domingo, 22 de julho de 2012

Casa (*)





Foi num dia em que passeávamos pelo País. O carro contornava as colinas numa espiral, e o sorriso dela me fazia crer em tudo, presente, passado e futuro, marcha a marcha, em aceleradas e pontuações de freio, vírgula e ponto-e-vírgula, num discurso de homem e máquina, sob um céu qualquer numa nação qualquer. Afinal, que é mais do que podemos esperar do futuro que não seja um sorriso e uma serra inteira, cheia de altos e baixos, cheia da expectativa de uma morte não realizada a cada curva, cheia da plena indiferença das estradas. Foi quando vimos a casa.

Era uma casa de madeira, no alto de um morro. O vento soprava a neblina como os adolescentes brincam com a fumaça dos cigarros que fumam na entrada da escola, em cascata, fazendo anéis, e lá estava a casa. Ela me olhou com um belo olhar de contemplação. Era tudo. Senha e contrassenha. Eu sabia o que fazer, e isso é raro para a humanidade.

Descemos e logo notamos que estava à venda. E o que não está, perguntam. Não sei dizer, aquela estava. E eu tinha como comprá-la. Meus pais haviam morrido e meu avô havia morrido, e num rito jurídico plenamente abalizado pelas instâncias competentes eu fora contemplado com um imenso patrimônio conquistado a gotas de sangue, tiros, adiantadas de cercas, negociações em cartórios. Certo. Eu tinha como comprá-la. E lá estava.

Não era muito grande, uma pequena casa de madeira a três mil quilômetros de Belém, de onde não consigo tirar os pés nem a cabeça, como se a terra tivesse entranhado nas minhas vísceras, como as paredes das minas encrustam os pulmões dos mineiros e os levam para mortes afogadas em lembranças escuras. Era simples, mas longe, e isso era tudo. E eu também a tinha ao meu lado, conversando com o velho que tomava conta, barganhando, assinando um cheque, pegando um recibo e a escritura, tudo isto numa questão de dias. Tínhamos a casa.

Daí não precisávamos de mais nada. Retornar para a cidade morena era uma possibilidade distante, a Baía era só um monte de água, perdida num esgoto da memória, o Mercado, a gente que abarrotava as ruas estreitas, o cheiro de verde que violentava os pulmões, misturado ao odor de óleo queimado que escapava às descargas dos carros, as buzinas, tudo para trás.

Eu liquidara no mesmo dia algo que meu avô perseguiu por décadas. Vendi tudo a um alemão, Klaus, interessado em terra, em Amazônia, no diabo que matou meus bisavós e meu avô, interessado em qualquer coisa que não fosse Alemanha e que o fizesse rico, como o foi meu avô. Cattle, ele disse. E logo uma transferência por computador me tornara rico, e justo eu, que nunca fizera nada, nunca apertara um gatilho, nunca andara na mata atento a qualquer som. Eu que nunca deixara de ter misericórdia de mim e dos outros agora transferira a Herr Klaus todo o perecer humano dos meus ascendentes. Ele sorriu e apertou minha mão e selamos o negócio. No outro dia adiantei minhas férias e saímos, ela e eu, pelo País. Ricos.


Ela sorria sempre e dizia que era a melhor casa no melhor lugar dos melhores sonhos dela. Dizia que podíamos fazer isso ou aquilo, ela estudaria canto, eu escreveria meus livros, nós viveríamos o céu que nos foi negado desde cedo, e por boas razões sempre. Sempre as boas razões. Hoje eu sei por que nos é negado o céu: o assoalho não é muito espesso, o peso das multidões o quebraria e seria mais um desastre na vida dos que embaixo vivem. Permaneça o céu. Permanecíamos na casa. Permanecemos durante um mês, e foi como estar no céu, um simulacro bem armado de céu, um céu particular, nosso. E eu a amava como só, e somente só, se pode amar, estúpido, voraz, egoísta, possessivo. Eu me assenhorei do patrimônio do meu avô, do dinheiro europeu, da casa na serra, dela, e não há como negar que a mesa estava ao meu favor, embora o crupiê não fosse parvo. Há a hora do jogador, mas a banca sempre ganha.

A Alemanha estava em todo lugar naquela parte do País. Nos olhos azuis, nos cabelos louros das pessoas, nas roupas típicas que vestiam meninas emburradas que nos vendiam atrações turísticas nas imediações. Era como uma republiqueta de cidadãos Klaus, a repetirem seus costumes, seus apertos de mãos, o sacrifício do meu avô, as garrafas de conhaque que ele bebia e que lotavam seu quarto imundo, cheirando a velhice, cheirando a morte, o verde que o engoliu por completo, cuspindo só um resto carcomido de homem, velho, doente, mau. E Klaus apertava minhas mãos de novo, sorrindo e dizendo cattle, Klaus vendendo vinho local barato, Klaus engarrafando o sangue do velho e selando um negócio forjado num aperto de mãos limpas sem calos, entre homens que nunca conheceram o inferno. Mas estavam lá também ela, o dinheiro, o morro e a casa, e, na balança, eu era mais feliz que infeliz.

A serra era fria e pacata, e eu escrevia como um possesso. Ela também fazia as suas coisas, compramos um piano e ela estudava e cantava e o som da voz dela se perdia naquela paisagem e eu era o beneficiário único de tudo isto. Sim, beneficiário. Ocorre-me agora que não disse mais sobre meus pais a não ser que haviam morrido. Primeiro foi meu pai, depois minha mãe. Mas se isso já não fazia diferença naquela casa, não o faz a agora, enquanto escrevo num quarto de hotel, de onde ouço vozes em espanhol vindo do lado de fora, e até as buzinas e os escapamentos falam espanhol, e espanhol também é a língua das placas à beira da estrada por onde passei o dia dirigindo, elas dizem que as ilhas Falkland pertencem a eles, a essas pessoas que andam e desandam pelas ruas, pegam trens, tomam mate, torcem para times de futebol e não se conformam com suas perdas, injustas como todas que as sentem os que perdem. Quando se começa a perder algo, perguntam. Quando já está perdido. Só agora vejo que a perdi, e sinto como se a perdesse toda vez que recordo dela.

Eu a vi chorando algumas vezes. Normal, era o isolamento, talvez Belém, talvez sua família que ainda vivia. Talvez o verde sujo e enlameado que me corre pelas veias também corresse pelas dela. Talvez tudo isso e talvez mais. Eu pouco sei por que as pessoas perdem as coisas, mas a perdi, e consigo ver o fato. Depois de dois meses ela mencionou que já não queria mais viver lá. Eu resisti, joguei contra ela tudo que ela tinha anteriormente dito, ressentido. Mas nem só de amor vive o homem, nem a mulher, nem qualquer coisa, e tampouco há palavras que nos saciem o desejo de nos perdermos. Conversamos. Ela disse que precisava mudar, que havia mudado de opinião, que éramos jovens, que havia futuro, que não devíamos nos isolar, escapar dos nossos empregos, compromissos. A casa e o morro. Já não faziam mais sentido para ela, nem o piano, nem o canto.

À noite, porém, nós nos reconciliávamos e era o amor de sempre, o amor desesperado, convulsionado, consciente da perda, cada vez mais próxima e inevitável. Lembro bem a última noite. Entretanto há coisas sobre as quais não escrevemos, nem devemos, guarde-se o indivisível, o inenarrável. Certo. De manhã, quando acordei ela tinha ido e me deixara a casa, o dinheiro, o piano, o morro, e uma vastidão de bens no País dos Klaus, como há tantos Países neste mesmo País. Sem bilhete, sem adeus, sem explicações. Pus água na cafeteira e café no filtro e tomei um gole d'água antes de entornar uma xícara de café. Para onde vão as mulheres quando não as vemos, perguntam. Para onde querem. E eu fiquei ainda lá um dia inteiro, sozinho. A página em branco. Não conseguia escrever. Quando um sonho acaba, perguntam. Quando se acorda, abrem-se os olhos, os pés tocam no assoalho frio de um céu usado, um céu de segunda mão, um céu extinto. Um incêndio nos itens cenográficos de um espetáculo efêmero. Dois meses, dizia comigo mesmo.

Meus pais e meu avô continuavam mortos e na cidadela que havia morro abaixo milhares de Klaus comemoravam minha sucessão, meus hectares, frutos de litros de sangue derramados em vão. Cattle. O dinheiro europeu ainda estava em minha conta, fumegando, como um revólver que acabara de disparar, acidental como um assalto a uma joalheria, e eu ignorava e só queria tomar um banho e tirar ela do corpo, e junto com isso me lavar de Belém, do verde, das noites de nuvens avermelhadas que cobriam as estrelas, queria me livrar de um sorriso fugitivo, desertor. Quando a guerra está perdida, perguntam, constitui a deserção um crime? Que eu lá saiba de guerras não é verdade, mas as placas em espanhol me dizem algo que os mapas contrariam. Ela foi minha até quando? Quando passamos de carro, compramos e habitamos no casebre, fodemos no chão, na cama, em pé, na mesa, em todo lugar, nisto tudo ela foi minha? Não sei. Por isso não ter bastado a ela sou tentado pela ideia de que ela sempre foi da saída surda e muda que meu sono não deixou surpreender. Talvez ela sempre tenha sido daquele que a amará depois. Eu não tinha nada. Um carro e dinheiro alemão. Klaus sorri numa planície enquanto divisa seus horizontes verdes e os enxerga coberto de dinheiro em pé, os ossos do meu avô devem estar brancos sobre a terra.

Peguei o carro e saí. Deixei lá as roupas, o piano, tudo. E dirigi o dia todo. No outro dia estava em solo argentino e já conseguia ver a cordilheira imensa que nos prova a desnecessidade de qualquer coisa. Não pude evitar de pensar nela, então dei meia volta até o morro, a casa, ela, e tudo mais que me prendia como se estivesse amarrado num cais por algum cabo de aço. Acendi um cigarro. Juntei depois um monte de livros no centro da casa e pus fogo num deles. A casa demorou a arder. Quarenta e oito horas depois eu estava na estrada novamente, e as placas me diziam o que minhas veias negavam: não estava em Belém e ela fora embora e que as Malvinas eram argentinas. Olhei fixo para uma montanha coberta de neve. No alto dela, nenhuma casa. Era julho.


(Igor Farias)


(*)Mais um texto do quase co-autor deste blog, Igor Farias. Valeu, chapa. 

Economia política




Todas as pessoas são infelizes – eu gritei.
Todos riram.
Brindamos a infelicidade humana.
Elas apenas não sabem disso – eu pensei.
Na verdade, tenho uma hipótese:
as pessoas se dividem quanto ao conhecimento, a ignorância e a dissimulação dessa verdade universal.
Ela ocorreu-me depois daquelas típicas conversas com o rigor conceitual da mesa de bar:
palavrões, consciência alterada e frases de efeito.
E os “pinduras”.
“Genaro, bota essas brejas na minha conta” – fala desarticulada.
Várias Cerpas Drafts.
“De novo... rapaz... daqui a pouco isso vai deixar de ser um boteco para virar uma filial filantrópica dos alcoólicos anônimos, lisos, fudidos, mal pagos”
“Eu sempre pago, Genaro” – cínico, rindo.
“Bora ver até quando...” – rindo.
“Um brinde a filantropia e a infelicidade humana. Um brinde ao grande Genaro”
Risos de bocas bem educadas, bem alimentadas, sempre desocupadas, nas quais as vidas pautam-se de sextas em sextas-feiras, com único futuro:
a próxima bebedeira.

A mesa de bar é o locus por excelência da produção de conhecimento socialmente relevante e etilicamente orientado, com inflexões apaixonadas que são verbalizadas aos gritos, palavrões e faróis baixos.
Brincadeira à parte.
Esta suposição, sem qualquer valor científico, filosófico e etcetera, pauta-se tão somente na minha observação nada rigorosa dos contatos que já estabeleci com diversos espécimes humanos, parte de uma premissa simples, óbvia diria, porém subversiva:
a infelicidade é qualidade inalienável à condição humana.
Digo mais:
demarca a sua singularidade no mundo animal.
Se eu tivesse poder, transformá-la-ia em verdade universal, ao lado do:
modelo gravitacional newtoniano,
teoria da relatividade einsteiniano,
seleção natural darwinista,
luta de classes marxista.

A (in) felicidade ou (in) satisfação de necessidades materiais/afetivas, enfim, salvo o ponto de vista do qual se parta, seja afirmativo, seja negativo, considero que a questão tenha duas dimensões:
individual ou coletiva.

No espectro de argumentação, há duas teses.
Aqueles que defendem a felicidade como o priori restrito ao indivíduo.
São as capacidades e iniciativas individuais, a famigerada “procura da felicidade”. A infelicidade, portanto, é o resultado de uma débil iniciativa individual, assim, constitui-se um ad infinitum de “procura da felicidade”, que se constitui em uma realidade de classe, o acesso aos “bens de consumo” que garantem “qualidade de vida” é diminuto e restrito, porque nem todos se esforçam o bastante, nada mais justo, os bem-sucedidos “encontrem a felicidade” tão procurada, que os demais estão a “procura”, é apenas se esforçarem o bastante que chegam lá.
É ação consciente, subjetiva, do sujeito, a priori, que determina sua existência, sua realidade material.
A felicidade é uma questão de a priori.
É acreditar ser feliz sem um prato de comida.

Contudo, há aqueles que acreditam no contrário:
a primazia coletiva da questão.
Afirmam que a garantia da estabilidade social é apenas conseguida a partir do momento que o atendimento de necessidades materiais/afetivas é satisfeita com desdobramentos coletivos, isto é, a maioria das pessoas seja satisfeitas em suas necessidades. A felicidade é a satisfação de necessidades coletivas. A infelicidade sendo apenas o seu contrário. É o todo que deve ser considerado, e não as partes de maneira isolada, salvo engano, as partes estão a priori consideradas no todo. Qualquer observância de aspectos estritamente individuais é colocar em xeque a satisfação coletiva em nome de artificial individualismo e egoísmo.
É a existência que determina a consciência.
Satisfeita necessidades materiais, a felicidade é garantida.
Não há a priori, apenas a realidade concreta.
É acreditar ser feliz apenas com um prato de comida.

É no entre-lugar destas posições que a minha hipótese, brejeira, inoportuna, cínica, apresenta-se, ao largo destas abstrações e especulações teóricas de síntese filosófica, como uma simples opinião bem informada com o rigor conceitual da mesa de bar:
todas as pessoas são infelizes, o que nos diferencia é o conhecimento, a ignorância e a dissimulação desta verdade.
Sentencio logo: a felicidade é a ignorância desta verdade.
Assim, o esforço da exposição restringe-se:
os cônscios e os dissimulados.

De maneira breve:
os cônscios são aqueles humanos com conhecimento que a vida é uma merda e guardam uma arma carregada na gaveta, que vez por outra apontam contra a própria têmpora. Covardes, nunca chegam ao fim do pensamento. Ficam fazendo esse exercício intelectual periodicamente, sem resultado.  
os dissimulados incorrem no mesmo procedimento, periodicamente, como uma roleta russa. Covardes, fazem esse exercício intelectual com a arma descarregada, sem resultado.

Minhas conclusões foram tiradas de uma disciplina nova no espectro científico:
a Economia Política de mesa de bar,
ou melhor:
a Economia Política de botequim. 

(Felipov) 

Dois demônios esperam na paisagem (*)






Estava eu numa saleta abarrotada de gente, esperando uma consulta num dentista. Queria que ele me arrancasse um pedaço calcinado de dor que fazia às vezes de dente num canto do meu maxilar. Todos ao redor tinham caras doloridas e torciam o pescoço rumo ao nada aparente na saleta, para evitar seus reflexos no espelho dos outros. Eu, que venço e sou vencido pela maioria, peguei então uma revista sobre gente famosa, com o intuito de me livrar dos anônimos semblantes desconfortáveis que rodeavam o cômodo, menor ainda pelo tamanho das dores.

Abri numa página qualquer e, ao invés dos sorrisos e poses forçados, me deparei com uma fotografia de um belo parque paquistanês ou indiano, na Caxemira. As folhas das árvores estavam amareladas, e em todo o enquadramento pairava um lamento outonal. Aí que me ocorreu algo fora do comum, objeto real e provisório desta narrativa.

Dois demônios surgiram caminhando pelo bosque, calmos como organismos adocicados por um vento forte de haxixe. Caminhavam assim, um ao lado do outro, mantendo uma distância segura porém intimista. Afinal, tratavam-se de dois demônios.

Descolei os olhos da revista e os passei pela saleta, duvidando do que estava vendo. Novamente as caras mulatas, nipônicas, judaicas, italianas, todas crivadas por uma metralhadora incessante em cada uma de suas mandíbulas. Meu dente doía também, e talvez por isso voltei à fotografia e aos demônios, que me pareceram, e haveria de confirmar depois, mais interessantes que os outros à minha volta.

Os dois demônios caminhavam pelo bosque, presos móveis a uma moldura sujeita a conflitos e bombas e gritos a qualquer hora, mas transbordavam a paz de um dia qualquer, uma paz opiácea. Era um passeio, então eu vi. E ouvi, em seguida.

Então, andei ouvindo que há um certo país – e riu diplomaticamente o que primeiro falou – há um certo país encoberto por um espesso manto – e riu ainda mais – como um grande cobertor.

•  Sim – retorquiu o outro. Continuavam caminhando – Há um deles.
•  E por acaso você sabe onde ele fica – perguntou o primeiro.
•  Sei, como não saberia?
•  Não sei – respondeu sério o demônio que rira – Somos demônios. E aos demônios é negado certo tipo de conhecimento.
• Lá vem - demônio parecia cansado - Toda vez essa mesma história: somos, e o somos limitadamente, como tudo que é. Quantas vezes preciso te repetir isso?
•  O suficiente – e tornou a rir o demônio de riso fácil.


A atendente disse um nome em voz alta. Tinha muitos is, então não era o meu, que tem poucos. Os demônios se agitaram e riram juntos de algo que não distingui com clareza. Levantou-se um velho, que caminhou ao consultório usando passos de patíbulo. Alguém subitamente espirrou e desviou minha atenção, mas logo que pus os olhos no retrato lá estavam: dois demônios parados na paisagem. E prosseguiram.


•  E lá, como são as mulheres?
•  Tem ouvidos fáceis.
•  Ah sim.
•  E o manto?
• É espesso, como um carpete muito usado e enrugado de repartição pública.


Um grito do velho, acompanhado de um ruído de broca, entortou os pescoços de todos em direção a porta fechada. Os dois demônios se divertiam com isso, ou com outra coisa. Pareciam estar atentos, embora indiferentes, mas calmos. Tudo isto no bosque imóvel do retrato.


•  Há tanto o que fazer por lá.
•  Pensei que o trabalho já estava todo feito.
•  Não, como você é ingênuo. Lá tem pleno emprego.
• Não gosto quando você utiliza esses termos técnicos e afrescalhados.
•  Tem trabalho para todo e qualquer demônio.
•  Até para os antigos?
•  Sim, lá eles arranjam algo para que façam. Nem que seja algo pequeno. Você sabe.
•  Entendo.


Os dois sentaram ao pé de uma árvore, sobre umas folhas caídas. No consultório, nada mudara. Pedaços de rostos entrecortados por lancinantes apelos por técnicos habilitados para a extirpação de molares, pré-molares, caninos, ajustes protéticos. Cutuquei com a língua meu dente podre. Doeu bastante e deixei escapar um gemido, que abafei com um pigarro. Engoli a seco o catarro resultante. Os dois demônios contavam uma história, a duas vozes, num coral de longo aprendizado.


•  Era uma vez um país,
•  em que nada era duradouro,
•  e pela inconstância
•  contraíram um grande empréstimo.
•  Logo cobriram-no com um cobertor,
•  espesso como o melhor sangue coagulado do melhor açougue,
•  e diziam que era melhor que permanecesse coberto,
•  posto que se o descobrissem nada de bom restaria
•  no ouvido inconstante das mulheres.
•  Era uma vez um país.
• E era o fim, de uma vez por todas. Pois, se há país, esqueceram de avisar ao nada.

E, dito isso, levantaram e caminharam. Eu adormeci pouco tempo depois, fixando a Caxemira distante. Quando acordei a atendente me sacudia docemente do sono de volta para a dor. O dentista fora embora e só retornaria na sexta-feira, ela me disse. A saleta vazia de pacientes me parecia bem maior. Cabia só a minha dor lá, que se expandia como uma galáxia rasteira, entumescendo minha boca com o gosto metálico do inútil.

Na mesa da atendente, abarrotada de fichas com pequenos retratos, havia um monte de material de escritório. Escolhi o estilete e me livrei do dente, cuspindo-o junto a um monte de sangue no chão. Depois, destaquei o retrato da revista e enfiei no bolso da camisa. A atendente estava muda quando saí para a rua. O sol iluminou minha mão e dois demônios riam. Era dezembro, que calor.


(Igor Farias)


(*) Dada a insistência, já é um colaborador assíduo deste blog. Valeu por mais essa colaboração, rapaz. 



quinta-feira, 12 de julho de 2012

Estimação






Foi aquela foda bem dada de sempre. Dois corpos cansados e suados. Heloísa arrumava o cabelo molhado de Álvaro. Ele respirava ofegante, fumando um cigarro. Magro, imberbe, cabelo grande. Ela não fuma. A fumaça não incomoda. Acostumou-se aos hábitos. Seu corpo voluptuoso repousava, satisfeito, no lado esquerdo no corpo de poucas carnes de Álvaro. Ela é linda em todos os sentidos. Ele é apenas um filho da puta. O filho da puta que ela ama. Contradições da vida.



“Eu te amo, Álvaro”

“Heloísa, eu já te disse, a única coisa que posso te oferecer é uma foda”

“Eu não acredito que não gostes nenhum pouco de mim”

“Não é essa questão...”

“O que é então? Não acredito que não posso ser amada”

“Claro que podes, e mereces...”

“Então?”

“Mas não por mim, Heloísa”

“Tens outra? É isso???”

“Não”

“Por que, Álvaro?”

“Tu queres um marido. Uma família. Filhos. Ser feliz. Definitivamente eu não posso te oferecer essa vida cor-de-rosa”

“(...)”

“Heloísa, eu sou uma pessoa oca, rasa, abjeta. Eu preencho esse vazio com sexo, porres e leituras. É a isto que se reduziu a minha vida”

“(...)”

“A porra deste egoísmo que corrói as minhas entranhas como se fosse um câncer, que me deixa com essa queimação permanente no estômago, essa boca amarga, esse mal-estar, essa dor de cabeça, essa vontade de morrer permanente, destituindo-me de qualquer feição de criatura humana, cada vez mais eu quero me isolar da humanidade, tudo e todos me parecem intoleravelmente patéticos, imbecis, idiotas. Sobretudo, eu”

“(...)”

“Se estou deitado aqui contigo agora é por saber que tenho sexo garantido, uma boa foda garantida, e isso não é a primeira vez que te digo isso, sabes disso tudo que estou dizendo agora, nunca menti pra ti... NUNCA”

“(...)”

“Sabe, Heloísa, essa situação é foda. Eu tenho me sentido uma pessoa profundamente inútil, sou sustentado pelos meus pais, formado em Ciência da Computação, essa merda que me garantiria um emprego bacana, e foi uma das grandes burradas que fiz na vida, olho pra ti, linda, inteligente, e não sinto nada, eu me sinto um miserável, um ser desprezível, a única coisa que sinto é vergonha da vida que levo, desse vazio que preencho com a tua presença, com o teu corpo, com os carinhos que me proporcionas, com a atenção que me devotas, sem receber nada em troca, senão o uso que faço do teu amor, com um parasita, é isso mesmo, sou um verme que te parasita. Desculpe, Heloísa... já estou falando muita merda...”

“(...)”

“Sabe, eu acho melhor, tu ires embora, e não voltes mais. Por favor. Realmente, eu não sou aquilo que queres, eu sou aquilo que mereces... Caralho de merda de vida...”

“Só não me pede isso... Me deixa aqui do teu lado... É o bastante pra mim...”

“Heloísa... Por favor...“

“Álvaro, por favor, não fale mais nada... eu amo por nós dois... e isso me basta...”

“(...)”



Olho no olho. Ela chora copiosamente. Ele limpa as suas lágrimas. Cobre os corpos desnudos com lençol. Ele adormece fazendo carinhos no cabelo liso, limpo e cheiroso de Heloísa. Ela observa o seu dono, feliz pela estimação. 

(Felipov)

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Mais um improdutivo






Comprei uma arma. Não lembro há quanto tempo, mas tenho uma arma. Uma Magnum 357. Linda, cano longo, seminova. Sempre tive um fascínio por esta grande invenção humana de resolução de problemas. Resolução definitiva. Resolução sumária. Tenho muitos problemas. O meu trabalho era um problema do qual precisava – menos um. A minha vida é um problema que herdei. Mas minha Magnum 357 é linda. Acredito que parte considerável – percebam, não estou sendo absoluto, nos últimos tempos, tenho procurado trabalhar a minha relatividade –, dos problemas humanos, gerais e particulares, devem ser definidos com a sua intervenção. Políticos, familiares, empregatícios – enfim. Tem momentos em que o respeito, a tolerância, o diálogo e todas essas merdas tem limite. A Magnum 357 é o meu limite. Talvez, isso tudo seja apenas blefe, ultimamente, tenho andando muito cansado e sem paciência, ansioso e sem sexo. Ficar sem sexo fode a cabeça de qualquer cidadão de bem. Fode. Mais um dia de vida. Nem sei qual é o dia da semana. Égua da ressaca. 1989. Década perdida. O socialismo acabou. Adeus, Lênin. O capitalismo triunfou. Malditos, Reagan e Thatcher. A humanidade prefere a barbárie do consumo. O espectro dos militares é um fantasma insepulto. Vamos ver se estas próximas eleições vão vingar. Pelo visto, entre Lula e Collor, vai ser o almofadinha que vai levar. O Lula parece um morto de fome com boas propostas apresentadas a um povo miserável e ignorante, que se agarra a qualquer promessa, sobretudo, aquelas de crescimento econômico e estabilidade política tal qual os dos países de primeiro mundo que Collor representa. Promessas sem pé, nem cabeça – tradicionais nos raros pleitos eleitorais tupiniquins. Ele vai ganhar porque sabe enganar um povo que quer ser enganado. Eu não quero crer desta forma. Sei que estou errado. Que importar estar certo ou errado. Já perdi muito tempo nisso. Sinto falta de Margarida. Faz dois meses que ela partiu. Parece que foi semana passada, ou ontem. Não sei. Saudade. O seu jeito de pegar na minha barba, desarrumar/arrumar meu cabelo, me fazer carinho, tratar feito criança com aquele seu jeito infantil na intimidade. Sinto falta de sua voz reclamando de mim, me dizendo para emagrecer e fazer a barba. Armando, eu não te amo - ela sempre falava com um tom engraçado antes de me fazer um afago. Mas ela se foi. Deixando-me prisioneiro da sua ausência. Suas carícias ainda me ferem. Um cativo do seu corpo. Ela não era o meu tipo ideal para a foda perfeita. Mas não era só sexo. Era sexo e amor. Pena perceber isso agora. O sexo é uma coisa importante para mim, é um dos poucos momentos em que me sinto plenamente feliz. Transando e bebendo são os meus dois momentos felizes. Efêmeros momentos de alegria: bêbado e gozando. Ela me fazia feliz. O seu jeito de falar do dia, das coisas que tinha feito, os problemas que havia tido, como tinha ficado puta com fulana, que a beltrana era engraçada e que estava cansada de trabalhar. Eu ficava ouvindo calado, apenas observando aquela criatura que me trazia tanta paz, até ela dizer: vais ficar me olhando com essa cara de bobo, Armado. Fazia o gesto para lhe beijar e ela me beijava. És um besta, Armando. O meu besta. Eu era dela. Mas ela se foi. O que resta não é amargura, raiva, ódio ou qualquer outro sentimento pernicioso e mesquinho peculiar às criaturas humanas. O que ficou foi apenas a saudade, fragmentos de lembranças, a tristeza da ausência, e o hábito de sofrer que sempre me consola. Adeus, Margarida. Adeus à única mulher que tive, as outras são apenas fêmeas. Li o jornal. O café estava frio e muito doce, mas tomei, prefiro café amargo e preto. Apenas dois cigarros na carteira. Tenho que comprar cigarros. Gastei dois reais, diários populares, impressão colorida, tão vagabunda que suja a mão, farto de imagens, diminuto em textos. Compra jornal barato e ainda quer reclamar, Armando. O editorial é uma piada de muito mau gosto. Este país não é sério. Os jornais não são sérios. Os jornalistas não são sérios. Nem eu mesmo sou sério lendo uma porcaria dessas. Parabéns, um pensamento honesto, sincero e sensato, Armando, estamos indo em bom caminho. Deveriam prender alguém por escrever tanta merda. Acusações: franco atentado contra a inteligência pública, fundamentalismo da burrice, terrorismo da liberdade de expressão. As mesmas notícias, as mesmas imagens, as mesmas mentiras. A única coisa que importa é saber que farei afinal da minha existência nos dias vindouros. O mesmo papo de sempre, Armando, parece que tens quinze aninhos, rapaz. Não sei sinceramente. Só sei que sou mais um dos improdutivos. Amém. Ter pena de si mesmo não é uma boa saída, Armando, na verdade, nunca é uma boa saída, rapaz. Na verdade, não sei se quero saber realmente. O que quero talvez nem tenha a resposta para qual perco tempo escrevendo estas linhas para que outro improdutivo leia e sinta a felicidade inerente aos improdutivos. Felicidade? Sim, a felicidade dos improdutivos é a única felicidade verdadeira. Verdade? Sim, aquela que tanto procuramos. Talvez nunca encontremos. Nós não queremos a verdade. A verdade não nos interessa objetivamente. O que interessa verdadeiramente é mentira apregoada em todas as bocas que procuram a verdade hipocritamente sabendo consciente ou não que jamais a encontrarão. Eles simplesmente não a querem. Ela não os quer. Ela é simples e transparente. Presente nos semblantes das pessoas honestas. Cada vez mais raras. Eu quero simplesmente a improdutividade que sempre procurava. Prazer, mais um improdutivo. O prazer do contrato encerrado. Em uma reunião no fim de tarde de sexta. Alívio foi o que senti de imediato. Nunca pensei sentiria tanto prazer na demissão. Uma alegria inaudita invadiu-me. Devo concordar contigo, rapaz, talvez, essa foi a melhor coisa que te aconteceu em anos. Sabe, vou ser bem sincero. Olha, Armando, esse tom de conselheiro não lhe cai bem, porra, parece autoajuda, se queres dar conselho, faz isso com a Magnum na mão. Mantenha-se em sua improdutividade. É a melhor coisa que fazes da tua diminuta existência. Pense bem antes de ser produtivo. Pense na vida gasta em frente a um trabalho profundamente inútil no qual a única coisa que se acredita são os vencimentos no fim de um longuíssimo mês que parece não acabar mais. É agonia de sobreviver a qualquer custa de qualquer maneira. O fato é que ela não tem sentido. Não há panaceia redentora. Não há solução transcendental para os problemas humanos que não sejam irremediavelmente resolvidos por mãos humanas. Qualquer tipo de elucubração deve ser feita no sentido único de fazer as questões corretas e apresentar respostas adequadas para informar ações concretas. Acredito que qualquer tipo de especulação filosófica que fuja disso é a mais imbecil masturbação mental. Boa, boa, sensatez, estamos indo bem, rapaz. Não podemos nos dar a idiotice de perder tempo. As contradições sociais estão cada vez mais batendo a porta de nossa preguiça e covardia, nos cobrando síntese. É necessário pensar e reagir a um só tempo. Na minha improdutividade, vou me recolher a minha caverna temporariamente para resolver questões internas. A minha biblioteca me espera. A saudade de Margarida me acossa. Estou perdido. Viva a improdutividade daqueles que se querem improdutivos e a solidão dos incompreendidos. Aos produtivos e amados, com a minha Magnum em punho, vão pra puta que os pariu do caralho da porra. Ótimo conselho, Armando.

(Felipov)