terça-feira, 28 de junho de 2011

Extemporâneo




Vai-se embora
Sem bagagem
Não sabe pra que veio
Foi passeio
Foi passagem

(O velho – Chico Buarque)



Extemporâneo. Ele era extemporâneo. Amadeu era extemporâneo. Morador do Jurunas. Gostava de viver em Belém. Apesar dos seus problemas óbvios. Calor, gente mal educada, o trânsito, a bandidagem, a violência, as abissais desigualdades sociais, a pobreza, a miséria, o embrutecimento humano diante de tal situação absurda e indignante. Esses problemas, ele simplesmente ignorava. Mesmo morando no Jurunas – uma das maiores periferias de Belém. Dizia que estava acima dos problemas de classe. Tinha o bastante para ter uma vida razoável. Pouco importava o resto. Sempre passou a impressão de ser um homem desprendido. Livre. Dono de si. Que estava pouco se importando com o universo alhures. Impávido. Muito inteligente. Racional deveras. Eloqüente. Bom argumentador. Explicava tudo nas minúcias, sem deixar dúvida, ou provocar crítica. Parecia que passava impune pela vida. Indiferente. Autoconfiante. Nada o atingia. Nada o afetava. Obviamente, vivia só. Sem família. Sem mulher. Sem filhos. Ele se bastava. Solidão, considerava ele, era a condição humana por excelência. Tinha muitas teorias e idéias sobre a vida e sobre a morte. Sempre que podia, as expunha. Era um chato. E não fazia questão de esconder. Amargurado, não conversava com ninguém. Julgava-se muito bom para a companhia das pessoas. Todas, segundo ele, demasiadamente idiotas e fracas. Ele arrogava ser um homem superior – nos termos nietzscherianos. Ou um homem extraordinário – de acordo com as reflexões de Raskolnikov. Em verdade, era apenas um pária. Simplesmente um pária. Um fraco. Um frustrado. Um medroso. Àquele que se furta de viver. De sofrer. De sentir dor. Amar. Viver de forma plena, entre o amor e o dissabor. Alegrias e tristezas. Amadeu acreditava estar acima das paixões humanas. Julgava-se um ente superior que sintetizava os elementos de elevação do espírito humano. Uma espécie de homem histórico-cósmico tal qual pensara Hegel. De todo modo, um homem fora do seu tempo. Inadequado. Inadaptado. Anacrônico. Não é necessário dizer que Amadeu era carrancudo, com uma expressão facial vincada por não sorrir, marcada pela tristeza e melancolia. Achava o ato de sorrir desnecessário. E o humor, uma perda de tempo. Tinha coisas mais importantes para fazer. Ler, escrever, trabalhar. Trabalhava amanuense em um cartório. Não raro, era o funcionário mais eficiente e elogiado. Para ele, nada mais natural. Alto e magro. Cabelos longos. Branco. Usava óculos. E andava vestido sempre social: paletó, gravata e calça bem passados – parecia que vivia com a mãe. Morava em um quarto-e-sala perto do trabalho. Percorria duas quadras, estava em casa. Sua rotina, basicamente, se restringia de segunda à sexta, trabalho-casa. E os finais de semana, ir à praça, ao cinema, ler, escutar música, cuidar do jardim, arrumar a casa, lavar roupa, fazer compras, fazer a barba, e escrever. Escrevia muito. Era um exímio escritor. Gostava muito de contos. Lia de tudo, mas tinha especial predileção por contos. Era fascinado pela concisão e expressão da escrita de textos curtos. Escrevia sobre a morte. A finitude da vida lhe inspirava.  Pensava que tudo tem um fim lhe trazia reconforto. Eu era o seu único amigo. Eu gostava de Amadeu, por conta da sua excentricidade e extemporaneidade. Saíamos para conversar nos finais de semana. Sentávamos em algum bar ou café. Ele apenas bebia água. Era abstêmio. Vocifera contra os vícios, dizia que é coisa de fracos. Bebia água para lubrificar a garganta de tanto que falava. Eu gostava da sua chatice e manias. Não sei por que, eu lhe entendia. Mesmo que não concordasse com tudo o que dizia. Eu ouvia. Era o meu gesto humanitário lhe fazer companhia. Não poucas vezes brigávamos e deixávamos de nos falar. Todavia, existia a amizade. Em alguma medida, me identificava com ele. Não obstante, faço essa breve nota em sua memória.  Aquele que se arrogava a perfeição de conduta e inteligência superior, morreu ontem, só. Eu paguei o enterro. Faço uma nota de uma existência extemporânea, que foi passeio, que foi passagem. Que tanto fez, como tanto faz. Foi-se embora, sem receio, sem saudade. Indiferente, como um papel em branco.

(Felipov)

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Definição



A vida vem se definindo. Ao meu redor, vejo a vida se definindo. Encaminhando-se. Vejo a vida se concretizar. A vida se movimentando. De tal modo, que, em alguma medida, isso me assusta. Pois, apenas, observo. E nada faço. Nada mais interventivo e efetivo. Tenho pensando muito esses tempos sobre questões da existência. E não sei o que fazer. Essa desorientação me atordoa. E a vida vai se definindo. E eu parado. Inerte e inútil. Saio nas ruas e sinto o pulsar dos transeuntes, dos carros, do barulho, do calor. O suor que escorre no meu rosto. O sol queimando. A sede. O arrependimento de ter saido de casa. As pessoas que esbarram e não pedem desculpa. Nem por favor e obrigado. É muito embrutecimento. As ruas fedem a medo e alegria. Ando com receio de ser assaltado e perder a vida. Vejo as pessoas lerem jornais nas páginas policiais. Não interessa a política econômica do governo e os seus reflexos no feijão de todo dia. A inflação. O aumento dos impostos. A violência é mais importante. Quantos morreram, facada, sangue. Bandido bom é bandido morto. É um espetáculo de carnificina, escrita e televisionada. A morte é audiência do dia. O dinheiro me falta. E eu, infelizmente, preciso dele. O aluguel atrasado, contas por pagar.  Ou pensas que para eu estar aqui pensando e reclamando é barato. É caro. E degrada o ambiente. Tudo é degradante, ofensivo e pernicioso. A politica é risível de tão escandalosamente absurda. Com os rendimentos de um deputado,  tiraríamos muitas crianças da miséria. Com o dinheiro da corrupção, aposentados, professores e todos aqueles que vivem de salário conseguiriam ter uma vida digna. Dignidade tornou-se algo de classe, apenas destinada aos abastados e bem nascidos. A justiça tornou-se uma mercadoria. A democracia agora é plutocrática. A cidadania é a obrigação de comparecer nas urnas, votar nos próximos usurpadores. A descrença me invade. Por conta da razão. O intelecto me faz pessimista. No entanto, tenho uma esperança. A esperança equilibrista de que o extraordinário torne-se cotidiano. Que a vida se defina pela fraternidade, liberdade e igualdade - reais, amplas e irrestritas, e não, abstratas e formais como fora na Revolução Francesa. Que a vida como conhecemos seja apenas, no futuro, a letra de um samba triste, que passou e não deixou saudade. Que passou. Que passará. Que se definirá. Vida futura nos te definiremos mais humana e plena. 

terça-feira, 21 de junho de 2011

Sapatos para a vida toda (*)

Ele queria sapatos para a vida toda, por isso, naquela manhã saiu cedo de casa rumo ao centro comercial da cidade. Passou o dia subindo as ladeiras, pisando nos ladrilhos bicentenários, ouvindo os sinos das igrejas antigas badalarem a cada hora, enquanto ele prosseguia sua infrutífera busca.
Entrou na décima loja e mirou os calçados expostos na vitrine. Eram vistosos, adornados, cheios de enfeites. Das mais variadas cores, os sapatos estavam dispostos de um jeito que chamava a atenção do homem, que parou e ficou olhando, fascinado pelo arranjo em exposição.
Notando o homem distraído, o atendente da loja abordou-o:
- Posso ajudar, patrão?
- Sim, meu amigo... Eu estive aqui, olhando esses sapatos... São bonitos, mas gostaria de saber por quanto tempo eu poderia usá-los.
O rapaz fitou o rosto inquisitivo do homem, julgando tratar-se de uma piada. Nunca havia ouvido aquela pergunta antes: estava acostumado com clientes que se sentavam nas cadeiras, calçavam e pagavam, sem grandes considerações acerca do material, da durabilidade. Lógico que havia a prateleira dos de couro, dos de couro sintético, dos tênis. Enfim, cada espécie de calçado estava organizada com seus pares, digo, semelhantes, o que tornava o questionamento do homem, para o atendente, mais absurdo. “Couro dura quanto tempo? Bem, quando está no animal, dura certo tempo. Quando é curtido e transformado em sapato, bom, isso já é uma história totalmente diferente”, com esse pensamento o atendente sorriu levemente.
- Eu disse algo engraçado? - perguntou o homem, já impaciente – Vá chamar o seu gerente.
- Tudo bem.
O gerente era um homem gordo e careca, muito suado. Vendia calçados desde quando tinha cabelos, porém já era gordo nessa época. Promovido a gerente pela sua fidelidade canina ao dono da loja, sentia orgulho de ter calçado deputados, juízes, delegados e até mesmo um jogador de futebol. Houvera também um cantor, muito popular, que só tinha uma perna (ele não gostava de falar sobre isso). O gerente se gabava de ter vendido um par de sapatos para ele, mas, como a prótese calçava 42 e o pé 38, ele teve que fazer uma combinação entre dois pares, conservando para si, devidamente autografados, os sapatos restantes. Estavam numa caixa, especialmente construída, com um lado maior que o outro, em cima de sua mesa.
- No que posso ser útil, senhor? - o gerente disse, amigavelmente.
- Eu queria sapatos para a vida toda – retorquiu o homem, duvidando que o recém-chegado pudesse resolver essa situação.
- Meu amigo, não existe tal item na indústria de calçados brasileira – falou, com os fonemas saindo das frestas do sorriso – Nós temos aqui bons, excelentes e sublimes sapatos. Confortáveis, arejados. De acordo com o preço que o senhor quiser. Mas não existe isso de sapatos para a vida toda, porque, se o senhor usá-los todo tempo, durante um período muito longo, eles irão estragar. Essa é uma grande verdade. Porque o homem não pode ter apenas um sapato, não é, Jorge – o atendente sorriu e balançou a cabeça afirmativamente, apesar desse não ser seu nome – Precisa ter vários, um para cada ocasião. Sapatos para festas, sapatos para caminhadas nas praças, para dançar, para trabalhar. Não há item mais importante para o vestuário do cidadão que o sapato. Sim, concordo que uma camisa bem arrumada faz a diferença, que uma calça passada também é importante, mas os sapatos não ficam para trás em nenhum momento! Sapatos são os mais importantes pilares da civilização! Olhe os índios: sem sapatos, condenados ao fracasso histórico. Esses camponeses, então, sempre descalços, imundos e cheios de parasitas. Meu amigo, a largada do progresso já foi dada e só chegará ao pódio quem estiver de sapatos. Então, esqueça essa ideia, compre um par, dois pares, quanto mais o senhor tiver, mais pronto estará para galgar seu caminho até o solene topo do sucesso.
- Não estou interessado nesses seus sapatos frágeis – vociferou o homem, chamando a atenção do público presente na loja. - Fique sabendo que este já foi um País onde um homem tinha um par de sapatos e apenas um. Meu pai foi um desses homens. Esta já foi uma terra de coisas boas. Agora tudo está corrompido por imbecis como o senhor, que revendem essas bobagens europeias. Tudo tão cheio de cores para hipnotizar os clientes, com o intuito de lhes tirar até o último centavo!
O homem então saiu nervosamente para a rua, recuperar o fôlego perdido. Sentou no meio fio e ficou observando uma carroça que subia uma ladeira com alguns móveis usados. A mula puxava o veículo que mexia de um lado para o outro, de vez em quando derrubando alguma cadeira, que o carroceiro tinha que puxar para dentro.
De repente, o homem ouviu uma voz:
- Vejo que precisas de sapatos, meu filho.
Quando ouviu a palavra “sapatos” virou instintivamente seu pescoço para a fonte sonora. Era uma velha, sentada no chão, com um vestido amarelado e carcomido, que, algum dia, fora branco. Olhava para cima fixamente e, quando o homem levantou-se para ter com ela, notou que seus olhos eram totalmente esbranquiçados. Passou a mão sobre seu rosto, para ter certeza. Era cega.
- Não enxergo, meu filho. Mas vejo que precisas de sapatos.
O homem em qualquer outra situação teria achado aquilo tudo bizarro. Mas nessa ocasião não se assustou. Encarou-a e disse:
- Sim, velha. Preciso de sapatos. Que tens com isso?
- Sei onde podes conseguir o que queres.
- Onde, velha?! - o homem estava esperando alguma bobagem. Alguma banca de alguém que dava comida para ela, com calçados vagabundos para vender, entre as antenas de rádio, trenas e cadeados.
- Tudo tem um preço, tu bem o sabes... Sejam sapatos ou endereços, tudo custa algo. Preciso de um vestido novo. Já tenho esse tem muito tempo e preciso estar bonita para a missa de domingo.
- Toma, velha – disse o homem, atirando algumas notas na cuia da mulher. “Se precisa estar bonita, é bom que volte no tempo e diga para ele que pare”, pensou o homem.
- Também tu irás envelhecer, meu filho. Não há nada que o tempo não traga, assim como não há nada que ele não leve. Toma teu endereço, vai com deus.
O homem pegou o papel surrado da mão da velha, sem prestar atenção nas suas palavras. Ficou contente, pois o lugar era a quatro quarteirões dali. Quinze minutos depois, estava na frente de uma velha oficina de sapatos. Da rua já sentia o cheiro da graxa e do couro dos muitos sapatos pendurados por toda parte do porão escuro. Desceu os degraus e bateu palmas. Não conseguia enxergar nada no fim do corredor de calçados que, aos montes, quase preenchiam totalmente o recinto.
Chamou por alguns minutos e, não vindo ninguém, deu meia volta e já estava na porta quando uma mão melada segurou seu braço. Assustou-se e imediatamente virou para ver o que era, deparando-se com um magro velhote sujo de graxa, com uma barba igualmente imunda. Não usava camisa, só uma calça esfarrapada, segura por suspensórios. Não fosse o cheiro forte do couro dos sapatos, que estavam em todo lugar, o homem não se espantaria se um cheiro mais desagradável exalasse do velho.
- Entre, rapaz. Não seja tímido, são só sapatos.
- Pode largar o meu braço, velho. Não há necessidade. Enxergo bem e queria que ligasses a luz, pelo menos – exigiu o homem, enquanto limpava com o lenço onde o velho pegou.
- Não há luz aqui, faz mal para o couro dos calçados. Bem, então diga-me, o que te trás aqui?
- Uma cega me deu teu endereço. Quero sapatos que durem a minha vida toda. Tens aqui?
- Estás com sorte, meu rapaz. Tenho aqui o que necessitas. Mas ela te avisou que tem um preço, não? - o velho fez a pergunta espremendo bem os olhos, para que enxergar o melhor possível a expressão no rosto do homem.
- Sim, ela mencionou que há um preço. Não interessa, pagarei se achar razoável.
- Pois bem, então. Estamos aqui com um homem razoável, hein... A razoabilidade, meu rapaz, é como um sapato folgado: dá alguma ilusão de conforto a quem usa e dá lucro a quem vende, embora não seja confiável. Espera aqui, já trago teus sapatos. - o velho então saiu pela escuridão e voltou com uma caixa de madeira.
Quando ele a abriu, o homem não acreditou no que viu. Eram sapatos de couro preto com cadarços da mesma cor, sem adornos nem nada que os decorasse, a não ser uma par de listras que corriam pelas bordas. Sem dúvida, o melhor par de calçados que já vira em toda sua vida. Do alto dos seus trinta e sete anos, não chegara a por os olhos em sapatos tão belos, que inspiravam tanta confiança quanto à sua durabilidade. Apesar dessa forte impressão, o homem perguntou ao velho:
- Velho, estes sapatos realmente são como parecem? São fortes e duráveis, ou não passa de ilusão?
- Ouça, meu rapaz: não há nada de ilusão nesses sapatos. Depois de prová-los, nunca mais tu vais querer outros. Serão teus. Estavam aqui esperando por ti a tua vida toda – dizendo isso, o velho foi acomodando o homem numa pilha de sapatos e, com destreza, foi removendo os trapos que o homem estava calçando e inserindo os novos sapatos em seus pés.
Ao ser calçado pelo velho, o homem sentiu-se bem. Não, sentiu-se ótimo. Estava realizado. Tinha, enfim os seus sapatos. Venderia a casa, o carro, a mulher, os filhos, a mãe e os órgãos internos para ter aquele par de sapatos. Quando o velho terminou, o homem levantou-se. “Deus! Como é boa a sensação!” pensou, efusivamente.
- Bons sapatos, velho. Quanto custam? - perguntou, esperando um valor exagerado.
- Olha, rapaz. Esses sapatos não custam dinheiro, pode levá-los. Só deixe a quantia da graxa, que já está de bom tamanho.
O homem sorriu, pegou uma nota de cem na carteira e deixou na mão do velho, que instantaneamente a sujou de graxa e disse, sorrindo enquanto o homem saía para a rua:
- É sempre bom um sujeito satisfeito.
Foi para casa, felicíssimo. Neste dia, nem tirou os sapatos para dormir. Cochilou calçado, enquanto encarava a ponta dos seus pés calçados, deitado na cama. Na verdade, após essa aquisição, o homem nunca mais tirou os sapatos.
De início a sua família não ligou. “Ah, deixa ele. Ele está feliz com os sapatos, apenas”, dizia a sua mulher. Dois meses passaram, sem que o homem ficasse descalço e a situação começou a trazer algum embaraço à unidade familiar.
- Mãe, por que o papai nunca tira aqueles sapatos? - interrogou um dia, seu filho de dez anos, visivelmente triste pelo fato de seu pai ter um comportamento fora do normal.
- Meu filho, seu pai está tendo um problema nervoso, deixe-o – desconversou. Mesmo ela tinha dúvidas acerca da sanidade do marido. “Ele nunca foi normal, bem que meu pai me avisou. Mas agora é tarde, temos que contornar a situação”, pensava o tempo todo.
Mas o homem não mudava. Nas férias escolares, eles iam aos balneários. O homem de bermuda, camiseta e sapatos de couro, despertava todo tipo de comentário maldoso.
A mulher olhava a extravagância do marido com olhos de quem tem vergonha e procurava sempre sugerir lugares para onde não haviam ido, menos pelo ineditismo do passeio, mais pela anonímia.
O homem não se importava. Na verdade ele até notou que a sua família estava preocupada com aquele hábito, mas pensava: "Que se dane, sou eu quem paga as contas!". Chamaram inclusive sua mãe para lhe dissuadir de continuar mantendo esse comportamento. De nada adiantou, já não dava ouvidos à ninguém desde que calçara os sapatos. Eles inspiravam nele uma hombridade nunca antes experimentada. Como um super-poder, um não-se-importar, alguma superioridade por poder calçá-los, enquanto todos os outros homens se encontravam no limbo, purgando seus pecados em sapatos inferiores. Sentia-se único, aqueles eram seus sapatos e com eles ficaria calçado. A sociedade não podia tirar aquilo dele. Já bastava o emprego imbecil, a mulher escandalosa, a parvoíce dos filhos. Não, seus sapatos jamais seriam tirados. Não haveria mais aquela concessão.
Seis meses depois da visita ao sapateiro, o homem estava andando numa das ruas mais movimentadas da cidade. Todo esse tempo ele desenvolvera um jeito peculiar de andar, curvado, encarando os sapatos enquanto caminhava. Pé após pé. Lustrosos, apesar de nunca lhes ter aplicado graxa.
Parou num cruzamento, olhou os semáforos. "O trânsito está movimentado", pensou. Apesar dessa consideração, continuou a caminhada, observando atentamente os sapatos.O relógio da praça marcava duas e quinze da tarde quando um ônibus atropelou o homem, matando-o.
O tempo avançou sobre a cidade como um furacão. Destruiu casas, ruas, prédios. Também o cemitério onde o homem estava enterrado havia duas décadas foi adquirido por uma empresa que queria construir quinhentas unidades habitacionais verticais. E o fez. O condomínio chama-se "Happy Living".
Ofereceram à família uma boa quantia em dinheiro vivo, em troca da remoção dos restos do morto.  Não há necessidade de dizer que a balança da moral pendeu para o lado da pecúnia, uma vez que o cadáver já não constituía patrimônio algum aos seus familiares e, por outro lado, o dinheiro até que viria a calhar.
Numa tarde ensolarada, os trabalhadores remexiam a terra com suas ferramentas, enquanto as máquinas cavavam cada vez mais fundo o terreno e o barulho dessa operação tornava o ambiente ainda mais quente. Cada ossada era colocada numa urna de plástico, com as iniciais e um número identificador num adesivo colado à superfície do recipiente. A surpresa não foi pequena quando, ao remexerem a tumba do homem, encontraram, no meio dos ossos, cabelos e panos apodrecidos, os sapatos. Intactos.

(*) Este é mais um texto do colaborador-simpatizante deste blog - o punk Igor Farias.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

O papel (*)




Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
(...)
Lutar com palavras
parece sem fruto
Não tem carne e sangue...
No entanto, luto. 

(O lutador - Carlos Drummond de Andrade)

O papel em branco me desafia. A vida me desafia. Quero resolver problemas, para os quais não tenho solução. O sentimento de incapacidade me invade. E começa a tomar lugar resoluto, renitente. A única vontade que tenho é de não fazer nada. Duvido, sinceramente, das minhas capacidades. Competências. Inteligência. Iludi-me seriamente arrogando-me ser capaz de construir alguma coisa com as minhas próprias mãos. O niilismo domina todas as minhas capacidades mentais. Cinismo. Ceticismo. Sofismo. Enfim, coloco em xeque a minha própria existência. Qual seu sentido, que valia o meu suor e respiração tem tido abaixo do tórrido sol equatorial? É necessário ter sentido? O que realmente importa? Não sei. O que apenas sei é que um cansaço, uma indisposição com as pessoas, as suas idiotices, a sua estupidez e ignorância. Com a realidade desigual que me determina ser egoísta e imediatista. A ser individualista e ter orgulho de ser igualmente idiota e estúpido. Parece-me que há a reprodução em massa dessa forma de sentir e estar no mundo. Andar bem vestido. Na moda. Cabelo cortado, barba feita. Linguagem culta. Inglês, Francês e Espanhol. Voz empostada. Ereto. Nariz empinado. Hierarquia. Seriedade. Disciplina. Organização. Restrição. Legitimação. Status Quo. E qual o sentido disto? A adaptação, a submissão. Ao modelo. A sociedade. Ao capital. A vida da forma em que se apresenta, e que apenas quer reprodução. Contas, e mais contas. Salário. Responsabilidades. Solidão. Carência. Modelos pré-fabricados de felicidade artificial. Conseguir um emprego melhor. Ambição. Formar uma família. Votar. Comprar. Pagar. Consumir. Pensar de menos. Repetir o que o jornal diz. Acreditar que o amor existe. E se adequar ao modelo monogâmico. Casar. Por quê? Porque Espírito Absoluto quis assim. Ele fez e achou bom. É assim. E assim deve ser. Questionou? Azar o seu. As margens são o seu destino. O único sentido que vejo em minha parca existência é a escrita. Escrever me faz dissipar muitas coisas. É comunicar-me comigo mesmo. É dialogar com o papel em branco. Com o nada branco. É uma possibilidade de diálogo. Mesmo que indireto. Com outras existências em igual condição. Ao menos nisso possa ter alguma identidade entre os humanos tão isolados e separados, individualizados em seus quadriláteros sociais mesquinhos e inertes. O papel em branco me desafia a pensar. E eis o que faço: penso e sinto, a um só tempo, no papel alvo da minha existência sôfrega. Diante das pessoas na sala de jantar que estão ocupadas em nascer e morrer em algum lugar miserável da América do Sul. Contudo, tenho uma patética esperança: no papel seja escrita uma história mais humana. E sigo lutando quixotescamente com as palavras e a vida. As palavras, por sua vez, são vida. A vida escrita.  

(Felipov) 


(*) Este texto é uma singela e humilde homenagem ao aniversário de Fernando Pessoa. Uma das fontes de inspiração dos textos escritos neste blog. Uma das referências através do eu-lírico da tabacaria da minha forma de ver e estar no mundo. Fica a saudosa lembrança a esse extraordinário escritor. 

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Casal, domingo na Praça da República (*)

Era um casal, domingo na Praça da República. Caminhando de mãos dadas, ela um pouco tímida, ele falando muito e muito alto, como que alertando o mundo sobre o tamanho da sua felicidade. Era feliz, sem dúvidas. Ela também parecia ser, embora seu gestual fosse menos expansivo.
Os pés corriam pela calçada, enquanto ele roubava, de quando em quando, algum beijinho da mulher. Pararam para ver algumas peças de artesanato, algumas camisas com aquelas mensagens "FUI EM BELÉM E LEMBREI DE VOCÊ", "A CIDADE DAS MANGUEIRAS".
Ele viu algumas peças dessas pirateadas que os camelôs vendem, numa metáfora dos seres humanos. Somos todos falsificados, contrabandeados, com o essencial comprometido por algum defeito irremediável que não se anuncia num primeiro exame, mas que fatalmente irá comprometer a nossa alma ou o nosso corpo, ou mesmo ambos. Não há futuro para os seres humanos a não ser o mal funcionamento típico dos produtos de procedência duvidosa, feitos pelas mãos ineptas de um ser subdesenvolvido com material igualmente pobre. E eles continuavam andando.
Passando por debaixo desse sol quase equatorial, com a consciência casual de serem únicos,  os dois espíritos prosseguiam pelo passeio público com a carapaça material de ossos, sorrisos, sangue e  lágrimas, lentamente, passo a passo, em direção, imediatamente, à Avenida Nazaré, e, mediatamente, rumo ao nada que nos espera do outro lado.
Ah, como eu amo essa cidade... Quando eu ando por essas ruas de trezentos anos ou me perco nessa selva de águas aterradas me sinto vivo por compreender a inevitável verdade cósmica do caos. Quando o cartorário declarou a minha naturalidade, para a boa fé dos documentos e outros papéis públicos, não fez nada que não fosse reconhecer o fato indisponível da camada mais aparente da minha alma. Belém, quando eu te vejo, iluminada em meio ao negror das matas e rios, através de uma pequena janela, eu te sinto morena, abrindo os braços, e, à visão do primeiro menino de rua pulando no primeiro canal, me sinto de volta. De volta a eu mesmo. O que eu realmente sou. Que coincide com o que realmente és.
O casal continua andando. Ele fala alguma bobagem, diz alguma piada. Ela sorri um meio sorriso. Aquele sorriso que é meio sorriso, meio tristeza. Não pela qualidade da piada, mas por haver, atrás dos dentes, atrás dos olhos, atrás do rosto de quem sorri, alguma nódoa, como as que salpicam o lado esquerdo do seu rosto e que insistem em sair dos óculos escuros que tentam, a todo custo, esconder o dia anterior.
Ela se limita a falar "sim" e "não" e rir da forma supramencionada. Mas ele não liga. Há pessoas que não ligam. Quem pode culpá-los por não ligarem? Ele não liga porque deve ter tido uma infância ruim, ou qualquer outra desculpa psicanalítica para as pessoas serem filhas das putas umas com as outras. É o mundo em que vivemos: escolha sua desculpa e seja um filho da puta, não necessariamente nessa ordem.
Nenhuma dessas coisas passa na cabeça do homem. Ele está muito ocupado com sua própria felicidade. Ele gostaria de emitir pseudópodes para fagocitar a mulher, englobando-a para seu mundo e sua felicidade. Queria estender esse estado de espírito para ela, pensando que, quanto mais radiante parecesse, mais influenciaria o ânimo dela. Ela também não parecia ligar. Já havia visto aquele filme.
Ele continua falando, falando e falando. Sobre seu trabalho, como tudo vai ser diferente a partir de segunda feira, que vai comprar um carro, que pretende levá-la pra Buenos Aires em setembro. Ela abana a cabeça e dissimula algum interesse nessas coisas, fazendo que com ele se sentisse um pouco fora da sua positividade dominical.
Neste momento, eles passaram por mim, sentado no banco lendo o jornal, algo sobre a guerra, ou sobre as guerras, algum colunista social, alguma alpinista social, algum fosso social em algum país de 190 milhões pessoas, e, tão facilmente quanto se ensina marxismo a um homem faminto, diz a ela:
- Sabe, a gente se diverte tanto quando eu esqueço que tu era puta...

(Igor Farias)

(*) Este é mais um texto do colaborador-simpatizante deste blog - o punk Igor Farias.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Resposta

Meu caro amigo, 

Não é fácil escrever essas linhas. Sobretudo à mão. A minha caligrafia não é das melhores. Então, peço de início: um pouco de esforço e paciência ao lê-las. Estas linhas são de pedidos e esclarecimentos. De pronto, vamos aos esclarecimentos. O que aconteceu não foi um ato de leviandade, desonestidade, em última análise, de traição. Tanto do meu lado quanto do dela. O que ocorreu foi apenas sentimentos. Que quando se encontram seguem sua lógica e desdobramentos próprios. Sem atentar muito para o contexto no qual tomam vida. Isso procede, porém, com algumas ressalvas. Eu sempre tive muitas restrições a mim mesmo por estar apaixonado pela namorada de um amigo - frise-se: amigo. Desde o primeiro momento que a vi, me apaixonei avassaladoramente. No entanto, já tinha tomado a firme resolução de que isso ficaria apenas no plano das idéias, na sublimação, no platonismo. Mas, os sentimentos não obedecem nossos modelos explicativos lógica e racionalmente construídos. Eles simplesmente desdenham deles. Eles foram mais fortes. Por isso, aconteceu o que aconteceu. Contudo, não me arrependo. Ao contrário do que pensas, isso não se deve a forma como penso, um materialista frio e sem princípios que acaba por razões outras relativizar os seus atos e conseqüências. Meu caro, em nenhum momento deixei de pensar na complexidade da situação e do teu lugar nela. Várias vezes me pus no teu lugar. O que quero demonstrar: o ocorrido não se processou sem receio e hesitações. Certo, admito que não impediu. Porém, creio que isso era necessário ser dito. E faço idéia o quanto chateado, ou mesmo, com raiva deves estar de mim. Natural, nada mais humano. Como é igualmente humano reconhecer um erro. E te peço desculpas. Estas linhas são um pedido formal de desculpas. Porque errei contigo. E se alguém errou nessa situação, foi tão somente eu, e digo isso sem querer ser um mártir ou aquele que quer levar a culpa pela situação, ou pelas dores do mundo. Digo que sou o culpado, pois fui em quem criou o facto. Não a culpe por nada. Faça-a feliz, apenas. Fico triste por essa situação e por as coisas ficarem assim. Mas, creio que seja necessário. O único pedido que faço é: que repenses a possibilidade de ser meu amigo novamente. A tua amizade sempre foi muito prezada por mim - mesmo com todos os problemas ocorridos. 

Fraternalmente, 

Felipov.