sexta-feira, 27 de maio de 2011

Tristeza

Acordei ainda pouco. Sinto-me bem. A languidez da ressaca me deixa bem. Melancolia. Fico de olhos fechados. Ouço o barulho da chuva e o cheiro de umidade. Isto me tranquiliza. Estou triste. Ontem, recebi uma triste notícia. Cansado. Enfadigado. E triste. Deveras triste. Tristeza me define hoje. Gosto da tristeza, ela me ajuda a refletir. A ser mais ponderado e sensato. A alegria é efêmera, ela engana. Preciso de sensatez nesse momento. Tenho repensando muito as minhas relações. As pessoas com quem travo contato. Das ausências, faltas, distâncias. A imensa saudade que me consome. Aquelas pessoas que se afastaram. E das quais me afastei. As discussões, brigas, xingamentos e ofensas. A raiva engolida. O ranger de dentes. A dor de cabeça. E o “Filho da puta” na boca, cerrado entre os dentes, mastigado e engolido por conta do imperativo categórico – aquele maldito Kant e a sua metafísica de merda. Tenho percebido o quanto a existência é permeada de absurdos. O Nada vem todo dia conversar comigo. Nos jornais, revistas e televisão. Ele, respeitável, imponente, bem vestido, sóbrio, procurando ser legítimo. Fala muito, bem articulado, norma culta, sem dizer absolutamente nada. O Nada: fala muito e não diz nada. Observo e reparo. Penso e me angustio. Não vejo saída no aparente. Contudo, ainda, acredito que há saída – é, sou romântico. Patético e sonhador. Acredito no Homem: síntese de múltiplas determinações, capaz do autodesenvolvimento, de inúmeras potencialidades, de criar o belo, de sentir o amor, enfim, Ser Humano; e igualmente, egoísta, mesquinho, estúpido, ignorante, crédulo, obediente, alienado. Se o homem é feito pelas circunstâncias, que as circunstâncias sejam feitas humanamente – este pensamento do jovem mouro faz todo o sentido para o meu Eu. Ego. Maldito Ego. O articulador máximo das paixões infames da existência. Do efêmero. Do inóspito. Da miséria. Do mesquinho. Do reprovável. A favor de um simples e passageiro prazer individual. O que, para alguns, alhures, encaminha o sentido da parca existência. Vida parca, vida pouca, vida diminuta. Embrutecida. Ignorante. Idiota. Patética. Ridícula. Enfim, demasiadamente humana. Nada do que é humano me é estranho. Portanto, compartilho, indelevelmente, tais limitações. Não me orgulho. Mas, não sou hipócrita de não reconhecê-las. Tampouco faço uma ode a tal condição. Apenas, constato e me resigno. Resignação e indignação são o que me resta. Ao menos, a constatação do óbvio me anima. Mesmo sendo o óbvio, algo me diz, mesmo não sendo claro para muitos, que a minha lucidez ainda se mantem de pé. Manca e apoiada em muletas, contudo, e ainda bem, de pé, observando o horizonte em suas possibilidades. Ou não. Lucidez. Quanta falta tu fazes. Sinto-me mais lúcido com a música. E sem ela, com toda a certeza, a vida seria um erro – e esse foi um dos raros momentos de lucidez de Nietzsche, além, é claro, da sua crítica virulenta a metafísica ocidental. A música, a meu ver, é uma das expressões da experiência humana, a um só tempo, profundamente racional e sentimental. A exatidão das notas musicais, a sua linearidade, o seu rigor de execução, a afinação, o orquestramento, enfim, a matemática de acordes, de tons, de melodias e de harmonias, tem apenas uma finalidade: expressar sentimentos. E o que há de mais irracional, passional, irregular, alinear, perene, contraditório, do que os sentimentos humanos. Portanto, a música é sublime: uma racionalidade passional. E nada mais humano do que a contradição. Contradição, penso eu, ser uma das principais características da condição humana. Sim e Não, ao mesmo tempo. O certo que parece errado. O errado que parece certo. O fim que justificam os meios.  A idiotice lúcida. Alegria melancólica. A crueldade piedosa. O xingamento elogioso. O ódio amoroso. Perdoar as ofensas. Pagar o mal com o bem. Ser moralmente correto. Irrepreensível. Modelo de conduta. Sobriedade. Digno. Honrado. Viver segundo alguma coisa. Segundo a imaginação imposta e os seus derivados. De acordo com outra realidade, outro mundo transcendente.  Enfim, no mundo das idéias, tudo é possível. Porém, nem tudo é impune e idílico. Sou menos otimista. Há apenas uma realidade material, construída por homens, com idéias, estômagos e sexo – portanto, com necessidades materiais e imateriais. Contudo, um imperativo moral se mantem: amar o próximo como a si mesmo. Amor. Sinto-o pouco. Ele é proporcional a minha existência: parca. Não sou nada, mas tenho em mim, todo o amor do mundo – ao menos, a parte que me cabe da nossa triste condição. O amor é sentido, direção, caminho. Força. Entusiasmo. Alegria. Vontade. Sorriso. Medo. Angustia. Desconfiança. Ciúme. Traição. Ingratidão. Dor. Sofrimento. A dor que punge sem doer. O contentamento descontente – o lirismo de Camões é insuperável. Quem passou por essa vida sem Amar, sem sentir o Amor, sem cantar a Paixão, sem gozar desta sublime condição. Não viveu. Triste e lamentavelmente, não viveu plenamente. Se viveu, foi parcialmente. Se vive de forma parcial? – fica a questão. Plenitude. Acredito que vivi a vida em plenitude. Tenho 20 anos. Ontem, fui ao médico, ver o resultado de exames de rotina. Ele me disse: “Meu caro, é difícil dizê-lo. É uma das piores partes da minha profissão. Seus exames são ótimos para hemoglobina, triglicerídeos etc. Porém, tens uma doença terminal no cérebro. Um mês, no máximo dois. Lamento”. Lamentei também essa triste notícia. Cumprimentei-o e disse: “Adeus, meu caro. Obrigado pelos serviços. Até nunca mais”. Ao sair do hospital, a luz do sol, o ar, parecia diferente. O barulho, a fumaça, o calor e as pessoas também. Fui até uma banca de revista. Comprei o pacote de balas de gengibre – há tempos que não comia uma. Sentei-me na praça próximo a minha casa e fiquei observando a vida, e chupando balas de gengibre. Apreciando a vida enquanto a tinha e ela tão indiferente a minha condição. Caiu a tarde. Fui para casa. Uma tristeza profunda me abateu. Quero viver muito ainda. No entanto, por hoje, acabei com a garrafa de uísque que tinha em casa. E dormi. Acordei, pensando na vida que diminuiu a areia da ampulheta. Triste e resignado.

(Felipov) 

2 comentários:

Anônimo disse...

"Se o homem é feito pelas circunstâncias, que as circunstâncias sejam feitas humanamente – este pensamento do jovem mouro faz todo o sentido para o meu Eu."
"A música, a meu ver, é uma das expressões da experiência humana, a um só tempo, profundamente racional e sentimental. A exatidão das notas musicais, a sua linearidade, o seu rigor de execução, a afinação, o orquestramento, enfim, a matemática de acordes, de tons, de melodias e de harmonias, tem apenas uma finalidade: expressar sentimentos. E o que há de mais irracional, passional, irregular, alinear, perene, contraditório, do que os sentimentos humanos. Portanto, a música é sublime: uma racionalidade passional. E nada mais humano do que a contradição. "

Felipe ou Felipov, como sempre o chamo... traduziste o indizível aos meus olhos, quão grave são suas palavras, sinceras e diretas ao ponto da contradição humana. Música sublime, sim, isto posso dizer com plena clareza, é algo corpóreo que instiga e mata ao mesmo tempo. E o engraçado é que nós as vezes desejamos a dor, ouvindo melodias, sonatas tristes, outras vezes nos deixamos levar pelos impulsos de batidas mais violentas, então, no final das contas, purgamos o total sentimento. É uma catarse humana a música, ao meu ver.

Todas essas reflexões do que é a contradição humana são incríveis... nossa... sobre o amor... lembrou-me muito aqueles versos de Fernando Pessoa:
"Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas."

Mas... paro por aqui... senão farei um outro enorme texto. Escreva mais! eheheh

Abraços!

Arthur Lamounier disse...

É realmente curioso como podemos - redigindo palavras completamente aleatórias num campo de busca - encontrar microuniversos nessa rede de infinitas possibilidades que é a internet.
Matematicamente, a probabilidade de encontrar sua página somada à minha disposição em clicar no link talvez fosse de 1/100000000000. Mas, ironicamente, o que era antes impossível virou certo, e aqui estou, perplexo e apaixonado com "Tristeza".

Não sou nenhum perito em análise lexical ou teórico da literatura moderna, mas há tempos não encontrava um texto tão cru, tão objetivo desde seu início, cuja coesão vai te levando numa evolução paulatina até culminar no imprevisível. Divagar sobre uma teoria ou outra, sobre um personagem importante ou qualquer filosofia colocada desde o início do século passado em pauta é simples demais. Porém, Felipe, aplicar isso e saber dimensionar cada fragmento, cada pequeno pensamento e torná-los úteis e racionais é para poucos. Sabe-se lá que formação você tem, se é estudante, pintor ou jornalista, isso não tem tanta importância. Sua habilidade, sim, para dizer ao mundo, às pessoas que te visitam aqui ou acolá, é que te compõem sob nossa ótica. E queria mesmo era ter tempo para poder dedicar horas analisando cada linha, poder te ver de diferentes ângulos. É um prazer gigantesco conhecer o ser humano através de seus registros, e só assim consigo entender aqueles arqueólogos birutas que se maravilham com cada inscrição, cada detalhe de uma rocha de trocentos anos... é assim que eu me sinto lendo teus textos, um arqueólogo procurando por vestígios de humanidade em alguém que se distancia tão bem dessa essência.

Parabéns, de verdade, e perdoe o tamanho do comentário.

Arthur Lamounier

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