Chove. Chove muito. Torrencialmente, como é peculiar em Belém. Sábado. Eles me passam paz. A paz do fim de semana. Gosto da chuva. Ela faz emergir as contradições da cidade e ao mesmo tempo me tranquiliza. A umidade e o frio me tranquilizam. Não preciso sair de casa e leio os meus livros – muitos por sinal. Ouço música. Coloco Chico para tocar no toca-vinil. Assisto filmes. Selecionei alguns do Kubrick. Não preciso ver pessoas. Ver carros, trânsito, fumaça. Sem calor e contradições sociais que me angustia a existência. Fico deitada o dia inteiro. Uma languidez me invade. Não me preocupo com nada. A preguiça toma conta de mim. Até comer e beber água é um sacrífico. Quero ler e escrever. Sinto a satisfação da leitura. Leio Saramago, estou quase acabando. O prazer de escrever. Tenho rascunhado alguns versos. Um gole de vinho. Estou só no meu apartamento. Olho em volto, vejo a vida que construí e sinto-me satisfeita comigo mesma. A vida que escolhi. Em cima da cama, enrolada no lençol, percebo que a cama de casal gigante foi uma das melhores escolhas. Passo as mãos nos cabelos, sinto-os macios e curtos, cheirosos e sedosos – outra escolha bem feita: cortar o cabelo curto. Estou acima do peso e me sinto tão bem – passo a mãos na minha barriga, e me agrado de seus excessos. Pego a taça de vinho, ao lado da cama, mais um gole, e sinto o cheiro, o gosto da uva fermentada. Sinto-me incrivelmente bem. Olho as minhas unhas, e não tenho a menor vontade de pintá-las e cortá-las, e ainda dou uma ruída – gostei disso. Mais um gole, e o vinho acaba. Um café. Acendo um cigarro. Uma tragada. Outra tragada. Coloco-o no cinzeiro ao lado da taça e da caneca de café. Estou nua, sinto-me livre. No criado-mudo, ao lado da cama, abro a gaveta, inclino-me, para não levantar da cama, e pego um cortador de unha – a consciência me dói, e vou ajeitar a ruída. Quando vejo, uma foto. Era a nossa foto. Uma foto de um longínquo momento feliz. Não sei como ela foi parar aqui. Eu não esperava por isso. Uma torrente de lembranças vem a minha mente. Dor. O que pensei superado, vem a tona. Com força e ímpeto. Sentimentos que pensei superados, ressurgem das cinzas. Por que ele foi embora, por que me abandonou. Havia uma vida juntos. Anos de dedicação e convivência. Noites velando o seu sono. O afastamento dos amigos por conta do seu ciúme idiota. A desconfiança. As traições. A deslealdade, A insensatez. E o amor avassalador que ainda guardo, que punge no meu peito, que me deixa ofegante, que me faz suspirar, se confunde, na mesma proporção, com a raiva, a dor e o ódio que igualmente sinto. Eu me segurei, mas caiu uma lágrima. A lágrima – a desesperança que ele volte.
(Felipov)
3 comentários:
O cotidiano: simples, belo, delicioso, doloroso... Gostei muito do texto. Posso dizer que já carreguei em mim esta teimosa lágrima. E é realmente dificil segura-la...
Estou vivendo algo semelhante... vivendo só, na "desesperança que ele volte"... Não estou amargurada e nem acima do peso ou cortei os cabelos...eheheh Mas a lágrima de vez em quando escorre e aparece quando menos espero. É um ir e vir desgraçado, momentos felizes, momentos solitários. Será só o costume, o sentimento verdadeiro ou um pouco de cada? Eis a questão...
Sem nem saber a minha história ou a de milhares de mulheres, conseguiste traduzir algo bem cotidiano para muitas, legal.
Legal o eu lírico feminino. Muito bom mesmo. Abs.
Postar um comentário