Meu nome é Ivan e sou numismata. Com efeito, aposto que as senhoras e os senhores nunca ouviram falar dessa profissão, como todos os brasileiros burros que me cercam!
Meu nome é Ivan e trabalho com a esplêndida ciência das moedas. Melhorou? Não?! Isso porque eu, formado em História, com mestrado na Universidade de São Paulo, doutorado em Yale, pós-doutorado na França, sou simplesmente um anônimo. Um merda que boia na fossa a céu aberto que é esse país, cuja educação precária e a péssima memória para qualquer coisa que não seja futebol e carnaval fazem com que pessoas de nível incontestável, incólume reputação e cultura elevada, sejam preteridas em razão dessas baianas que chacoalham seus corpos fabricados em cima de carros de som.
Meu nome é Ivan e estou realmente enfurecido com a situação.
Meu nome é Ivan, mas bem que poderia ser Ernesto, Paulo, João, Carlos, Pedro, Jesus, ou o de qualquer outro homem que dedicou a vida a uma coisa que não foi enxergada por seus pares, a uma coisa que sequer seus pais sabiam o que era, a algo que não servia para nada exceto para assunto de pequenas reuniões de profissionais da área e leigos pretensiosos.
Meu nome é Ivan e logo que cheguei da Europa - ah, o Velho Mundo! - fui chamado para dar aula numa respeitável instituição de ensino aqui nessa pátria de tolos. Sim, aquela mesma cujo reitor comprou uma lixeira de três mil reais. Lembro-me bem da minha apresentação no departamento de Arqueologia: um bando de bolsistas inúteis com suas barbas, chinelos, bermudas e caras de frequentadores de movimentos de nomes risíveis como Ruptura Socialista; professores incompetentes, mais preocupados com verbas do que pesquisa; e gestores corruptos com seus sorrisos intimidantes. Compraram-me um bolo de supermercado e todos apertaram minha mão. Ah, o Velho Mundo! Quisera eu ter permanecido por lá mas não há vagas para numismatas hoje em dia. Havia uma na Romênia, porém prefiro o Brasil, com essa batucada infame, ao traquejo de péssimo odor dos ciganos daquelas bandas.
Apesar de me chamar Ivan, fiquei logo conhecido como “o homem das moedas” e “Tio Patinhas”. Bando de cretinos! Tanto os discentes quanto os docentes falavam abertamente essas alcunhas infelizes. Na Europa não é assim. Lá há ética: falamos dos outros pelas costas, para que a punhalada seja à traição! Não existe esse costume horrível e anticivilizado dos brasileiros, essa avacalhação geral da nação! A Roma dos Césares nos legou o Direito, a estigmatização dos judeus e o Coliseu, mas não só: também o culto à traiçoeira arte de apunhalar pela retaguarda os inimigos! Os brasileiros não respeitam nada mesmo, bando de Neandertais!
Meu nome é Ivan e vou ao banco, ao departamento de trânsito, aos recursos humanos da universidade, ao escritório do plano de saúde, aos guichês das companhias aéreas, às seguradoras, às concessíonárias, às imobiliárias, às livrarias, e ouço sempre a mesma coisa: “O senhor é numis o quê?”. Cambada de filhos da puta, Neandertais! Austrolopitecinos de merda! Eu sou numismata! Numismata! Não sabem esses bandos de bastardos mestiços que compõem essa merda o que é Numismática? Não sabem que cada moeda fala de uma época, de uma complexa conjuntura cultural, de um contexto político-econômico particular, cujo conhecimento forma a base de toda compreensão da sociedade contemporânea?! Essas mulheres burras metidas em roupas feitas por tias costureiras com esses sorrisos estúpidos dizendo “posso ajudar” ignoram plenamente minha atividade. Não fazem questão de saber que estudei quinze anos da minha vida para isso. Lógico que todos sabem a grande merda que é ser recepcionista, bancário, corretor, advogado, secretária; essas profissões são as mais óbvias e medíocres. O desespero do numismata é viver num país onde ninguém sabe que ele existe! Eu existo, seus malditos subdesenvolvidos!
E meu nome é Ivan. Estou numa festa. É uma dessas celebrações acadêmicas, lançamento do vigésimo livro sobre alguma tribo imbecil lá do Xingú, Iama-vai-saber-o-quê. Todos os presentes são mestres, doutores e pós-doutores e bebem vinho barato em taças vagabundas que não sabem segurar para parecerem sofisticados. Comem canapés feitos pela tia de alguém e parvamente conversam sobre temas relacionados à Antropologia, sobre como esses seres bondosos estão sendo continuamente massacrados pelo progresso brasileiro.
Sento num canto e vem falar comigo um desses idiotas, Doutor Hendelmann. Dava muita ênfase ao seu nome alemão para diferenciá-lo da viralatice geral. Burro. Não sabe que a transmissão dessa doença latinoamericana se dá pela via aérea, não pela hereditária e muito menos pela cartorária.
– Olá, doutor.
– Sou pós-doutor.
– Ah sim, é que sou novo na instituição. Diga-me, o senhor é pós-doutor em quê?
– Em Numismática, sou numismata.
O Hendelmann fica em silêncio um tempo, encara solenemente o vazio do seu próprio cérebro, depois abre a boca mongolóide para dizer:
– Numis o quê?
Meu nome é Ivan e não estou suportando esta deficiência crônica de inteligência vinda daquele desperdício de educação formal. Um ser humano que tem doutorado, pago com recursos públicos, não saber que é Numismática? Basta, já é demais. Encaro mudo os olhos azuis do Hendelmann por muito tempo, depois pego a faca com que estava comendo o filé ao molho madeira e enfio violentamente na sua cavidade ocular até fazer o globo saltar da órbita, ficando pendurado por uma tira de carne. O Hendelmann está no chão enquanto eu limpo as mãos na toalha da mesa cheia de salgados e doces. Há gritaria, correria, pânico, mulheres choram. O autor do livro fica em polvorosa, isso realmente dará alguma publicidade àquela publicação insossa. Fico parado com o prato de comida nas coxas à espera da polícia que chega depois de duas horas.
Enfim, posso dizer às senhoras e aos senhores que fui preso e levado à cadeia, de onde saí, via habeas corpus, no mesmo dia para responder em liberdade. Foi aberto processo administrativo contra mim, que nunca fui bem quisto na universidade, e, posteriormente, a demissão foi aprovada pelo conselho em decisão unânime. Acharam que um desequilibrado como eu jamais poderia integrar aquele quadro respeitável e na portaria da punição estava anotado apenas arqueólogo. Filhos da puta.
Agora estou aqui, perante Vossa Excelência e os demais aqui neste tribunal, sendo julgado pelo crime de tentativa de homicídio, o qual se nota que não cometi. Não gostaria de matar o Hendelmann; para mim, ele é apenas um micróbio numa vasta população de parasitas do saber, incômodos mas toleráveis. Não agi senão em legítima defesa da minha profissão, ao cometer o ato simbólico de ferir um homem que fora eleito involuntariamente por um povo semi-analfabeto para receber um título e, no entanto, não tem os conhecimentos mais banais acerca de um ofício da maior importância a qualquer organismo social.
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Dado o depoimento do réu, todos os presentes estavam bastante apreensivos com o desenrolar do julgamento, menos o magistrado. O juiz, débil, senil e quase surdo, ignorando pelo menos oitenta por cento do que acabara de ser dito, começou a inquirir o acusado a respeito do ocorrido:
- Senhor Ivan, estou vendo que vossa senhoria está sofrendo de um grave transtorno mental, obsessão, psicose, ou algo que venha a ser declarado em laudo técnico assinado por profissional competente. No entanto, depois de examinar as evidências, ler e reler os autos, consultar a jurisprudência pertinente, só me resta uma dúvida: essa tal de Numistática é o quê mesmo?
Foram necessários dez homens para segurá-lo.
(Igor Farias)
(*) Este é mais um texto do colaborador-simpatizante deste blog – o punk Igor Farias.