quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Ela paga o aluguel (*)





Ela paga o aluguel. Eu fico estirado neste sofá todo tempo, todos os dias, esperando algo que não chega, ou algo que chegou e partiu, sem que eu pudesse mover minhas mãos, acostumadas aos controles de jogos, para pegá-lo. Não sei o que me escapou, se é que isso aconteceu, mas reconheço que o que mais passa por mim é o tempo. Ele foge, cai, escapa, sangra em milhares de gotículas vermelhas de segundos e centésimos, através das horas e dias, semanas, meses e anos, onde eu esqueço completamente as convenções nominais, de terças, quartas-feiras, e ordens de imperadores romanos, cristalizadas por mandamentos papais na cronologia nossa de cada dia. Hoje é abril? Maio? Há quantos anos morreu o que foi crucificado? O filho de mais essa abstração que não habita a cabeça que acostumei chamar de minha quando estou acordado, estirado, como sempre, nesse sofá, vestindo meu moletom azul, barba crescida, olhos vidrados na tela do computador, esperando a hora dela voltar da rua.

Parasita? Não, um parasita ainda tem algum desígnio, alguma missão, algum trabalho de grande valia a realizar no mundo, qual seja, o de estar vivo e aproveitar-se da vida alheia com a finalidade mais-que-sagrada de também manter-se vivo. Não, sem dúvidas o parasita e o hospedeiro mantêm uma relação de mutualismo. A ecologia está errada. Não há nada que o hospedeiro mais deseje que alimentar o parasita, pois aí ele poderá atribuir seu desânimo, as suas crises fisiológicas, a enxaqueca que lhe atormenta, os seus acessos de vômito, a podridão do seu cotidiano a um agente externo, a essa rêmora, que nada mais faz que se alimentar das migalhas de vida do seu tubarão. O parasita elimina a dúvida do hospedeiro, personifica os males que ele não pode pensar que não tenham causa ou cura. Não, minha vida não tem nada dessa pequena grandiosidade, desse microcosmo, dessa holística perfeita. Não. Eu apenas estou deitado nesse sofá.

Escrevo. Sim, escrevo. Escrevo porque cansei de matar alienígenas, terroristas, alemães, árabes, gente branca, gente negra nos jogos eletrônicos. Às vezes cansa ser deus ou americano nesses aparelhos. Nem sempre me canso, razão pela qual nem sempre escrevo. Nem as palavras perdem o valor porque não são escritas, nem eu perco nada porque não as escrevi. Palavras que não são usadas não valem nada de qualquer maneira, são só um monte de letras prensadas e encadernadas nos dicionários que ninguém consulta, ou um monte de dados binários alocados em algum servidor, como há milhares desses, dispersos pelo mundo como grandes latrinas da globalização. Não há o que perder para mim também. Não tenho nada que perder, nunca ganhei nada e o pouco que herdei perdi numa quinta-feira. Isso foi numa época em que eu ainda sabia os dias da semana, distinguia uns dos outros, caminhava pelas ruas e sentia o odor agradável dos escapamentos dos carros misturado à imundície das ruas dessa capital, ficava espantado com os estúpidos que resmungavam nos fóruns onde eu julgava lides, demandas, processos, quando um trinta e oito e poucas balas ofereceriam uma justiça de melhor qualidade a qualquer interessado. Só não posso dizer que isso faz muito tempo, pois essa noção está no bolso de dentro do paletó desse homem de quem eu falei, que guarda semelhanças físicas e emocionais com este indivíduo que passa os dias neste barato sofá azul, já rasgado em vários pontos, nos quais pode se ver a espuma suja saindo, num paraíso para ácaros e doenças respiratórias, como diria o doutor Dráuzio Varela.

Doutor Dráuzio, o que quer um indivíduo morbidamente exilado num sofá da vida? O que ele deseja? O que acontece na mente dessas pessoas que não produzem, que não trabalham, que renegam tudo que na vida podemos chamar de respeitável? Doutor Dráuzio? Doutor, o senhor me ouve? Ou será que ouve apenas os presos, os homossexuais, os portadores de doenças infecto-contagiosas? Eu sou branco, tive uma excelente educação, filho de uma boa família, o senhor me ouve Doutor Dráuzio? O que tem de errado comigo? Seu velho careca, politicamente correto, embusteiro, demagogo, dono de um texto vulgar, clichê, empregado da Rede Globo, possível eleitor do PSDB, do PT, de qualquer outro partido. Pensa que nesse mundo o que conta é ser bom, é ajudar as minorias? Doutor Dráuzio, eu queria que o senhor, com todo esse seu bom-mocismo, esse seu anti-tabagismo, essa sua moderação, estivesse um dia sentado aqui nesse sofá e eu lhe mostraria a minha versão do mundo. No meu mundo só há o sofá e a espera. Ele é vazio, propositalmente vazio, desesperadamente vazio. Doutor Varela, mestre da medicina humana, artífice do sentimentalismo dos fisiologistas, ilusionista do afeto, venha cá e eu te mostrarei o paraíso, serei o teu Jesus Cristo e tu serás o meu João Batista, um primo distante, cuja sagrada cabeça ornamentou uma mundana bandeja. Aqui no meu mundo, o sagrado e o mundano sempre estão combinados, juntos, de mãos dadas, como o sofá e a espera. Pensando bem, não venha. Não gosto de visitas. Pode continuar a chafurdar na sua bondade.

Quando chove, eu me sinto só. Não quer dizer que eu não me sinta só nos outros momentos, mas nesse, especialmente, me dou conta da solidão, de que ela ainda não está aqui. E como chove nesta cidade! Eu ouço os pingos começarem, como pequenas pedras no vidro da janela, chego perto e vejo o céu cinza, raios, ouço os trovões, e logo começa a chuva propriamente dita, para lavar essa cidade suja e para sujá-la onde está limpa, exatamente como ocorre aos seres humanos, nos quais uma chuva pode despertar para o que é bom ou ligar o botão, permanentemente acessível, do inferno, desse lugar onde o diabo brinca com os homens, como pequenos bonecos de plástico. Eu sei que talvez isso seja demais, talvez a sua vida não seja diferente. Todo mundo sente coisas diferentes quando vê a chuva, quando vê o céu, quando enxerga as águas barrentas da baía, do alto do sétimo andar de um prédio público, esperando as cinco da tarde, mas o que é seu é seu, e o que é meu, meu mundo, é só lançar olhares furtivos para a porta, enquanto encaro o teto, deitado de peito para cima no sofá, ouvindo a chuva, esperando que um meteoro acabe com este corpo celeste no qual habito, essa sucessão de esperas, até que chega ao fim, silenciosa como o apocalipse, a falta que ela me faz. Ela abre a porta. Ela tem a chave. Ela paga o aluguel e entra sorrindo, acabando com tudo que é meu e eu me encontro, instantaneamente teletransportado, em tudo que é dela, que me fala na única língua que compreendo, na única língua viva do mundo, nessa língua que me diz tudo sem fonemas, sem símbolos, sem fala, só o silêncio de um olhar mudo e um corpo que eu capturo em meus braços, num só movimento, rezando a ela que não saia de novo, e seus lábios então se movem, dizendo que está de volta. Suas palavras reverberam tanto na minha cabeça que nem percebo que a chuva passou e, enrolado nela, deitados no sofá, digo, sem palavras, o quanto estou feliz, por não sentir falta do tempo.

(Igor Farias)

(*) Mais um texto do simpatizante-colaborador deste blog. Obrigado por mais esta brilhante contribuição.  

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