tava muito quente. Acho que eram as velas.

Meu avô tava sentado numa cadeira de balanço, fumando. Quando me viu, me fez um sinal e deu um sorriso. Disse, vem aqui, Ricardo. E eu fui e ele puxou uma cadeira e me fez sentar lá e disse pra mim, você é a cara do seu pai, sabia. Então ele pegou uma garrafa que tava no chão e botou um pouco do que tava dentro num copo e depois bebeu tudo de uma vez, estalando a língua no final. E eu disse, vô, to com sede, e ele disse, mas dessa água você não pode beber. Então eu perguntei, só quando for homem?, e ele disse, sim, eu disse, quando for homem eu posso ter uma faca e beber dessa garrafa?, ele disse, sim, Ricardo, e apontou pro céu que tava estrelado e disse que uma delas ele tinha comprado pra vovó e outra pra mim.


(Igor Farias)


(*)Mais um texto do colaborador deste blog. Obrigado por mais uma brilhante contribuição.