quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Cinema




Cinema Coliseum. Um dos primeiros da cidade, e derradeiro que ainda persiste em nos lembrar dos bons tempos. O velho cinema de rua, do tipo “Cine Paradiso”, abrigado em um prédio antigo, que fora construído em função daquela sala de projeção, nos anos finais da Belle Époque. Paredes encardidas, com a tinta descascando, as extremidades corroídas pelo limo e umidade, testemunham um tempo de glória que passou. Resquícios dos fumos que morreram. 

A mais aterrorizante visão do abandono. Cinemas antigos, quase extintos, que observei no seu auge, no franco declínio, e, agora, na quase extinção. Certamente, esse deve ser um dos últimos cinemas de rua de minha cidade natal. Dos outros tantos que povoaram a minha infeliz infância e venturosa juventude, um a um foram tombando, sendo substituídos paulatinamente por estacionamentos, boates, lojas de departamentos, igrejas.

O simples ato de ir ao cinema sempre foi um dos melhores momentos da minha vida. É o meu lugar no mundo. Sempre que podia, ia com duas razões manifestas: ver a reação das pessoas, e, é claro, assistir aos filmes. Depois de velho, tenho oitenta e cinco anos, eu já havia assistido todas as películas do acervo do velho cinema. Entretanto, continuava freqüentando-o, por que apreciava o espaço e de observar as reações das pessoas. A senilidade dava-me a impunidade, na verdade, concedia-me o anonimato necessário para desempenhar minhas observações dos transeuntes que freqüentavam aquela sala de projeção. Ninguém se importa com os velhos, eles passam despercebidos entre a multidão.  Ninguém se importa com a velhice, todos vivem como se a juventude fosse eterna. Ledo engano, que é revelado muito tarde. Infelizmente.

Na galeria de entrada do cinema, havia um café, no qual sentava-me todas as tardes, para apreciar as minhas xícaras de café intercaladas por tragadas de cigarro, vendo a fila que se formava para a sessão das dezoito horas. Todas as tardes, religiosamente, caso fizesse chuva ou sol, exceto quando estava doente e nas festividades de fim de ano. Meu objetivo era identificar no comportamento das pessoas as razões subjacentes que as motivavam ir ao cinema. Sobretudo, aquele cinema antigo, velho, abandonado, esquecido. Almejava ver a vida em movimento naquele meu lugar no mundo.

Via aqueles pequenos infantes vivendo o período mais feliz de suas existências, acompanhados da presença diligentes de seus pais, elas brincavam de pega-pega ou correriam na frente do cinema, enquanto os progenitores conversavam distraidamente sobre questões cotidianas, contas não pagas, a notícia do jornal, a fofoca da vizinha, e permaneciam repreendendo as peraltices das crianças de longe, de forma displicente, com pouca vontade. Outras crianças comendo pipoca, quietas, caladas, cabisbaixas esperando sua vez na fila, e observando com um olhar triste as outras que corriam alegremente, fazendo barulho e estardalhaço. Elas sabiam que não poderiam fazer aquilo em nenhuma hipótese fora de casa, ou mesmo em casa, eram filhos de pais severos e rígidos. Eu tinha ciência, consternando-me com o que via, porque fui filho de pais da mesma estirpe. Infelizes são aqueles humanos que tiveram pais severos, uma infância austera e séria, pois foram usurpados no momento mais feliz da vida: o da ausência das vicissitudes da consciência e das responsabilidades da vida adulta. Infelizes pequenos como eu fui um dia.
 
Os casais de velhos felizes por terem saído de casa, um ajudando o outro, muletas um do outro por uma vida inteira, agüentando-se mutuamente, achando que isso é amor. Uma vida agüentando absurdos, desaforos, traições, brigas, ciúmes. Uma vida justificada pelo amor. Tudo o que é feito em nome do amor é legítimo, válido, correto. Os silêncios das bocas cansadas de mentir juras de amor. O peito vazio contendo a inércia da existência de quem perdeu a solidão. O corpo fadigado, moribundo de quem é cônscio da vida que viveu, da vida que perdeu. O casal feliz que se reduziu a dois por não ter mais nada e ninguém. Apenas, a tênue imagem de duas almas gêmeas que o amor uniu e destruiu.

A juventude entusiasmada, esperançosa, triunfante, amante de si mesmo, soberba e imprudente, como se não houvesse amanhã que viesse ceifar suas efêmeras vidas. Essa juventude estampava nos rostos dos jovens que eu na via fila. Parece que vivem sem razão em função da paixão. Da forma como se vestem, falam e se portam uns com os outros parece que o senso de ridículo se extinguiu junto com a vergonha na cara. São cada vez mais perspicazes, instruídos, munidos de informações como nenhuma outra geração que habitou a face deste planeta. Faltando-lhes a inteligência necessária para discernirem essa massa de informação em julgamentos plausíveis, razoáveis e coerentes com o seu próprio tempo. Geração que se orgulha de ser estúpida, burra, insensata, como se seus atos fossem imunes a punição, louvam a impunidade da vida sem princípios, cedo ou tarde, a natureza cobra disfarçada de velhice. Narcisos dos tempos atuais, idolatram a si mesmos, e a seu modo de vida blasé, não sabendo que reside em tal atitude a raiz de sua futura ruína. O fim justo para uma vida injustificada. O fim.

Observava a cada individuo com atenção, cada vida com atenção. Considero que o sentido da vida está na observação da própria vida. Em reparar a vida a sua volta, alhures. Na pessoa ao seu lado no ônibus, no colega sentado perto de vocês na sala de aula ou no trabalho, nas pessoas que andam nas ruas, que freqüentam igrejas, bares, puteiros, auto-escolas, shopping centers, livrarias, sebos, repartições públicas, que acreditam em Deus ou não, que fumam, que fodem, que matam, que sobrevivem, que mentem, que sofrem, que choram, que riem, que cagam, que se masturbam, que lêem auto-ajuda, que lêem a Bíblia, que lêem Bukowski, que trabalham, que roubam, que são indiferentes, aquelas que se importam, as que amam, as que odeiam, aquela sua ex-namorada ou ex-namorado, sua mãe ou seu pai, o seu patrão, no banqueiro. Ver o outro como uma dimensão de si mesmo. Sou partícipe desta vida em movimento. Participo de toda esta merda que reparo. A vida que se projeta cotidianamente nas filas daquele velho cinema.

(Felipov) 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Conversa com Camus






Vivo. Existo. Objetivamente. Materialmente. Uma pilha de moléculas, átomos, células, tecidos, órgãos, cérebro, fome, sexo, angústia, sofrimento, chatice, alegria, solidão – e, é claro, um pouco de sacanagem. Existência precedendo consciência. Não sei por qual razão, motivo, ou causa, existo, permaneço, continuo. Talvez, isso, ainda, não esteja clarividente para a minha parcimoniosa inteligência. Contudo, vivo. Vivo pela razão única de não tenho outra opção. A minha inusitada alternativa é viver. Sobreviver – não sei bem. Não sei bem, Camus.

As coisas, a vida, os homens, a natureza, me parecem agora, nesse instante, diferente de qualquer outro, porque neste momento, estou pensando, de modo inescrutável, e, ao mesmo tempo, inefável, da forma própria na qual se movimentam os meus neurotransmissores neuróticos abalados por anos de displicente atividade cerebral, uma grande massa amorfa que procura organizar no meu juízo. Há juízo perfeito sobre a terra, meu caro Camus?

Na verdade, concordo contigo, Camus, a questão filosófica fundamental é o suicídio. A necessidade de desvelar as razões mais profundas em si mesmo, para formar a firme avaliação se esta vida, esta existência, esta cidade, este bairro, este Estado, este país, esta classe social, esta religião, este emprego, este salário, este planeta, esta galáxia, este universo, valem realmente a penosa desventura de viver. Eis a questão fundamental. Tens toda razão, caro Camus.

Amor. Sentimento em extinção. Considero, Camus, o amor nas suas múltiplas manifestações na existência humana. Fraternal. Maternal. Eros. Altruísta. Contudo, ele cada vez mais é confundido com uma procura desesperada pela satisfação desmedida do Ego. Vejo que o amor, os sentimentos amorosos, ou essa masturbação a dois com vomitação de arco-íris, no tempo em que vivo, transformaram-se em um platonismo virtual que se liquefaz na sucessão frenética das imagens que fazemos de nós e dos outros.

Quando as imagens idealizadas não se confirmam no deserto do real, quando esse platonismo romantizado no anacronismo próprio dos sentimentos inventados no mundo etéreo daquilo que se esperada, almeja, deseja, não se confirma, não se contempla, não se satisfaz. Vem, apenas, o masoquista sentimento de frustração daquilo que era ideal e permaneceu ideal. O Ego não satisfeito destila sua dor em atos infantis de recalque e afetação. Diga-me, caro Camus, quando os humanos compreenderão que não há metafísica e sim apenas o terreno árido da existência em matéria amorosa?

Solidão. A antítese por excelência do amor. É rejeitada, ignorada, renunciada. Estar só é visto com tristeza e temor, como algo ruim e reprovável. A simples possibilidade de ficar sozinho provoca em algumas pessoas um sentimento de vazio, vácuo, ausência. Em oposição a dimensão virtual das relações humanas, a solidão é uma das extensões da existência, um desafio que nem sempre é fácil enfrentar: encontrar a si mesmo. A solidão, a meu ver, é simplesmente, estar consigo mesmo, conhecer a si mesmo. É, em si, um exercício de maiêutica. Conhecer a suas potencialidades e limitações, defeitos e qualidades.

Ficar ao largo, parcialmente, da loucura cotidiana que nos imputa a sociedade do capital. É, em parte, refugiar-se na torre de marfim que existe em nós, em nossa psique, que deve ser descoberta, consertada, e visitada de vez em quando, ela não precisa ser esquecida, porém, ao mesmo tempo, ser superestimada. É a proteção em si mesmo de modo efêmero, que necessita ser periódica. É aprender a viver sozinho, aprender a viver em um, condição fundamental, para viver em dois, e premissa sine qua non da vida em sociedade. O que me dizes a respeito da solidão, Camus?

Liberdade. Aquela dimensão da condição humana que é quase impossível de definir por conta das miríades de explicações, cogitações, ponderações e conceitos, mas que todos os humanos, independente de qualquer condicionamento social, cultural ou econômico, conseguem sentir, saber o que é, o que significa, o que almeja sob o pavilhão da Liberdade. Contudo, como bem sabes, sábio Camus, esta sublime idéia, que vem encapando os sonhos humanos a milhares de anos, é também utilizado para aprisionar e alienar, enganar e usurpar, dominar, resignar. Enfim, para fundamentar o status no qual vive o mundo ocidental da garantia irrestrita da liberdade de acumular, explorar, enriquecer à custa de lançar por terra na mais indigna e abominável miséria, imensos contingentes de população humana.

É a economia de livre mercado. É a democracia liberal-representativa. A garantia tão somente das liberdades e direitos individuais. É como se os desiguais tivessem a mesma liberdade e condições iguais de competição na arena do mercado, orquestrados pela sua mão invisível. Essa falácia construída no século das luzes para solapar o Cetro, serviu de forma legítima, para não dizer, descarada, para engordar as ricas panças da burguesia internacional, e acumular a maioria das riquezas do planeta nas mãos de meia-dúzia de especuladores, vulgo: investidores.

Nesse sentido, caro Camus, sou quixotescamente romântico quando considero a liberdade como a concretização do projeto iluminista da perfectibilidade humana – mesmo que ela tenha se degenerado nas mãos dos senhores do status quo em um liberalismo cínico e usurpador. A possibilidade de criar uma ordem das coisas na qual todos os homens possam desenvolver seus potenciais em comunhão com outros homens, ultrapassando, assim, o reino da necessidade para o reino da liberdade. Será isso, possível, amigo Camus?

Desigualdade. Camus, meu caro, apenas não consigo julgar natural, ou uma fatalidade qualquer, ver uma pessoa passar fome. Não consigo naturalizar a pobreza. Ver pessoas vivendo de salário mínimo. Uma minoria desfrutar com riqueza de desperdício o que é produzido pela imensa maioria. Ver em uma profusão quase infinita vidas serem dilaceradas pela falta de proteína, vitaminas, sais minerais, uma deficitária dieta de calorias, gastando suas últimas energias na esperança assentada em um genuflexório orando. A alienação advinda do analfabetismo, nos poucos anos de estudo, do não saber o que se está lendo, ou fazer contas, acreditar piamente no que o padre diz, no que o pastor diz, no que o prefeito diz, no que o deputado diz, o empresário diz, o senador diz, o juiz diz, o presidente diz, como se fosse a encarnação da vontade divina. A desigualdade, caro Camus, faz com que a gente simples não conheça a força adormecida em suas mãos e pés calejados pelo labor. Qual seria a solução, Camus?

Vale, realmente, a penar viver tudo isso? Não sei, Camus. Contudo, obrigado por me ouvir. Muito prazer, chamo-me Violante.

(Felipov)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Florbela






Vou me entorpecer bebendo vinho
Eu sigo só o meu caminho

(Bebendo vinho – Ira!)



Rabugenta, chata, sensível, chorona, altiva, indignada. Florbela é como meus amigos me chamam. Poucos amigos. Meu nome nos registros oficiais de identificação do Estado é Flora Joana Moraes. Gosto que me chamem de Florbela, é uma das minhas poetisas favoritas. Além de achar sonoramente encantador, passa a idéia de tranqüilidade, ingenuidade, beleza. Bebo um gole de vinho tinto. Sempre sinto o cheiro, antes de cada gole, é quase uma mania, neurose, sei lá. Aprecio do cheiro de vinho, eu tenho uma fixação por cheiros. Ele me seduz. Dou generosas goladas, que, às vezes, ou sempre, não sei bem, meu estado de consciência alterado não me deixa fazer um julgamento correto, mancha quase todas as minhas roupas. As minhas parcas e esfarrapadas roupas de pessoa de poucos rendimentos que compra retalhos para cobrir suas vergonhas em brechós e liquidações nos comércios fétidos e inóspitos, localizados nas periferias.  Bebo apenas vinho. Fumo cachimbo. Tabaco tem que ser natural, tenho que sentir seu cheiro adocicado, negro, meio amarronzado, destrinchá-lo, colocar pequenos punhados no cachimbo, tudo feito com destreza e técnica, o trabalho manual me deixa feliz. Sinto o gosto das uvas fermentadas que aliviam as minhas dores. Muitas dores. Vinte e oito primaveras mal vividas. Tenho uma memória péssima. Um esquecimento patológico. Na verdade, sou muito seletiva com as minhas recordações. Sempre retenho aquelas que mais me provocam sofrimento, dor, angústia. Órfã, herdei a tragédia do seio familiar. Meu pai, um bêbado, filho da puta, vagabundo, que sobrevivia da jogatina, pequenos roubos, trapaças. Minha mãe, uma mulher trabalhadora, fez a quarta série, mal sabia ler e escrever, ela trabalhava dia e noite, para me criar, era filha única. Uma família que sobrevivia com um salário mínimo, ou menos.  Sempre se preocupou com a minha educação. Tinha um cuidado excessivo comigo, tinha medo que abusassem de mim, sabia o meio social no qual vivíamos de profusa violência. Num dia de chuva, tinha quinze anos, chego em casa, depois de um dia cansativo na escola. Meu pai estava espancando a minha mãe. Ela estava desfalecida, quase morta, provavelmente morta, sangue, hematomas por todo o corpo, nariz quebrado, mandíbula deslocada, olho roxo. Quando vi isso, fiquei cega de ódio. Fui até a cozinha, não emite nenhum som, peguei a maior faca e gritei: “Bastardo! Filho da Puta!”. E quando ele me olha, surpreso pelos xingamentos, com olhar sanguíneo pela insolência, enfio a fala na altura do pescoço. Mais um golpe entre as costelas. Nunca se senti mais viva do que naquele momento, quando senti a lâmina afiada da faca fazendo justiça, destrinchando ossos, músculos e sangue daquele ser perverso que apenas merecia a morte. A morte de sua própria carne. Depois deste dia, fui morar sozinha, no cubículo que hoje chamo de lar, no qual estou deitada, bebendo e fumando direto há três dias. Resignada. Consciência pesada. Preguiça. Estou na décima garrafa de vinho de baixa qualidade, baratos, brasileiros. Matei meu namorado anteontem. Matei ele e a vadia que estavam fodendo em cima da minha cama. Ele estava comendo o cu dela, no momento em que chego em casa, depois de um dia cansativo de trabalho, trabalho como recepcionista em um escritório de advocacia no centro. Depois que fui morar só, sempre tive uma arma guardada na minha gaveta de calcinha por uma questão de segurança. Não fiz nenhum alarde. Calmamente, pedia apenas que se vestissem e saíssem. Silêncio. Seis tiros. Descarreguei a arma naqueles filhos da puta. Pedi imediatamente para o Ninja, o traficante do bairro, que sempre foi meu chapa, para que limpasse o local e desovasse os presuntos. Expliquei a razão: manutenção da honra. Ele disse: “Não tem treta. Mana, és da firma. Pode contar comigo”. Ele sempre foi a fim de me comer mesmo, liberava às vezes, mas amava aquele filho da puta que estava comendo o cu daquela puta, daquela vadia na minha cama. A culpa estava mortificando-me. A consciência da culpa estava me matando. As cenas, os fragmentos, as imagens das mortes que protagonizei vinham em minha mente com precisão cinematográfica. Fui educada sobre o prisma moral cristão. Todo o pecado tem seu castigo. Daí, a razão da minha culpa. Contudo, a vida, a vida concreta que vivia nas ruas, nas relações humanas, no trabalho, na família, me fez relativizar aquele padrão moral. A vida é muito mais complicada e complexa para ser limitada a idéia de pecado ou graça. A morte é a única realidade sólida que sempre lidei. Eu tinha algum amor por aquelas pessoas que matei, o sangue que derramei. Todavia, o amor pela minha mãe, e meu amor-próprio falaram mais alto, é algo quase instintivo, instinto de sobrevivência. O lado animalesco tomando as rédeas das ações conscientes. A pulsão de morte. Estou com fome. Preguiça. Cheiro, e mais um gole de vinho. Uma tragada, a fumaça sobe com uma nuvem. O gosto do tabaco e vinho na minha língua acalentam a minha dor. O vinho e o tabaco estão acabando. Preguiça. Merda! Vou ter que sair na rua. Merda! Mil vezes merda!

 (Felipov)

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Sepúlveda






Senil, velhice carcomida, meio corcunda, gesticular nervoso ao falar, empostar de voz, retórica de falar merda com convicção, voz grossa de tenor, rabugento, chatice atávica, um ralo cavanhaque, bigode amarelado pelos cigarros fumados, impávida calvície, cor da tez branca encardida, olhos azuis, sorriso triste e resignado, cigarro aceso sempre entre os dedos amarelados pela nicotina acumula de uma vida, copo de cachaça ao lado, fiel e inseparável companheiro, algumas culpas, sempre há culpas, remorsos, remorsos de homem honesto e sincero consigo mesmo, cansaço, o cansaço adquirido pelas inúmeras responsabilidades e obrigações que fizeram ser o que era: um homem amado, admirado, temido, odiado, invejado. A família, o trabalho, a devassidão, a boêmia, e muitas coisas inacabadas no decorrer da vida, Sepúlveda estava fenecendo.


Vida dura, cheia de desventuras, sofrimento, esperanças. Pelo acaso, ou providência divina, não se sabe ao certo, na verdade, se colocar em dúvida as possíveis causas e razões, conseguiu chegar aos cinqüenta anos. Parciais em força e virilidade, Sepúlveda enfiava-se a ser garanhão. Libertino, filho da puta, todos os finais de semana freqüentava as casas de tolerância, os puteiros, as zonas, procurando sua maior diversão: trepar a dinheiro. Gostava de pagar por sexo. Tinha quase obsessão em sentir prazer sem ter que se preocupar com sentimentos, culpas, paixões e amores. Carnal, simplesmente carnal. 


Ele gostava de putas, da sua sensualidade artificial, de acordo com os cânones dos filmes pornográficos, os farrapos de roupas compradas nas feiras de artigos importados, as banhas saltando da barriga pela alimentação barata e gordurosa, o cheiro de suor daquele lugar abafado misturado com odor de cigarros e perfume barato, não tinha preferência por cor, raça ou credo, a única exigência que tinha era: enrabar. Se a puta não liberasse, ele utiliza de seus artifícios de macho no cio. Todas as putas que frescaram com ele, liberaram o cuzinho na hora. Todas, e apenas liberavam para ele. Já era cliente antigo de todos os estabelecimentos da cidade. Era conhecido como Sepúlveda, o camarada das putas. 


Estava jurado de morte por suas atividades políticas: sindicalista e comunista renitente. Lutava no interior do Pará pela reformar agrária e pela revolução social. Filiado ao Partido Comunista desde a adolescência, era um dos mais destacados militantes em toda a sua trajetória. Com sólida formação política, aprendeu a ler tardiamente, depois dos quinze anos, de família camponesa, compreendeu o seu lugar no mundo e as contradições sociais na vida diária, na vida de sua família, na vida dos pais famélicos da terra, dos seus inúmeros irmãos exaustos de trabalhar na terra, e mortos de fome e cansaço ao fim do dia, na opulência e riqueza do fazendeiro que comprava a produção das suas roças a preço irrisório como a ato dissimulado de prestar um favor a meia-dúzia de mortos de fome, foram esses acontecimentos que o formaram politicamente, mas Sepúlveda queria saber as causas disso, dessa miséria ao lado da riqueza, da humilhação compartilhando o mesmo espaço do sucesso, queria saber as razões dessa lógica social perversa que todo dia matava aos poucos a ele e sua família. 


A filosofia da práxis foi sua resposta. Explicar o mundo, o real, a vida cotidiana pautada pela síntese de múltiplas determinações que produzem a totalidade social, quando os políticos desviam dinheiro público, pessoas morrem nos hospitais, professores são mal pagos, a pobreza aumenta, a riqueza se concentra, a luta de classes em uma sociedade fundada no antagonismo de interesses sociais, porque quem paga salário nunca vai ter os mesmos interesses de quem vive do mesmo salário, eles não vivem no mesmo bairro, não tem a mesma educação, não tem o mesmo nível cultural, não tem os mesmos gostos, preferências, ou interesses políticos, em suma, não tem a mesma visão de mundo, que a infra-estrutura econômica, em última instância, determina as relações superestruturais, no qual a maior oferta de crédito, pessoas consumindo, deus abençoando os lares, fábricas produzindo, empresários acumulando, juízes garantindo a ordem social, a complexidade da divisão do trabalho, sobretudo, na separação entre trabalho intelectual e manual, os produtores diretos, cultivam a terra, bóias-frias, semi-escravos da terra, aqueles que constroem o mundo, os prédios, as pontes, enfim, a vida concreta, os trabalhadores vivem com minguados salários, de outro lado, os profissionais das atividades qualificadas, médicos, advogados, engenheiros, administradores, políticos, enfim, todos aqueles que pelo adestramento de noções conceituais que mantém o status quo, e os seus polpudos rendimentos que reproduzem o sistema. 


Suas relações familiares eram estranhas. Casou-se, um matrimônio de três décadas. Não tinha filhos. Miranda, Dona Miranda, sua mulher. Católica e conservadora. Concordava com as idéias e atividades do marido. Não se envolvia, foi ensinada que comunista era autoritário, comedor de criancinha, descrente, desobediente. No entanto, antes de ser comunista, ela amava Sepúlveda, amava o homem por trás do comunista. Fumava desesperadamente. Bebia pouco, apenas para manter a paz no lar. Não gostava de ficar bêbada, achava que isso não era coisa de pessoa respeitável, cristã como ela. Os trabalhos domésticos eram a sua razão de viver. Obviamente, a contragosto de Sepúlveda, que não media esforços em politizar a mulher, lia o jornal, empresta livros, discutia com ela assuntos do cotidiano. Nada. Ela sabia da vida mundana de Sepúlveda, e consentia tacitamente, às vezes dava umas porradas nele quando chegava bêbado, com cheiro de puta, sujo de batom. Ela perdoava. Sempre perdoava. Era o amor de Deus agindo em seu coração, a piedade cristã. E o seu amor. Era o seu Sepúlveda. O seu homem. O comunista das putas. 


Ultimamente, Sepúlveda estava nervoso, inquieto. Grandes extensões de terras improdutivas foram ocupadas pelo Movimento Sem Terra, várias reintegrações de posse foram impetradas por juízes, a polícia estava agitava e ameaçando a muito tempo invadir e expulsar toda aquela corja de vagabundos improdutivos, mas aquela altura, apenas ameaçava. Sepúlveda sempre estava nos acampamentos, pelo menos três dias da semana, coordenando as atividades de mobilização política. O Estado estava em guarda para garantir o monopólio da propriedade. Os acampamentos estavam quietos, a vida transcorria calmamente. Subitamente, de um dia para outro, no subir da poeira das vicinais que dão acesso a fazenda ocupada, ouviu-se o marchar compassado na terra batida. 


A polícia avançou rapidamente com coordenadas militares, treino de guerra, escudos de choque, gás lacrimogêneo, e armas em punho. Chegaram ao amanhecer. Avistaram os acampamentos, jogaram as bombas de gás, tiros para o alto. Pessoas correndo, desesperadas, sufocando, assustadas com os tiros. Mulheres, idosos, crianças. Foram os primeiros alvos. Corpos tombando. Morte sobre morte. Crianças sobre crianças. Mulheres sobre mulheres. Velhos sobre velhos. Trabalhadores sobre trabalhadores. Quinhentas pessoas foram sumariamente executadas, covardemente, sem a possibilidade de defesa, para garantir o direito de propriedade. Não houve sobreviventes. Sem testemunhas. O crime perfeito. O Estado fez seu papel – um crime de Estado. Sepúlveda morreu com um tiro na cabeça. Morreu sem a utopia. Morreu sem a Revolução. Que Marx o tenha!

(Felipov) 

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Ela paga o aluguel (*)





Ela paga o aluguel. Eu fico estirado neste sofá todo tempo, todos os dias, esperando algo que não chega, ou algo que chegou e partiu, sem que eu pudesse mover minhas mãos, acostumadas aos controles de jogos, para pegá-lo. Não sei o que me escapou, se é que isso aconteceu, mas reconheço que o que mais passa por mim é o tempo. Ele foge, cai, escapa, sangra em milhares de gotículas vermelhas de segundos e centésimos, através das horas e dias, semanas, meses e anos, onde eu esqueço completamente as convenções nominais, de terças, quartas-feiras, e ordens de imperadores romanos, cristalizadas por mandamentos papais na cronologia nossa de cada dia. Hoje é abril? Maio? Há quantos anos morreu o que foi crucificado? O filho de mais essa abstração que não habita a cabeça que acostumei chamar de minha quando estou acordado, estirado, como sempre, nesse sofá, vestindo meu moletom azul, barba crescida, olhos vidrados na tela do computador, esperando a hora dela voltar da rua.

Parasita? Não, um parasita ainda tem algum desígnio, alguma missão, algum trabalho de grande valia a realizar no mundo, qual seja, o de estar vivo e aproveitar-se da vida alheia com a finalidade mais-que-sagrada de também manter-se vivo. Não, sem dúvidas o parasita e o hospedeiro mantêm uma relação de mutualismo. A ecologia está errada. Não há nada que o hospedeiro mais deseje que alimentar o parasita, pois aí ele poderá atribuir seu desânimo, as suas crises fisiológicas, a enxaqueca que lhe atormenta, os seus acessos de vômito, a podridão do seu cotidiano a um agente externo, a essa rêmora, que nada mais faz que se alimentar das migalhas de vida do seu tubarão. O parasita elimina a dúvida do hospedeiro, personifica os males que ele não pode pensar que não tenham causa ou cura. Não, minha vida não tem nada dessa pequena grandiosidade, desse microcosmo, dessa holística perfeita. Não. Eu apenas estou deitado nesse sofá.

Escrevo. Sim, escrevo. Escrevo porque cansei de matar alienígenas, terroristas, alemães, árabes, gente branca, gente negra nos jogos eletrônicos. Às vezes cansa ser deus ou americano nesses aparelhos. Nem sempre me canso, razão pela qual nem sempre escrevo. Nem as palavras perdem o valor porque não são escritas, nem eu perco nada porque não as escrevi. Palavras que não são usadas não valem nada de qualquer maneira, são só um monte de letras prensadas e encadernadas nos dicionários que ninguém consulta, ou um monte de dados binários alocados em algum servidor, como há milhares desses, dispersos pelo mundo como grandes latrinas da globalização. Não há o que perder para mim também. Não tenho nada que perder, nunca ganhei nada e o pouco que herdei perdi numa quinta-feira. Isso foi numa época em que eu ainda sabia os dias da semana, distinguia uns dos outros, caminhava pelas ruas e sentia o odor agradável dos escapamentos dos carros misturado à imundície das ruas dessa capital, ficava espantado com os estúpidos que resmungavam nos fóruns onde eu julgava lides, demandas, processos, quando um trinta e oito e poucas balas ofereceriam uma justiça de melhor qualidade a qualquer interessado. Só não posso dizer que isso faz muito tempo, pois essa noção está no bolso de dentro do paletó desse homem de quem eu falei, que guarda semelhanças físicas e emocionais com este indivíduo que passa os dias neste barato sofá azul, já rasgado em vários pontos, nos quais pode se ver a espuma suja saindo, num paraíso para ácaros e doenças respiratórias, como diria o doutor Dráuzio Varela.

Doutor Dráuzio, o que quer um indivíduo morbidamente exilado num sofá da vida? O que ele deseja? O que acontece na mente dessas pessoas que não produzem, que não trabalham, que renegam tudo que na vida podemos chamar de respeitável? Doutor Dráuzio? Doutor, o senhor me ouve? Ou será que ouve apenas os presos, os homossexuais, os portadores de doenças infecto-contagiosas? Eu sou branco, tive uma excelente educação, filho de uma boa família, o senhor me ouve Doutor Dráuzio? O que tem de errado comigo? Seu velho careca, politicamente correto, embusteiro, demagogo, dono de um texto vulgar, clichê, empregado da Rede Globo, possível eleitor do PSDB, do PT, de qualquer outro partido. Pensa que nesse mundo o que conta é ser bom, é ajudar as minorias? Doutor Dráuzio, eu queria que o senhor, com todo esse seu bom-mocismo, esse seu anti-tabagismo, essa sua moderação, estivesse um dia sentado aqui nesse sofá e eu lhe mostraria a minha versão do mundo. No meu mundo só há o sofá e a espera. Ele é vazio, propositalmente vazio, desesperadamente vazio. Doutor Varela, mestre da medicina humana, artífice do sentimentalismo dos fisiologistas, ilusionista do afeto, venha cá e eu te mostrarei o paraíso, serei o teu Jesus Cristo e tu serás o meu João Batista, um primo distante, cuja sagrada cabeça ornamentou uma mundana bandeja. Aqui no meu mundo, o sagrado e o mundano sempre estão combinados, juntos, de mãos dadas, como o sofá e a espera. Pensando bem, não venha. Não gosto de visitas. Pode continuar a chafurdar na sua bondade.

Quando chove, eu me sinto só. Não quer dizer que eu não me sinta só nos outros momentos, mas nesse, especialmente, me dou conta da solidão, de que ela ainda não está aqui. E como chove nesta cidade! Eu ouço os pingos começarem, como pequenas pedras no vidro da janela, chego perto e vejo o céu cinza, raios, ouço os trovões, e logo começa a chuva propriamente dita, para lavar essa cidade suja e para sujá-la onde está limpa, exatamente como ocorre aos seres humanos, nos quais uma chuva pode despertar para o que é bom ou ligar o botão, permanentemente acessível, do inferno, desse lugar onde o diabo brinca com os homens, como pequenos bonecos de plástico. Eu sei que talvez isso seja demais, talvez a sua vida não seja diferente. Todo mundo sente coisas diferentes quando vê a chuva, quando vê o céu, quando enxerga as águas barrentas da baía, do alto do sétimo andar de um prédio público, esperando as cinco da tarde, mas o que é seu é seu, e o que é meu, meu mundo, é só lançar olhares furtivos para a porta, enquanto encaro o teto, deitado de peito para cima no sofá, ouvindo a chuva, esperando que um meteoro acabe com este corpo celeste no qual habito, essa sucessão de esperas, até que chega ao fim, silenciosa como o apocalipse, a falta que ela me faz. Ela abre a porta. Ela tem a chave. Ela paga o aluguel e entra sorrindo, acabando com tudo que é meu e eu me encontro, instantaneamente teletransportado, em tudo que é dela, que me fala na única língua que compreendo, na única língua viva do mundo, nessa língua que me diz tudo sem fonemas, sem símbolos, sem fala, só o silêncio de um olhar mudo e um corpo que eu capturo em meus braços, num só movimento, rezando a ela que não saia de novo, e seus lábios então se movem, dizendo que está de volta. Suas palavras reverberam tanto na minha cabeça que nem percebo que a chuva passou e, enrolado nela, deitados no sofá, digo, sem palavras, o quanto estou feliz, por não sentir falta do tempo.

(Igor Farias)

(*) Mais um texto do simpatizante-colaborador deste blog. Obrigado por mais esta brilhante contribuição.  

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Misantropia



Moro sozinho. Acabo de assistir televisão. Deitado no sofá. Bebia café. Preguiça, espreguiço-me. Olho para o teto. Observava um telejornal qualquer, com pouco interesse. Com as noticias de sempre. Corrupção, mortes e bundas. E penso.

“Tem alguma coisa muito errada comigo. Só pode ser. Ontem assistindo televisão, vi tanta atrocidade, atentados claros a inteligência de qualquer pessoa que consegue pensar minimamente. Incrível isso. Um absurdo. Hoje a mesma coisa. E amanhã, provavelmente, será a mesma coisa. Para onde vamos assim? Que tipo de sociedade é essa que se apregoa a liberdade em todos os sentidos, mas não se tem a liberdade de pensar. Estamos progressivamente menos informados com abundância de notícias. Alienação por excesso de informação. Um programa encarcerar meia dúzia de idiotas funcionais famosos que se digladiam, caluniam, difamam em troca de um milhão de reais – demonstram que o dinheiro compra qualquer coisa, até a vergonha da exposição pública. É o “jogo”. Outro trata da cor do vestido cafona da atriz que ganhou o Oscar. Outro vende uma churrasqueira que só falta matar o boi, assar a carne e mastigar por mim. Viver por mim. Crianças assistem desenhos nada infantis. As crianças não são mais infantis. São adultos em miniatura. A desgraça, a morte, o sofrimento alheio são explorados como factóides que duram os efêmeros minutos que valem como furo, duram enquanto rendem lucros aos patrocinadores, duram até que possam convencer potenciais consumidores. A existência televisionada. Por que? Qual a razão disso? Qual o sentido disso? Sou apenas eu que repara isso, e fica incomodado, com esse mal-estar. É isso, é precisamente isso que sinto: mal-estar. É esse mal-estar que me faz pensar. Temos a liberdade de expressão, mas não é oferecida a liberdade de pensamento. Digo isso pela simples razão de que para se promover a liberdade em qual seja a sua dimensão é indelével que se possibilite os meios para tal se objetive. Claro está, isso não ocorre. De maneira similar, equivale dizer que uma pessoa com fome tem o direito de comer. Ora, fracamente, do que adianta ela ter o direito de comer, senão tem dinheiro para comprar o alimento necessário para mantê-la viva – fisiologicamente viva. A mesma coisa ocorre em se ter o direito a liberdade de expressão, com a abundância de informação, se isso não possibilita o pensamento. Mas, pensando melhor, isso faz todo o sentido. Essa promoção em massa do não pensamento. Pensar é fundamentalmente questionar, problematizar, duvidar. Isso é subversivo em si. Imagina a imensa maioria das pessoas pensassem. A corrupção não seria algo normal, quase natural. Pessoas morrerem na portas de hospitais não ia ser algo corriqueiro. O salário dos deputados, senadores e congêneres não seria uma fatalidade necessária da democracia. O governo garantir o lucro dos banqueiros uma maneira de manter o livre mercado. Professores, bancários, carteiros, operários da construção civil, trabalhadores, assalariados em geral fazerem greve por salários dignos, e não serem criminalizados no seu direito de greve. Pessoas jogadas na rua como farrapos humanos seria visto como um crime contra a humanidade. A fome seria um atentado violento contra a integridade humana. O analfabetismo um ataque contra a democracia. As livrarias seriam mais freqüentadas. Cada pessoa leria mais livros por ano. Enfim, as pessoas, as pessoas, as pessoas. Se as pessoas pensassem eu não precisaria estar aqui cogitando como o mundo seria se elas pensassem. O meu problema é que eu não aceito as pessoas com a sua estupidez. Eu não aceito a minha própria estupidez. Qualquer tipo de mudança efetiva, revolucionária, em última instância, vai ser encampada por essas pessoas estúpidas. Na verdade, é necessário cultivar o pensamento em um processo progressivo e irreversível de elucidação. Pois, salvo me provem contrário, pessoas estúpidas não fazem revolução. Revolução, tão atual e anacrônica, tão século XX, e na ordem do dia do século XXI. Onde queres um lar, Revolução”.

Passado o devaneio, fui tomar banho e dormi. Amanhã vendo a televisão e vou comprar uns livros no sebo. E café, que acabou.

(Felipov)

sábado, 5 de novembro de 2011

Silêncio





Muita chuva. Era inverno. Ruas alagadas. Lama, limo e fedor de esgoto. Pés molhados, sujos de lodo, sandálias na ponta dos dedos, sapatos nas mãos, calças aos joelhos, vestidos na mão. A vergonha fincava os rostos. Casas velhas de madeira, tetos de brasilit, sem calçada e sarjeta. Ladeadas por casas de alvenaria, erguidas toscamente, cheias de infiltrações e rachaduras, construídas com muito esmero, suor e trabalho. O orgulho de ter seu quadrado no mundo acalenta os corações de gente simples. A satisfação da garantia ao direito a propriedade – garante o status quo. Dona Coralina entra no hospital. Silêncio – diz a placa. Muitas pessoas em filas – um burburinho frenético de conversas paralelas. Urgência. Emergência. Consultas de rotina. Todos juntos. Compartilhando o mesmo espaço. Fraturas, vacinas, doenças infecciosas. Pacientes. O cheiro de álcool, característico de hospitais, empestava o ambiente, ao lado, do odor forte de desinfetante, de suor provocando pelo calor da multidão aglomerada, e perfume barato. Corredores nauseabundos com doentes empilhados uns sobre os outros. Soros suspensos atrapalhando a passagem, enfermeiras enlouquecidas andam por todos os lados fazendo trabalhos de médicos. Diagnosticam, medicam e despacham. Dona Coralina não consegue ser atendida na hora. Por conta de uma fratura ao varrer sua casa, procurou o hospital. Nos próximos dois meses foi marcada sua consulta. No diagnóstico, a enfermeira não fez perguntas vitais para uma idosa de 75 anos com uma fratura simples: se era portadora de doença crônica. Dona Coralina é diabética. Dois meses depois, ela voltou. Resultado: perdeu a perna. Silêncio – diz a placa. Seu Salvador, com falta de ar, foi ao hospital procurar atendimento. Sofre de hipertensão. Não foi atendido. Razão: leitos ocupados. No meio do caminho, procurando outra unidade de saúde, vem a óbito. Ataque cardíaco fulminante. Silêncio – diz a placa. Tereza estava no oitavo mês de gestação. Gêmeos: Rafaela e Camila. Contrações em intervalos cada vez menores acusavam que suas filhas queriam vir ao mundo. Já estava na procura do terceiro hospital, no momento em que as meninas nasceram. Natimortas, o marido fez o parto, na frente, na calçada do quarto hospital. Uma maternidade de referência. Havia leitos. Silêncio – diz a placa. Davi tem Aids. Precisa tomar seu coquetel com freqüência. É portador a cinco anos. Vive com relativa qualidade de vida. Há dois meses não tomava o coquetel. Estava em falta no hospital. Morreu ontem por conta das complicações de uma gripe. Silêncio – dizia a placa. Mortes, mortes, mortes habitam o local no qual deveria garantir a vida. Os hospitais viraram a ante-sala dos cemitérios. Médicos e coveiros são parceiros de profissão, um diagnóstica a morte, o outro a enterra. E a vida segue, de morte em morte, entre os doentes que sofrem, aqueles que têm saúde e são indiferentes, e outros que compram sua saúde e estão pouco se importando se meia dúzia de pobres estão morrendo. E de quem é a culpa de tantas mortes? Sua, caro leitor, a culpa, a razão, o motivo, a explicação para tantas mortes é sua. É você quem promove tantas mortes estúpidas e evitáveis no momento em que escolhe por livre consciência, ao menos suponho, já que vivemos em uma democracia, os seus representantes para gerir a coisa pública. São os seus representantes que, ao gerirem o Estado e administrarem o dinheiro recolhidos nos impostos, promovem tamanha carnificina. A corrupção mata mais que uma guerra. A corrupção matou aquelas pessoas. E você, meu caríssimo leitor, você opinião pública, você é quem escolhe a corrupção. Silêncio – diz a placa.

(Felipov)

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Brasileiro (*)





Mais um dia, mais uma manchete. Ao sair de casa para trabalhar, Zaqueu pegou um jornal na banca de revistas da esquina e, sem o mínimo espanto, leu a primeira página, que estampava mais um caso de corrupção. Ministro fulano é acusado de suborno, presidente nega conhecimento. Deputado  diz que não tem conta bancária no exterior, senador implicado em esquema de fraudes em licitação. Tanto faz o que era. No outro dia, esses mesmos jornais estão com outras matérias e os anteriores estão forrando gaiolas, embrulhando peixes ou servindo de recortes para trabalhos escolares, o barulho é efêmero e a opinião pública, volátil. Daqui a alguns anos todos voltam, eleitos e reeleitos. Somos cordiais, cristãos, perdoamos, aceitamos, comungamos, elegemos, trabalhamos, desenvolvemos, lemos, amamos e vivemos, absortos nos nossos infernos, públicos e privados, altruisticamente egoístas.

Zaqueu tomou o ônibus na quinta quadra do Setor Sudoeste e encaminhou-se para a Esplanada, onde trabalhava no  Ministério dos Transportes como analista administrativo. Entrou no prédio, bateu o ponto com seu polegar. Pensou o que pensava todos os dias, Como alguém que não tivesse as mãos poderia bater aquele ponto biométrico? Riu sozinho da observação, como sempre, pois que valia tem alguém que não tem as mãos para o serviço público? Como vai carimbar, assinar, registrar, segurar as xícaras que substituíram os copinhos de café? Chegou ainda sorrindo à sua mesa, no segundo andar, o que lhe valeu a simpatia dos seus colegas. Sempre apreciamos pessoas felizes, alegres, radiantes, simpáticas.

Trabalhava com processos administrativos. Basta que se diga isso, pois tudo na administração pública compõe processos, desde a aquisição de papel higiênico até a concessão de passagens para os assessores do ministro irem para Fortaleza participar de eventos nos resorts cearenses. Uma sucessão de papéis, numerados e rubricados, contendo atas, editais, nomes, atestos, carimbos e mais uma extensa lista de abstrações documentadas, reunidas num volume organizado criteriosamente, com o pretexto de atribuir lisura e legalidade aos atos administrativos. Qualquer desavisado, selecionado às escuras numa escola, pública ou privada, que botasse a vista no conteúdo das caixas de plástico que repousam na mesa de Zaqueu não lhes atribuiria nenhuma dessas divinas qualidades. Diria apenas que é uma pilha de papel, apropriada para os mesmos usos dos jornais de ontem.

Para Zaqueu não era diferente. Se botassem um baú cheio de merda no lugar daqueles papéis mofentos a sua frente, limitaria-se a colocar luvas e máscara e prosseguiria com o manuseio, esperando, como sempre, o primeiro dia útil de cada mês, único dia em que acreditava no que estava fazendo. O pagamento e a estabilidade num país como o nosso, tudo isto conta muito. E além do que, não é tão ruim assim trabalhar sete horas por dia revirando documentos, revisando, listando itens essenciais e supérfluos. Poderia ser pior, afinal, há pessoas que realmente lidam com baús de merda. Este pensamento sempre animava Zaqueu, como uma piada que lembramos sozinhos e não dividimos com os outros, receosos que a graça se perca.

Hora do almoço. Zaqueu desceu os dois andares pela escada e, chegando ao térreo, foi ao banheiro. Esperou que um outro servidor público saísse e logo depois entrou para o sanitário, fechando  o trinco da porta. Próximo ao chão, deslocou um azulejo que estava solto, revelando um buraco que continha uma caixa de ferramentas, que puxou para fora, botando em seguida o azulejo de volta. Rapidamente saiu à rua, que a esta hora estava apinhada de funcionários públicos, pegando seus carros ou comendo lá mesmo, em carrinhos que vendem comida. Pegou um táxi e disse ao motorista que o deixasse no Memorial JK.

Conversou animadamente com o taxista sobre futebol, era quarta-feira e o time para o qual torciam iria jogar contra o líder do campeonato naquela altura. Chegaram. Demorou um pouco pois era quarta-feira, muitos parlamentares e assessores, muitos carros e poucas vias para os mesmos poucos lugares. Zaqueu pagou trinta reais e disse para o outro ficar com o troco, um e vinte e cinco, prontamente aceitos pelo taxista. Desceu ansiosamente do carro e pôs-se a caminhar e já ia a uns duzentos metros quando sentiu uma mão pesada no seu ombro. Assustado virou-se e viu que era o motorista com a caixa de ferramentas: havia esquecido no carro. Agradeceu e quis até lhe dar mais dinheiro, mas, quando ia pegar a carteira, desistiu. Deixou na conta da gentileza e ambos seguiram seus caminhos.

Zaqueu caminhou pelo imenso canteiro, de mato ralo e algumas árvores, enquanto os carros seguiam pelas veias e artérias da capital. O clima estava quente, mas seco e soprava uma agradável brisa. Depois de ter andado um bom bocado, subiu numa árvore pequena e ficou observando o movimento da via. Sentiu de repente uma grande paz, e foi neste estado que tirou as partes do rifle, que estava desmontado dentro da caixa de ferramentas. Montou cuidadosamente, lustrando as partes com uma flanela laranja e checando cada peça, cano, gatilho, trava. Colocou uma mira de longo alcance na alça e carregou a arma. Apoiou a soleira no ombro direito e observou pela lente. Ele não deve demorar muito, pensou.

Demorou vinte minutos. Na entrada da refinada churrascaria parou um carro importado, alemão, preto. A placa oficial não deixava dúvidas, era muito importante a pessoa que descia do carro, rumo à porta do restaurante. Zaqueu olhou aquela cara, aquele bigode, aqueles anos todos, aquelas manchetes todas, aqueles dias todos. Hoje é diferente, pensou Zaqueu, hoje alguém vai reagir. O senador caminhava lentamente, com seu passo solene de autoridade, cercado de assessores e um segurança que, desacostumado às ameaças, distraidamente falava ao celular. Quando chegou em frente à porta de vidro, que um dos seus asseclas abriu prontamente, parou. Sentiu que esquecia alguma coisa, bateu com as mãos nos bolsos do paletó. Não deve ser nada, pensou, ainda querendo saber o que era. Foi pouco tempo que durou este pensamento porque Zaqueu apertou o gatilho e a bala foi mais rápida que a memória do senador, que já andava um tanto falha, e logo os neurônios do parlamentar decoraram a vitrine da entrada da churrascaria, onde estavam expostas algumas peças de carne bovina sob uma luz forte, simulando fogo.

O tumulto foi generalizado, os seguranças corriam de um lado para o outro sem saber o que fazer, ligaram para polícia, para o exército. As pessoas ilustres, outros parlamentares, empresários reunidos com eles, todos saíram para ver o corpo do velho oligarca quase sem cabeça, estendido na entrada. Os mais afoitos fotografavam, os cinegrafistas amadores filmavam com seus telefones. Zaqueu assistiu à aglomeração, ao furdunço, de longe, ainda trepado na árvore. Quis contemplar por alguns momentos o seu feito. Por alguns segundos, ele se demorou ali, parado, com o espanto estampado no rosto, enquanto segurava o rifle ainda quente do tiro. De súbito, despertou e limpou a arma com a flanela, encaixando-a, junto à caixa, nuns galhos acima de sua cabeça. Desceu quando o trânsito estava já sendo paralisado e as primeiras sirenes já se ouviam, um pouco longe.

Começou a andar rapidamente até a parada de ônibus. Suava muito, mas o calor não deixava espaço para suspeitas. Havia muita gente no ponto e Zaqueu ficou preocupado. Ainda não sabem, não deu tempo, pensava enquanto revia todos os seus atos desde que chegara ao trabalho naquela manhã. Não há motivo para alarde, repetia.

O trânsito andou um pouco e o ônibus chegou. Subiram todos e Zaqueu sentou-se ao lado de um rapaz. Há poucas coisas mais irritantes do que engarrafamentos, ainda mais aquele, que ninguém sabia o que estava provocando, mas já se tinha certeza que era algo de anormal. Começaram a brotar soldados e cabos, correndo de um lado para o outro, brandindo fuzis e recebendo ordens dos sargentos, Cobre aquele lado, O outro, Porra, deixa de ser surdo, cabo Souza!, e outras coisas desesperadas de quem não sabe o que fazer. Estavam abordando todos os transeuntes e logo começaram a revistar os veículos parados no trânsito.

Zaqueu começou a ficar nervoso, aquilo não estava nos seus planos. Não pensou que eles iriam paralisar o tráfego tão cedo, nem que os militares chegariam tão rápido. A rapidez se deu porque havia um destacamento de duzentos homens próximo, voltando do Estádio Mané Garrincha, onde tinham participado de um treinamento com vistas à Copa do Mundo. Naquela altura, o crime já estava nas redes sociais e as autoridades já haviam sido acionadas, movendo toda a geringonça brasileira de segurança. Policiais militares mal treinados, policiais civis corruptos, policiais federais indolentes, forças armadas, pobres e emburrecidas pela Nova República, como garantia de aniquilar seus impulsos golpistas. Não tenho arma e não tenho nada que me incrimine, estou tranquilo, pensava.

Chegou a vez do ônibus em que estava Zaqueu. Entraram dois militares e começaram uma gritaria, Todo mundo calmo!, naquele velho estilo nacional de cooperação compulsória, intimidação amigável. O soldado foi na frente, olhando cada um dos passageiros enquanto segurava baixo seu fuzil. Um cabo cobria o primeiro da entrada. Zaqueu se segurou para não gritar de desespero, manteve o sangue frio e reduziu a sua expressão a um franzir de sobrancelhas, como se dissesse, Que merda é essa?, mas continuava suando muito. O soldado continuava a examinar com os olhos angustiados os passageiros. Uma senhora espirrou e a praça virou-se subitamente e apontou a arma na cara da velha, que começou a passar mal, aumentando o clima de terror, com gritos e choros. Um velho reclamou, Que está acontecendo?. O soldado respondeu, Meu senhor, houve um crime terrível ainda há pouco ali no Setor Hoteleiro Sul, e recebemos ordens de cercar tudo por aqui. Mas o que foi?, o velho questionou novamente. Parece que mataram alguém importante, disse o soldado. Zaqueu estava paralisado de pânico e olhava para fora, evitando encarar os dois. Tudo limpo aí, Amaral?, gritou o cabo. Ao que parece sim, tudo limpo, respondeu o soldado. Saíram do ônibus e comunicaram ao sargento que estava dando ordens em forma de gritaria a um monte de outros militares, revistando veículos em todas as direções. Como assim tudo limpo, porra?! Larguem de ser frescos e voltem àquela porra daquele ônibus e me tragam um suspeito, porra! É ordem, de todo carro tirem um filho da puta!, vociferou o exaltado sargento.

Zaqueu ouviu tudo aquilo com um aperto no coração. Era o fim. O soldado entrou novamente, desta vez com o fuzil ameaçadoramente alto. Tornou a examinar os passageiros. Todos eram velhos, doentes, mulheres, japoneses, obesos demais para terem feito aquilo. Bateu os olhos onde estava sentado Zaqueu e foi até lá. Ao vê-lo se dirigir até onde estava, Zaqueu teve vontade de sair correndo, tomar o fuzil e fazer reféns, mas não conseguia mexer nem as mãos, quanto mais fazer todo este escarcéu. Esperou. Os poucos passos do soldado demoraram uma eternidade e ele se preparou para ser preso, quando seus olhos de repente miraram o rapaz que estava sentado ao seu lado. Tranquilizou-se instantaneamente, baixou a cabeça e até sorriu. Ao chegar, o soldado esbravejou, Vamos levantando!, Como?, respondeu Zaqueu. Não é contigo não, é com este elemento aí. O rapaz tomou um susto com a intimação do soldado, mas levantou-se de pronto, resmungando em voz baixa qualquer coisa. Não era a primeira vez que as ditas autoridades brasileiras davam-lhe este tratamento, era preto e pobre. Como somos cordiais, o rapaz desceu calado e o olhar de Zaqueu acompanhou-o até ele ser recolhido a um caminhão que estava improvisado de camburão, já abarrotado de pobres rapazes pretos.

Dentro do ônibus, Zaqueu era só alívio. Esparramou-se, sorrindo, no banco do ônibus e ficou ainda mais radiante quando ouviu o sargento gritando, Pode desviar esses carros, já estão limpos!, e o veículo começou a se mover. Seu telefone tocou. Era seu chefe, que disse, Zaqueu, nem precisa voltar do almoço, aconteceu uma cagada, ninguém sabe ainda o que foi, mas parece que atiraram no Presidente do Senado, está todo mundo em pânico, Tudo bem, Mendonça, estou no ônibus, está tudo parado por aqui, vou para casa então, Certo, um abração, e desligou.

Mais um brasileiro à solta.

(Igor Farias)

(*) Mais um texto de Igor Farias, colaborador-simpatizante deste blog.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Égua da largura!





“Quando eu ti vi eu gostei
Olhei nos teus olhos
Me apaixonei
E a cantada que eu te dei não sei
Estava tremendo
Confesso até que fui mais ou menos
Quando fui te beijar xonei
Quando te abracei te amei
Aquela noite falamos de estrelas
Prometi ligar liguei
E você me perguntou qual tamanho do nosso amor

Te amo um tantão assim ó
Te amo um tantão assim ó
Te amo um tantão assim ó
Te amo um tantão assim ó”

Essas ondas mecânicas produzidas por dispositivos eletrônicos que expressam experiências populares invadiam a parte de traz da delegacia. Delegacia do Jurunas. Os ponteiros do relógio já lento, quase sem pilhas, marcavam três da madrugada. Alves entra na sala de interrogatório. Uma lâmpada incandescente, duas cadeiras e uma mesa, no centro da sala – infiltrações, pintura descascando, odor de úmido e mofo. Sala da verdade.

“Pereira, por gentileza, traga o acusado. Quero interrogá-lo”

“Tá certo, dôtor, vou trazer esse filho-da-puta, o senhor trata com muita educação esses porras, eles são traiçoeiros, não podem ser tratados como gente, eles são animais, agem como animais, precisam ser tratados como animais. Ele vai ter que cantar a pedra de quem matou o nosso camarada de farda, o cabo Almir. Eu só quero saber quem foi. Só saber”

Almir era um dos investigadores, compadre de Pereira e Pantoja, homem de confiança do delegado Alves. Às dez horas da noite, estava fazendo rondas de rotina pelas ruas do bairro. Ele tinha dois problemas: ser mulherengo e beber demais. E uma qualidade: gostar de ser policial. Motivos de sua morte. Parado, perto do bar do ameba, bebia uma cerveja em serviço, como de costume, junto com o soldado Pantoja. Dois homens na moto, o passageiro saca uma punheteira, dispara dois tiros no peito do Almir, no momento em que ele levava o copo a boca. Ele não gosta de usar colete. Suas costelas ficaram dilaceradas, osso, carne e sangue espalhados na frente do bar. Pantoja ficou imóvel, atônito, sujo de sangue. Execução sumária.

“Tá aqui, o Cúrio, dôtor”

“Sente-se aí, me diga seu nome”

“Alcindo”

“Alcindo, do quê?”

“Alcindo Silva”

“Então, informações privilegiadas me confirmam que sabes quem foi que matou o cabo Almir. Quem foi?”

“Não sei quem foi”

“Vamos me diga, quem foi?”

“Não sei mesmo, dôtor”

“Ele sabe sim, esse filho-da-puta” – Pantoja mete um soco seguro na cara de Cúrio. Ele vomita uma pasta de sangue grosso, e cospe dois dentes. Alves não concordar com esse tipo de violência descabida, mas apenas olha, quer ver as reações. Sobretudo, de Cúrio.

“Bora, seu bastardo, filho-da-puta, fala quem foi que matou o Almir. Todo mundo sabe que tinhas uma richa com ele, mal-entendido, sei lá. Fala logo, foste tu ou mandaste matar, covarde” – disse Pereira.

“Caralho, eu sei que querias nos intimidar. Dar dois tiros de punheteira a queima roupa não é maldade, não é vingança, não é acerto de contas. É afronta. É desafio. É putaria-da-grossa. É colocar a prova a honra da corporação. Pode ter certeza, filho-da-puta, filho-duma-varejeira, que isso vai ter volta, não vai ficar assim. O Almir vai ser vingado, a ferro e sangue” – gritou insandecidamente Pantoja.

Cúrio ouvia a tudo de cabeça baixa, sangue escorrendo da boca, algemado na cadeira, com os braços para traz.

“Meus caros, vamos aqui fora, por favor” – disse Alves.

“Não podemos deixar esse porra respirar” – disse Pantoja.

“É verdade, dôtor” – concordou Pereira.

“Estou pedindo, por favor”

“Tá certo”

“O senhor que manda”

Saíram da sala. O último a sair foi Pantoja, olhou para Cúrio que levantou a cabeça para ver a saída deles. Pantoja apontou com um olhar de ódio, passando o indicador no pescoço, fazendo sinal de morte.

“Rapazes, vou beber água e ir ao banheiro. Quero vocês aqui fora, sem violência”

Alves foi primeiro ao banheiro, saiu da presença de Pantoja e Pereira.

“Porra, Pereira, eu gosto do dôtor, ele é gente boa, nos trata com dignidade e respeito, mas às vezes fico puto com essa frouxidão dele. Não dá pra tratar vagabundo com educação. Porra, nem armado ele anda. Ele tá brincando de polícia”

“Calma, Pantoja, é assim que ele trabalha. Na calma, com conversa, sem violência. Nas delegacias que ele passou, já ouvi comentários que a bandidagem respeitava ele”.

“Não acredito, isso é história pra boi dormi, da carronchinha. Conversa não serve nem para os filhos, que é sangue do teu sangue, imagina para esses bastardos. Porrada é pouco para vagabundo”

“Concordo contigo. Eu sei disso. Mas ele trabalha assim, e diz que dá certo. Uma dia desses, estávamos de papo pro ar, sem nada pra fazer, ele veio conversar comigo. Disse que usa da Psicologia, do inconsciente, das fobias, de um tal de Freud, e me perguntava se não tinha visto isso na Escola de Formação e tals. Achei estranho o papo dele, mas ouvi, não entendi muita coisa, na verdade quase nada, mas ouvi. Ele fala bem, dá gosto de ouvi. Mas isso é só falatório, não funciona nas ruas”

“HEHEHE, ainda dá ouvido pra essas baboseiras. Dos tempos da Escola, há uns vinte anos atrás, o que me lembro de Psicologia é de uma apostila que quando li, apenas uma vez, dizia que era o estudo da mente, alguma coisa assim. Besteira. É tiro, bala, morte que resolve o problema da vagabundagem, desses bandidos filhos-da-puta”

“HEHEHEHEHE, ficas putinho mesmo né”

“Não gosto dessas fuleragem de intelectual metido a besta. Fala um monte de coisa difícil, anda só de carro, recebe um salário porrudo, pra ficar falando do que ele não vive, só do que ele lê nos livros. Um bando de filhos-da-puta das letras”

“HEHEHEHE, gosto de te ver puto, ficas igual a esses intelectuais de merda”

“Vá se fuder, HEHEHEHE”

“Depois dessa onda toda, a gente vai lá no bar do ameba tomar umas e falar com ele, deve tá aterrorizado”

“Eu que o diga, foi foda. Bora lá mesmo”

“Ahhh, mas uma coisa que o dôtor disse e eu concordo com ele é que depois que sabes qual é o maior medo de um homem, não precisas de uma arma ou bala, é apenas preciso que faças ele acreditar no seu medo”

“HUUUUUMMMM... o dôtor tá te fazendo virar um viadinho com esses papos. Medo é o caralho! Medo de cú é rola! HEHEHEHE”

“És foda, não dá pra falar sério contigo”

“Morreu, morreu, o dôtor tá vindo aí”

“Égua dôtor, o senhor demorou”

“Foi, me deu uma vontade de cagar. Cagar no meio de um interrogatório as quatro da matina é foda”

“HEHEHEHE, é verdade dôtor”

“Tive uma idéia, perdi a paciência, esse porra vai falar. Pantoja, arruma a viatura. Pereira, pega esse filho-da-puta lá na sala. Vou falar com o Almeida segurar as pontas aqui na delegacia”

Dez minutos depois, estavam na viatura.

“Pra onde dôtor?”

“Lá pra vala da Quintino com a motorizada, lá onde o pessoal desova os corpos” – falando alto e piscando o olho para o Pantoja.

“Ahhhh, claro. Lá não tem problema, a população apóia que desovem presuntos lá”

“Eu sei, bora rápido, antes de amanhecer, quero ver esse Cúrio cantar”

“HEHEHE, bora ver”

Dez minutos depois, chegaram na beira da vala. Mato e lixo. Cheiro podre de lixo. A vala está cheia, com correnteza forte.

Sou é da galera da golada
Traz o balde de gelada
Que a festa vai rolar
Treme, treme, treme
E agita pra valer
A galera da golada”


Tocava num boteco em frente, meio baixo, já fim de festa. Três homens de meia-idade conversavam animadamente sobre futebol. Quando viram a polícia chegar, parecia que já sabiam o que ia acontecer, continuaram a conversar, em voz mais baixa, e fingindo que nada acontecia ali. Lei do silêncio.

“Traz esse porra aqui, Pantoja”

“Selado, dôtor”

“Bora fazer esse Cúrio cantar, agora mesmo”

“Pereira, trouxestes o saco?”

“Trouxe”

“Coloca esse filho-da-puta de joelho, e deixa ele ficar um pouco sem ar, Cúrio precisar ficar um pouco sem ar para poder cantar”
“Nãoooo, dôtor, eu não sei de nadaaaa. Eu juro pela minha mãe mortinhaaa. Por Deusss, Jesusss, Virgem de Nazaréééé”

Sacola plástica da Yamada na cabeça. Ajoelhado, algemado com as mãos nas costas. Quase desfalecendo, Pereira tira a sacola.

“Ahhhhrummmmm... eu não sei de nadaaaa, dôtorrrr. Não seiii” – grita Cúrio desesperadamente.

O próprio Alves acerta um direto de esquerda em cima do nariz com a clara intenção de quebrá-lo.

“Cala boca, filho-da-puta, queres acordar a vizinhança. Eles já estão todos acordados, torcendo, só esperando a tua execução. Menos um vagabundo no mundo. Vou te dar mais uma chance, me diz quem foi, ou eu vou dar um tiro no meio da tua costa, e te jogar algemado nessa vala, vais morrer afogado, comendo merda”

“Já disse dôtor, eu não sei de nada” – chorando copiosamente, e se mijando na bermuda.

“Puta que pariu, o filho-da-puta tá se michando nas calças”

“HEHEHEHEHE”

“HEHEHEHEHE”

“É um merda mesmo”

“Pantoja, me dá tua arma, parece que ele é atleta olímpico de nado com algemas e um tiro nas costas”

“Não, dôtor, eu suplico, não fui eu”

Alves pega a arma, coloca na parte inferior das costas de Cúrio. Aponta com força, para que ele sinta o cano. Puxa o gatilho. O telefone do Pereira toca, e ele atende.

“Dôtor, larga esse filho-da-puta de merda. Almeida ligou dizendo que chegou um menor confessando ter matado o Almir”

“Largurento de merda”

“Largurento”

“Esse largurento tem costas largas. Levanta esse caralho, e voltemos para a delegacia”

Antes de entrar na viatura e pegar o Cúrio ajoelhado na beira da vala, Pereira e Pantoja chamaram Alves reservadamente e perguntaram:

“O senhor ia matar ele?”

“Apesar da vontade, não. Era apenas para ele confessar. O mijo foi o sinal que esperava. O sinal supremo de medo. Ele tava pronto para confessar. Foi salvo pela largura que tem. Vamos ver o que acontece lá na delegacia. Mas que esse cidadão tem culpa no cartório, a ele tem”

“É verdade, dôtor. Bora logo pra lá, quero ver quem é esse merdinha” – disse Pantoja.

“Bora logo” – concordou Pereira.

Cúrio ajoelhado, nunca agradeceu tanto a Deus, e pensou:

“Égua da largura”.

Suspirou de alívio, e continuou pensando:

“Fui eu quem matei esse filho-da-puta do Almir. Fui saber ontem que ele comia a minha mulher, aquela vagabunda a três anos, eu sabia que aquilo não valia o que o gato enterra. É preciso preservar a honra. Só a morte preserva a honra. Mas quem foi que me livrou? Só pode ter sido ela, ela sabia que eu ia matar ela. Essa filha-da-puta é esperta, e largurenta também”.

(Felipov)