sábado, 5 de novembro de 2011

Silêncio





Muita chuva. Era inverno. Ruas alagadas. Lama, limo e fedor de esgoto. Pés molhados, sujos de lodo, sandálias na ponta dos dedos, sapatos nas mãos, calças aos joelhos, vestidos na mão. A vergonha fincava os rostos. Casas velhas de madeira, tetos de brasilit, sem calçada e sarjeta. Ladeadas por casas de alvenaria, erguidas toscamente, cheias de infiltrações e rachaduras, construídas com muito esmero, suor e trabalho. O orgulho de ter seu quadrado no mundo acalenta os corações de gente simples. A satisfação da garantia ao direito a propriedade – garante o status quo. Dona Coralina entra no hospital. Silêncio – diz a placa. Muitas pessoas em filas – um burburinho frenético de conversas paralelas. Urgência. Emergência. Consultas de rotina. Todos juntos. Compartilhando o mesmo espaço. Fraturas, vacinas, doenças infecciosas. Pacientes. O cheiro de álcool, característico de hospitais, empestava o ambiente, ao lado, do odor forte de desinfetante, de suor provocando pelo calor da multidão aglomerada, e perfume barato. Corredores nauseabundos com doentes empilhados uns sobre os outros. Soros suspensos atrapalhando a passagem, enfermeiras enlouquecidas andam por todos os lados fazendo trabalhos de médicos. Diagnosticam, medicam e despacham. Dona Coralina não consegue ser atendida na hora. Por conta de uma fratura ao varrer sua casa, procurou o hospital. Nos próximos dois meses foi marcada sua consulta. No diagnóstico, a enfermeira não fez perguntas vitais para uma idosa de 75 anos com uma fratura simples: se era portadora de doença crônica. Dona Coralina é diabética. Dois meses depois, ela voltou. Resultado: perdeu a perna. Silêncio – diz a placa. Seu Salvador, com falta de ar, foi ao hospital procurar atendimento. Sofre de hipertensão. Não foi atendido. Razão: leitos ocupados. No meio do caminho, procurando outra unidade de saúde, vem a óbito. Ataque cardíaco fulminante. Silêncio – diz a placa. Tereza estava no oitavo mês de gestação. Gêmeos: Rafaela e Camila. Contrações em intervalos cada vez menores acusavam que suas filhas queriam vir ao mundo. Já estava na procura do terceiro hospital, no momento em que as meninas nasceram. Natimortas, o marido fez o parto, na frente, na calçada do quarto hospital. Uma maternidade de referência. Havia leitos. Silêncio – diz a placa. Davi tem Aids. Precisa tomar seu coquetel com freqüência. É portador a cinco anos. Vive com relativa qualidade de vida. Há dois meses não tomava o coquetel. Estava em falta no hospital. Morreu ontem por conta das complicações de uma gripe. Silêncio – dizia a placa. Mortes, mortes, mortes habitam o local no qual deveria garantir a vida. Os hospitais viraram a ante-sala dos cemitérios. Médicos e coveiros são parceiros de profissão, um diagnóstica a morte, o outro a enterra. E a vida segue, de morte em morte, entre os doentes que sofrem, aqueles que têm saúde e são indiferentes, e outros que compram sua saúde e estão pouco se importando se meia dúzia de pobres estão morrendo. E de quem é a culpa de tantas mortes? Sua, caro leitor, a culpa, a razão, o motivo, a explicação para tantas mortes é sua. É você quem promove tantas mortes estúpidas e evitáveis no momento em que escolhe por livre consciência, ao menos suponho, já que vivemos em uma democracia, os seus representantes para gerir a coisa pública. São os seus representantes que, ao gerirem o Estado e administrarem o dinheiro recolhidos nos impostos, promovem tamanha carnificina. A corrupção mata mais que uma guerra. A corrupção matou aquelas pessoas. E você, meu caríssimo leitor, você opinião pública, você é quem escolhe a corrupção. Silêncio – diz a placa.

(Felipov)

1 comentários:

mariottez. disse...

"Os hospitais viraram a ante-sala dos cemitérios." Nada mais justo.

"..aqueles que têm saúde e são indiferentes.." Sim, a indiferença está sempre presente quando o assunto é saúde, ainda mais quando esta é a pública.
O que inclusive não é novidade e nem surpresa p/ próprio SUS que em 2003 criou o Humaniza SUS.
Ele notou que ela é inerente ao processo de formação acadêmica na área da saúde, assim como na atuação em geral, que tenta buscar a utópica neutralidade, o que no fundo só os torna cada vez mais um bando de FDP hipócritas.

"..e outros que compram sua saúde e estão pouco se importando se meia dúzia de pobres estão morrendo." Sinceramente, todos só rezam e agradecem por não estarem nessa meia dúzia e vão assim vivendo com o lema de que " se estou bem, então está tudo bem". Outros FDP.

Agora, que trágico p/ Dona Coralina. Por isso que não me exponho a tal serviço doméstico.
Hahahahahahahaaaaaaaaaaaaa...

Genérico, mas gostei.
;)

Nicoly Uchôa

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