sexta-feira, 20 de maio de 2011

Estou vivo, ele disse (*)

“Estou vivo”, ele disse. Disse não, berrou, urrou, esmurrando a parede maciça à sua frente.
Respiração ofegante, suava como um porco. Tentava compor um quadro lógico que explicasse a situação, mas a descarga de adrenalina não era favorável ao foco necessário para esta atividade. Pelo contrário, desesperava-se, náufrago no espaço reduzido ao qual estava confinado.
“Estou vivo, estou vivo, vivo, vivo, vivo...”, repetia para si na loucura ora aflita ora explodindo numa gargalhada nervosa. Esta velha conhecida do desamparo, a loucura.
A cada som da terra caindo sobre a membrana orgânica que o separava do lado de fora, sua aflição aumentava em progressão geométrica. Sentia vertigem, calafrios. Queria vomitar. Seu coração parecia explodir.
 O som dos gritos e da violência gestual chamou a atenção do homem com a pá.
No início, ele não deu muita atenção, mas o barulho foi lentamente começando a deixá-lo cansado, apesar dos seus 27 anos. As palavras do homem desesperado foram somando mais alguns quilos à terra na pá e cada movimento foi se tornando cada vez mais extenuante. Também ele suava, mas pelo esforço. Existem suores e suores, sabe?
De repente parou. Tirou o lenço do bolso de trás da calça. Enxugou a testa. Pegou, no bolso da camisa que estava no chão, a carteira de cigarros. Acendeu um. Deu uma longa tragada. Fixou os olhos no horizonte cheio de nuvens das madrugadas paraenses. “Vai chover...”, pensou. Sempre chove, disso ele também sabia. Então disse, em voz alta, para que o homem desesperado pudesse ouvi-lo:
- Estou vivo, estou vivo... Eu estou cansado dessas lamentações, porra... Quem é que está realmente vivo nessa merda de planeta em que vivemos? Eu não estou mais vivo que tu, jogando essa terra em cima de ti, estamos os dois morrendo. É claro que tu vais primeiro, mas eu me mato também a cada pá  cheia que eu despejo e cubro um homem que respira e se debate desse jeito. Quem está vivo, porra?! Todos temos nossas cotas de terra nos sendo jogada e todos temos nossa vez com a pá! Todos nós morremos sufocados nos nossos empregos, vidas inúteis, merdas que fazemos, outras que virão, palavras ditas, palavras não ditas, amores vividos, fingidos, dissimulados cinicamente. Posso te dizer com toda certeza que muita gente te invejaria neste momento. Não és tu que derruba o conteúdo da pá da existência sobre ti mesmo, eu estou fazendo isso, e não vai demorar o tempo de quatro ou cinco gerações, estou te tirando dessa miséria em meia hora ou menos. Antes eu tinha tudo, estudo, mulher, carro, casa, esses confortos da vida material. Agora eu só tenho esta pá, pela qual me pagam pra despejar terra. Eu nunca pergunto em quê. E não me interessa. Eu só tenho a pá. Esta é a minha verdade. E a tua, por algum tempo. PÁRA DE CHORAR, PORRA! Não me interessa a merda que tu fizeste que te colocou nesta situação. Não me pagam pra ter piedade, não me pagam pra filosofar, não me pagam pra te explicar porque tá acontecendo isso contigo. Eu sou pago pela pá. Pela terra. Pela combinação dos dois. E é só. NÃO ADIANTA REZAR TAMBÉM, SEU IMBECIL! Esse teu deus de merda não vai tirar essa pá da minha mão, nem transformar essa terra em algodão-doce! Daqui a pouco tu vais comprovar a superstição caipira que é viver pautado em dogmas, princípios e valores religiosos. Nada pode te salvar neste momento. Estas palavras só estão sendo ditas porque estou recuperando as forças. Este é o tempo que te resta, nada mais, nada menos. Nenhum deus pode te tirar desta realidade. AH, TU TENS MULHER, DUAS FILHAS PEQUENAS? Fodam-se , talvez o grande favor que eu presto ao mundo seja tirar dele pais como tu. Não que eu ligue para a criação delas ou para como tu és como pai, como ser humano, como homem respeitável, médico, engenheiro, advogado, juiz, cobrador de ônibus, jogador de futebol. A minha pá não conhece origens, nem preconceitos, nem se importa com classe, cor, crenças. A terra também parece não se importar. Traga a todos sem diferenciá-los pelas coisas que eles achavam que tinham, ou achavam que eram. Eles eram. E tu já foi também.
O homem pegou a pá e continuou o serviço, com o ânimo recobrado pelo entusiasmo do discurso.
O outro encontrava-se paralisado de pânico, somente piscando os olhos de vez em quando, fitando a escuridão com seus olhos inertes como o touro que espera o último golpe, ante à torcida eufórica duma plaza de Madrid.
A grande ironia da vida é que ninguém bate palmas para o touro quando ele vence a tourada.
“Estou vivo”, ele disse. E foi a última coisa que disse.

(Igor Farias)

 (*) Este é mais um texto do colaborador-simpatizanate deste blog - o punk Igor Farias.

 

2 comentários:

Anônimo disse...

Perfeito *-*

Felipov disse...

Qualquer pessoa chega e pergunta:

"pra que tanta impiedade, embrutecimento e sadismo??"

Ele responde:

"Não sei. A minha pá não sabe o que é isso. E nem a terra. Isso é um problema delas. Eu apenas sou pago para usá-las e não para saber da consequência dos seus atos. Ei, deixa eu ir. Tenho que cagar" xDxD

"Todos nós morremos sufocados nos nossos empregos, vidas inúteis, merdas que fazemos, outras que virão, palavras ditas, palavras não ditas, amores vividos, fingidos, dissimulados cinicamente"

"Agora eu só tenho esta pá, pela qual me pagam pra despejar terra. Eu nunca pergunto em quê. E não me interessa. Eu só tenho a pá. Esta é a minha verdade. E a tua, por algum tempo. PÁRA DE CHORAR, PORRA! Não me interessa a merda que tu fizeste que te colocou nesta situação. Não me pagam pra ter piedade, não me pagam pra filosofar, não me pagam pra te explicar porque tá acontecendo isso contigo. Eu sou pago pela pá. Pela terra. Pela combinação dos dois. E é só"

As duas partes que mais gostei.

É, punk, esse é um dos melhores textos que já foi publicado aqui nessa caixa de textos jogados que chamo de blog. Abraços, meu velho.

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