sábado, 24 de setembro de 2011

Os transeuntes





Rato de rua
Irrequieta criatura
Tribo em frenética proliferação
Lúbrico, libidinoso transeunte
Boca de estômago
Atrás do seu quinhão

(Ode aos ratos – Chico Buarque)



Tenho a impressão de ser observado ostensivamente pelos juízos de valor alhures. Pelos piscares de olhos invejosos, maliciosos, perscrutadores. Pelos rabos de olhos que vêem sem querer ser vistos.  “Perceba, observa como te olham, desdenham de ti”. Olham e dissimulam, a um só tempo. Sinto-me acossado. Perseguido, acuado. Por que me olham? Qual a razão de tanta observação? Todos me atacam com os seus funestos olhares indiferentes.

“Todos querem ser iguais a ti”. “Ou julgam-te tão ridículo que não devias desrespeitá-las com a tua presença infame”. “És um ínfimo inseto, asqueroso que não merece a menor consideração da hipócrita atenção humanitária da ética cristã ocidental”. “Ninguém quer saber se ‘Os irmãos Karamazov’ foi o melhor livro que lestes na vida, se gostas muito de literatura russa, se García Marquez é dos escritores de língua hispânica o teu favorito, se aprendestes o que é o amor no ‘O amor nos tempos do cólera’ e a solidão com os Buendía do ‘Cem anos de solidão’, ou se não tens tempo para ler Dom Quixote e o Fausto”.

“Realmente ninguém se importa se gostas de bolo de macaxeira, purê de batata com picadinho, de ler deitado na rede ouvindo Baden Powell e tomando café”. “Ninguém quer saber se não sabes nadar, se não sabes tocar violão ou dirigir, se tens medo de ser assaltado, de perder o emprego, de ficar sem família, de ter um câncer, daquela dor no peito que vai e volta de vez em quando, da dor de cabeça que vem sempre antes de dormir, da gastrite virar úlcera, dos meus graus de miopia virar cegueira, de ficar sem dentes por conta das minhas cáries e a falta de paciência e tempo de ir ao dentista, de simplesmente desprezar uma vida longeva e saudável”.

“Ninguém quer ter ciência das discussões que tivestes com Deus, e percebestes o quanto ele é preconceituoso, egocêntrico, intolerante, machista, e pouco afeito ao questionamento e ao diálogo, com mania de querer ser certinho, asséptico, melhor que os outros, orgulhoso, de ter um sério complexo de inferioridade por não ter conhecido seus pais, em razão disso exige tanta adoração e gratidão pela vida que deu sem qualquer contrapartida, e, ao mesmo tempo, que o Diabo é um grande camarada de conversas de bar, que gosta de samba, futebol, mulheres, e de implicar com Deus”.

 “Quem se importa em saber se és comunista, se desprezas os liberais, odeia a social-democracia, se ficas com muita raiva com o analfabetismo político e procuras os meios de fazer com que essa sociedade seja equitativamente melhor para pessoas que não se importam nem um pouco, que ignoram aquilo que seja diferente do seu mesquinho interesse individual”.

“As pessoas não dão à mínima se o amor da sua vida foi embora com outro, se chorastes até ficar com pena de si mesmo, se a dor foi tão grande que dormir não era o bastante, beber não era o bastante, morrer não era o bastante para esquecer, e de ter conhecimento que tal amor ainda vive em ti, que ainda pulsa forte, que irracionalmente ainda tem lugar em um coração cego de esperanças”.

“Ninguém se importa se tens apenas seis meses de vida, ou setenta primaveras pela frente, se queres matar todos a tua volta, ou ser morto estupidamente em qualquer esquina da cidade, se gosta de ver o sofrimento alheio daquelas pessoas que pedem dinheiro pelas ruas ou vendem seus corpos nas encruzilhadas, não se consterna com aqueles que sobrevivem com um salário mínimo”.

“Eu não me importo, tu não te importas, ele não se importa, nós não nos importamos, vós não te importas, eles são se importam”.

Todos me vêem, mas não me olham. Não se importam: os transeuntes não se importam.

(Felipov)

4 comentários:

Anônimo disse...

Bobinho, adorei. Acho que é o teu texto que eu mais gostei, depois do Maria Flor, é clado xD
Lindo, principalmente, porque és tu. Totalmente tu - e eu fico muito feliz de conseguir perceber tão bem cada pedaço de ti nessas linhas. Encantador. Mil beijos e saudades. ^^ Rafa.

Anônimo disse...

- Sem dúvida alguma, expresso que este foi o melhor texto, que já li aqui. Avassaladoramente genial, Felipov.

Nicoly Uchôa.

Anônimo disse...

"os transeuntes não se importam." Isto lembrou-me muitoo poeta português Cesário Verde, mostrando a velha Lisboa... Felipov, meu querido, é brilhante o ponto de vista abordado por você, essa ideia do olhar além do que está diante do nariz, olhar a alma, olhar de poeta e de criança, como Dante mesmo já afirmou na Divina Comédia, olhares alhures, únicos...que os transeuntes, de fato não tem... É Singular e sensível, muito bom!

=]

Juliana Brandão disse...

Arrepiei-me, Chato Incompreendido! ;)
Muito bom!

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