quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Eu vejo




“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”
(Livro dos Conselhos)

Eu vejo. Eu vejo a Angústia. As pessoas sem perspectivas, sem projetos, sem aspirações. Sem a incrível capacidade de se mover pelas suas potencialidades, capacidades e vontades. Ter a fé insofismável de que a humanidade tem a perfectibilidade de ser essencialmente altruísta, empática e solidária, considerando o Outro como extensão obrigatória do seu ser social, em permanente transformação e modificação, e em eterno devir existencial – o velho e carcomido projeto iluminista já quase em desuso. Sou anacrônico, claro está, e não tenho a ínfima vergonha em dizê-lo. No entanto, a vida na letra da lei não atende as expectativas de regulação equitativa dos conflitos individuais em prol do bem comum. As instituições não representam, não protegem, não asseguram, não garantem, não promovem o bem comum. A vida está para além das prescrições jurisdicionais e oficiais. Aquém de Governos, Estados e Nações.  Ela, indelevelmente, na variedade própria de sua natureza errante, origina, em uma profusão infinita, de intermináveis e duradouras soluções e dissoluções, na eternidade própria da sua efemeridade, a jurisprudência inerente a sua condição aberta, fluída e impávida. Tais qualidades e propriedades provocam o medo. Eu vejo. Eu vejo o Medo. Sobretudo, o medo de viver. O medo da frustração, do sofrimento, da morte, da derrota, do fracasso, de amar, de ser amado, da sinceridade, de ser sincero, da hombridade, da honestidade, de ser honesto, dos escrúpulos, da não-correspondência, da infelicidade, da felicidade, da solidariedade, da solidão, da piedade, da caridade, da grosseria, da arrogância, da empáfia, do ensimesmamento, do egoísmo, do etnocentrismo, da barbárie, do embrutecimento, da covardia, da coragem, da violência, em última análise, o medo-de-ter-medo-e-admitir-que-se-tem-medo-com-medo-do-que-os-outros-alhures-vão-julgar. Eu vejo. Eu não sei o que é o que vejo. Apenas sinto todas as pestilências da condição humana. Entretanto, nos últimos tempos, nos tempos idos da minha decadência, não me sinto bem com pessoas perto de mim. Pessoas são perniciosas, arrogantes, patéticas. Quero ficar só. Gosto da solidão. Não preciso agüentar ninguém, e ninguém precisa me agüentar. Ninguém me engana. Ninguém se aproveita de mim. Não sirvo de pilhéria. Ninguém me rouba, me assalta ou expropria. Ninguém ri as minhas custas, ou desconta suas frustrações escarnecendo da minha baixo auto-estima. Ninguém vem querer se afirmar e autodeterminar me denegrindo. Ofensas, as gratuitas ofensas. “Certo. Não há novidades em tudo o que pensas. São apenas obviedades. Sabemos que os humanos são assim. Precisas exercitar a tua paciência e compaixão”. Jamais. Paciência é algo que não me pertence mais. Esgotou-se. Cansei-me. Não quero nenhum tipo de contato ou diálogo, o menor trocar de palavras ao acaso, ou uma prolongada e prazerosa conversa de bar. Sinceramente, cansei. Cansei tanto que digo obviedades. Às vezes é preciso dizê-las. Elas são tão evidentes que a maioria não vê. Ora, o que esperar de uma multidão de idiotas funcionais. Cada vez mais ocorre um fenômeno em massa que me parece irreversível, progressivo e inexorável: o elogio a mediocridade. A mediocridade está na ordem do dia. Está na moda. Está no jornal, na revista, nas conversas de salão de beleza, nas barbearias, nas praças. É o que dá dinheiro. É o que dá notoriedade, fama, celebridade. É o que ostenta, o que orienta, o que manda. É o poder. Status quo. “Certo, admitamos que decerto as tuas premissas tenham alguma correção. Que o teu rigor e crítica procedam. No entanto, não és humano? Não compartilhas a mesma condição? Ou, por acaso, deixastes de ser humano?”. Não descarto essas questões. Não raras vezes, deixo de me sentir humano. Sinto qualquer outra coisa ao largo do humano. Não vejo a minha identidade, o meu ser individual e coletivo compartilhado com essa sociedade – um não-lugar. Um estrangeiro de mim mesmo. Ao mesmo tempo, sou humano, tenho a mesma condição de Homo Sapiens Sapiens com corpo físico bípede, andar ereto, com polegar oponível e encéfalo altamente desenvolvido. Devo, forçosamente, admitir que ainda seja humano. Humano, demasiadamente humano. “Ora, com a licença da expressão, VÁSEFUDER, tu e todo esse teu pedantismo. A propósito, pega esse pedantismo, com toda a polidez própria dos pedantes, e enfia no seu honorável cu. ‘Eu vejo’, ‘Eu vejo’, é o caralho. Fica com essa porra de teorizar, elucubrar, analisar, perscrutar e o caralho que o valha sobre a condição humana como se fosse um alienígena ou vivesse a margem da sociedade, em uma torre de marfim da superioridade intelectual que não se comunica com os medíocres, os idiotas, os fúteis, os ignóbeis, os párias, os torpes, os ignaros, os mentecaptos, enfim, a estupidez inerente da estultice humana. Entretanto, és muito superior para admitir algo desse tipo. És apenas um grande hipócrita filho da puta estúpido. Apenas isso, um estúpido”. Eu vejo. Eu vejo gente estúpida. O tempo todo. De tanto ver, emudeço, e no silêncio, reparo.
(Felipov)

2 comentários:

Anônimo disse...

Porra Felipe!!!! Como, me diz, como tu consegues ver??? rsrsrsrsrrs É por isso que penso, porém nem sempre ponho em prática: a vida é muito curta para "medos", enfrentar o perigo na medida no possível ou de vez em quando passar por adrenalinas é bom. Porque tudo aquilo que é teorizado demais, sem calor humano, sem prática ou a experiência real com as "armas" humanas permite o tempo passar mais rápido e nos faz crer que não houve nada, fracassamos por medo de tentar... Sou demasiadamente humana e assim como você, vamos todos mandar esse pedantismo SE FUDER! rsrsrsr

Resumo da ópera: adorei o texto! =)

Eduardo Rodrigues disse...

A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a dor do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana.

A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo,
o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.

O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e ferir-se,
o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes de emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre.

(Vinicius de Morais)

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