sexta-feira, 27 de maio de 2011

Tristeza

Acordei ainda pouco. Sinto-me bem. A languidez da ressaca me deixa bem. Melancolia. Fico de olhos fechados. Ouço o barulho da chuva e o cheiro de umidade. Isto me tranquiliza. Estou triste. Ontem, recebi uma triste notícia. Cansado. Enfadigado. E triste. Deveras triste. Tristeza me define hoje. Gosto da tristeza, ela me ajuda a refletir. A ser mais ponderado e sensato. A alegria é efêmera, ela engana. Preciso de sensatez nesse momento. Tenho repensando muito as minhas relações. As pessoas com quem travo contato. Das ausências, faltas, distâncias. A imensa saudade que me consome. Aquelas pessoas que se afastaram. E das quais me afastei. As discussões, brigas, xingamentos e ofensas. A raiva engolida. O ranger de dentes. A dor de cabeça. E o “Filho da puta” na boca, cerrado entre os dentes, mastigado e engolido por conta do imperativo categórico – aquele maldito Kant e a sua metafísica de merda. Tenho percebido o quanto a existência é permeada de absurdos. O Nada vem todo dia conversar comigo. Nos jornais, revistas e televisão. Ele, respeitável, imponente, bem vestido, sóbrio, procurando ser legítimo. Fala muito, bem articulado, norma culta, sem dizer absolutamente nada. O Nada: fala muito e não diz nada. Observo e reparo. Penso e me angustio. Não vejo saída no aparente. Contudo, ainda, acredito que há saída – é, sou romântico. Patético e sonhador. Acredito no Homem: síntese de múltiplas determinações, capaz do autodesenvolvimento, de inúmeras potencialidades, de criar o belo, de sentir o amor, enfim, Ser Humano; e igualmente, egoísta, mesquinho, estúpido, ignorante, crédulo, obediente, alienado. Se o homem é feito pelas circunstâncias, que as circunstâncias sejam feitas humanamente – este pensamento do jovem mouro faz todo o sentido para o meu Eu. Ego. Maldito Ego. O articulador máximo das paixões infames da existência. Do efêmero. Do inóspito. Da miséria. Do mesquinho. Do reprovável. A favor de um simples e passageiro prazer individual. O que, para alguns, alhures, encaminha o sentido da parca existência. Vida parca, vida pouca, vida diminuta. Embrutecida. Ignorante. Idiota. Patética. Ridícula. Enfim, demasiadamente humana. Nada do que é humano me é estranho. Portanto, compartilho, indelevelmente, tais limitações. Não me orgulho. Mas, não sou hipócrita de não reconhecê-las. Tampouco faço uma ode a tal condição. Apenas, constato e me resigno. Resignação e indignação são o que me resta. Ao menos, a constatação do óbvio me anima. Mesmo sendo o óbvio, algo me diz, mesmo não sendo claro para muitos, que a minha lucidez ainda se mantem de pé. Manca e apoiada em muletas, contudo, e ainda bem, de pé, observando o horizonte em suas possibilidades. Ou não. Lucidez. Quanta falta tu fazes. Sinto-me mais lúcido com a música. E sem ela, com toda a certeza, a vida seria um erro – e esse foi um dos raros momentos de lucidez de Nietzsche, além, é claro, da sua crítica virulenta a metafísica ocidental. A música, a meu ver, é uma das expressões da experiência humana, a um só tempo, profundamente racional e sentimental. A exatidão das notas musicais, a sua linearidade, o seu rigor de execução, a afinação, o orquestramento, enfim, a matemática de acordes, de tons, de melodias e de harmonias, tem apenas uma finalidade: expressar sentimentos. E o que há de mais irracional, passional, irregular, alinear, perene, contraditório, do que os sentimentos humanos. Portanto, a música é sublime: uma racionalidade passional. E nada mais humano do que a contradição. Contradição, penso eu, ser uma das principais características da condição humana. Sim e Não, ao mesmo tempo. O certo que parece errado. O errado que parece certo. O fim que justificam os meios.  A idiotice lúcida. Alegria melancólica. A crueldade piedosa. O xingamento elogioso. O ódio amoroso. Perdoar as ofensas. Pagar o mal com o bem. Ser moralmente correto. Irrepreensível. Modelo de conduta. Sobriedade. Digno. Honrado. Viver segundo alguma coisa. Segundo a imaginação imposta e os seus derivados. De acordo com outra realidade, outro mundo transcendente.  Enfim, no mundo das idéias, tudo é possível. Porém, nem tudo é impune e idílico. Sou menos otimista. Há apenas uma realidade material, construída por homens, com idéias, estômagos e sexo – portanto, com necessidades materiais e imateriais. Contudo, um imperativo moral se mantem: amar o próximo como a si mesmo. Amor. Sinto-o pouco. Ele é proporcional a minha existência: parca. Não sou nada, mas tenho em mim, todo o amor do mundo – ao menos, a parte que me cabe da nossa triste condição. O amor é sentido, direção, caminho. Força. Entusiasmo. Alegria. Vontade. Sorriso. Medo. Angustia. Desconfiança. Ciúme. Traição. Ingratidão. Dor. Sofrimento. A dor que punge sem doer. O contentamento descontente – o lirismo de Camões é insuperável. Quem passou por essa vida sem Amar, sem sentir o Amor, sem cantar a Paixão, sem gozar desta sublime condição. Não viveu. Triste e lamentavelmente, não viveu plenamente. Se viveu, foi parcialmente. Se vive de forma parcial? – fica a questão. Plenitude. Acredito que vivi a vida em plenitude. Tenho 20 anos. Ontem, fui ao médico, ver o resultado de exames de rotina. Ele me disse: “Meu caro, é difícil dizê-lo. É uma das piores partes da minha profissão. Seus exames são ótimos para hemoglobina, triglicerídeos etc. Porém, tens uma doença terminal no cérebro. Um mês, no máximo dois. Lamento”. Lamentei também essa triste notícia. Cumprimentei-o e disse: “Adeus, meu caro. Obrigado pelos serviços. Até nunca mais”. Ao sair do hospital, a luz do sol, o ar, parecia diferente. O barulho, a fumaça, o calor e as pessoas também. Fui até uma banca de revista. Comprei o pacote de balas de gengibre – há tempos que não comia uma. Sentei-me na praça próximo a minha casa e fiquei observando a vida, e chupando balas de gengibre. Apreciando a vida enquanto a tinha e ela tão indiferente a minha condição. Caiu a tarde. Fui para casa. Uma tristeza profunda me abateu. Quero viver muito ainda. No entanto, por hoje, acabei com a garrafa de uísque que tinha em casa. E dormi. Acordei, pensando na vida que diminuiu a areia da ampulheta. Triste e resignado.

(Felipov) 

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Estou vivo, ele disse (*)

“Estou vivo”, ele disse. Disse não, berrou, urrou, esmurrando a parede maciça à sua frente.
Respiração ofegante, suava como um porco. Tentava compor um quadro lógico que explicasse a situação, mas a descarga de adrenalina não era favorável ao foco necessário para esta atividade. Pelo contrário, desesperava-se, náufrago no espaço reduzido ao qual estava confinado.
“Estou vivo, estou vivo, vivo, vivo, vivo...”, repetia para si na loucura ora aflita ora explodindo numa gargalhada nervosa. Esta velha conhecida do desamparo, a loucura.
A cada som da terra caindo sobre a membrana orgânica que o separava do lado de fora, sua aflição aumentava em progressão geométrica. Sentia vertigem, calafrios. Queria vomitar. Seu coração parecia explodir.
 O som dos gritos e da violência gestual chamou a atenção do homem com a pá.
No início, ele não deu muita atenção, mas o barulho foi lentamente começando a deixá-lo cansado, apesar dos seus 27 anos. As palavras do homem desesperado foram somando mais alguns quilos à terra na pá e cada movimento foi se tornando cada vez mais extenuante. Também ele suava, mas pelo esforço. Existem suores e suores, sabe?
De repente parou. Tirou o lenço do bolso de trás da calça. Enxugou a testa. Pegou, no bolso da camisa que estava no chão, a carteira de cigarros. Acendeu um. Deu uma longa tragada. Fixou os olhos no horizonte cheio de nuvens das madrugadas paraenses. “Vai chover...”, pensou. Sempre chove, disso ele também sabia. Então disse, em voz alta, para que o homem desesperado pudesse ouvi-lo:
- Estou vivo, estou vivo... Eu estou cansado dessas lamentações, porra... Quem é que está realmente vivo nessa merda de planeta em que vivemos? Eu não estou mais vivo que tu, jogando essa terra em cima de ti, estamos os dois morrendo. É claro que tu vais primeiro, mas eu me mato também a cada pá  cheia que eu despejo e cubro um homem que respira e se debate desse jeito. Quem está vivo, porra?! Todos temos nossas cotas de terra nos sendo jogada e todos temos nossa vez com a pá! Todos nós morremos sufocados nos nossos empregos, vidas inúteis, merdas que fazemos, outras que virão, palavras ditas, palavras não ditas, amores vividos, fingidos, dissimulados cinicamente. Posso te dizer com toda certeza que muita gente te invejaria neste momento. Não és tu que derruba o conteúdo da pá da existência sobre ti mesmo, eu estou fazendo isso, e não vai demorar o tempo de quatro ou cinco gerações, estou te tirando dessa miséria em meia hora ou menos. Antes eu tinha tudo, estudo, mulher, carro, casa, esses confortos da vida material. Agora eu só tenho esta pá, pela qual me pagam pra despejar terra. Eu nunca pergunto em quê. E não me interessa. Eu só tenho a pá. Esta é a minha verdade. E a tua, por algum tempo. PÁRA DE CHORAR, PORRA! Não me interessa a merda que tu fizeste que te colocou nesta situação. Não me pagam pra ter piedade, não me pagam pra filosofar, não me pagam pra te explicar porque tá acontecendo isso contigo. Eu sou pago pela pá. Pela terra. Pela combinação dos dois. E é só. NÃO ADIANTA REZAR TAMBÉM, SEU IMBECIL! Esse teu deus de merda não vai tirar essa pá da minha mão, nem transformar essa terra em algodão-doce! Daqui a pouco tu vais comprovar a superstição caipira que é viver pautado em dogmas, princípios e valores religiosos. Nada pode te salvar neste momento. Estas palavras só estão sendo ditas porque estou recuperando as forças. Este é o tempo que te resta, nada mais, nada menos. Nenhum deus pode te tirar desta realidade. AH, TU TENS MULHER, DUAS FILHAS PEQUENAS? Fodam-se , talvez o grande favor que eu presto ao mundo seja tirar dele pais como tu. Não que eu ligue para a criação delas ou para como tu és como pai, como ser humano, como homem respeitável, médico, engenheiro, advogado, juiz, cobrador de ônibus, jogador de futebol. A minha pá não conhece origens, nem preconceitos, nem se importa com classe, cor, crenças. A terra também parece não se importar. Traga a todos sem diferenciá-los pelas coisas que eles achavam que tinham, ou achavam que eram. Eles eram. E tu já foi também.
O homem pegou a pá e continuou o serviço, com o ânimo recobrado pelo entusiasmo do discurso.
O outro encontrava-se paralisado de pânico, somente piscando os olhos de vez em quando, fitando a escuridão com seus olhos inertes como o touro que espera o último golpe, ante à torcida eufórica duma plaza de Madrid.
A grande ironia da vida é que ninguém bate palmas para o touro quando ele vence a tourada.
“Estou vivo”, ele disse. E foi a última coisa que disse.

(Igor Farias)

 (*) Este é mais um texto do colaborador-simpatizanate deste blog - o punk Igor Farias.

 

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Sentimentos





“Tire o seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com a minha dor

(A flor e o espinho – Nelson Cavaquinho)



Vivo sob o império dos sentidos. Sob o império dos sentimentos. Ela é a minha vida e a minha morte. Vivo e morro, um pouco, a cada dia, sem tê-la. Sem sua simples presença. Seu corpo, sua respiração, sua ausência. Ausência por mim ternamente assimilada. A saudade que me causava. E que sabia mensurável, datada. Que só fazia crescer avassaladoramente o quereres. Desde que a conheci, minha vida mudou radicalmente. Eu não vivo mais. Existo apenas em função desse querer. Esquizofrenia, Masoquismo. Não sei. Sentimento. Paixão. Amor. Desejo. Volúpia. Eu apenas sinto. Seu cheiro. Seu toque. A sua vida, ainda pulsa em mim. Vivo às lembranças. Do que foi. O passado, indelével. Quero levantar cabeça, erguer-me. Firmar passo e seguir. Ereto, vislumbrando, no horizonte as míridias de possibilidades que me cercam. A vida que me arrasta nas suas inúmeras escolhas. No limite, contraditório, tênue de ordem e caos. Ser senhor do meu destino. Construir uma nova vida. Recomeçar. Quero. Voluntariamente. A razão. Lógica. Cálculo. Frieza. Bom senso. Dizem-me: siga Guache na vida. Contudo, os malditos sentimentos, as emoções, prendem-me aos seus grilhões passionais. Dor. Sufoco. Meu peito apertar. Quero deitar e chorar. Chorar copiosamente, como se disso dependesse a vida. Pranto abafado, interno, íntimo. Meu nariz entope de tantas lágrimas. Soluço. Olhos rubros. Boca seca e salina. Mal hálito. Água. Gole, gole, gole, engasgo, gole, gole, engasgo, tosse, tosse, tosse, gole, gole. Sinto-me cansado, de tanto chorar. A dor não passa. Durmo. Frio. Luz do Sol. Acordo. Remelento, babado, amarotado. Respiro fundo. Bocejo. A dor não passa.  Fecho os olhos. Imagens oníricas: seu carinho em minha barba, o hábito de fumar cachimbo ao ler, de cantar Cartola ao pé do meu ouvido, de fazer massagem no meu pé e estralar os seus dedos, pisar as minhas costas e eu sentir o meu esqueleto trincar, e o quanto ela se divertia, as discussões filosóficas, eu materialista, ela idealista, as literárias, eu Graciliano, ela Caio Fernando, do cinema, eu Bergman, ela Almodóvar, da música, eu Pink Floyd, ela The Doors, da política, eu esquerda, ela depende, de animal, eu gato, ela cachorro, da bebida, eu cerveja e chá, ela vinho e café. Uma torrente de imagens, com os seus respectivos sentimentos. E os meus dias transcorrem assim: existindo da memória, do sentimento. Uma coisa, é certa: tudo passa. E isso me acalenta. Esperança, mesmo que parca. Sei que não há impunidade na paixão. Vou me encontrar. Preciso ir, preciso andar. Hoje, passo com a minha dor, dissabor. Amanhã, acharei graça, decerto, do que vivi e aprendi. Futuro: aguardar-te-ei.

(Felipov)

segunda-feira, 16 de maio de 2011

A lágrima


Chove. Chove muito. Torrencialmente, como é peculiar em Belém. Sábado. Eles me passam paz. A paz do fim de semana. Gosto da chuva. Ela faz emergir as contradições da cidade e ao mesmo tempo me tranquiliza. A umidade e o frio me tranquilizam. Não preciso sair de casa e leio os meus livros – muitos por sinal. Ouço música. Coloco Chico para tocar no toca-vinil. Assisto filmes. Selecionei alguns do Kubrick. Não preciso ver pessoas. Ver carros, trânsito, fumaça. Sem calor e contradições sociais que me angustia a existência. Fico deitada o dia inteiro. Uma languidez me invade. Não me preocupo com nada. A preguiça toma conta de mim. Até comer e beber água é um sacrífico. Quero ler e escrever. Sinto a satisfação da leitura. Leio Saramago, estou quase acabando. O prazer de escrever. Tenho rascunhado alguns versos. Um gole de vinho. Estou só no meu apartamento. Olho em volto, vejo a vida que construí e sinto-me satisfeita comigo mesma. A vida que escolhi. Em cima da cama, enrolada no lençol, percebo que a cama de casal gigante foi uma das melhores escolhas. Passo as mãos nos cabelos, sinto-os macios e curtos, cheirosos e sedosos – outra escolha bem feita: cortar o cabelo curto. Estou acima do peso e me sinto tão bem – passo a mãos na minha barriga, e me agrado de seus excessos. Pego a taça de vinho, ao lado da cama, mais um gole, e sinto o cheiro, o gosto da uva fermentada. Sinto-me incrivelmente bem. Olho as minhas unhas, e não tenho a menor vontade de pintá-las e cortá-las, e ainda dou uma ruída – gostei disso. Mais um gole, e o vinho acaba. Um café. Acendo um cigarro. Uma tragada. Outra tragada. Coloco-o no cinzeiro ao lado da taça e da caneca de café. Estou nua, sinto-me livre. No criado-mudo, ao lado da cama, abro a gaveta, inclino-me, para não levantar da cama, e pego um cortador de unha – a consciência me dói, e vou ajeitar a ruída. Quando vejo, uma foto. Era a nossa foto. Uma foto de um longínquo momento feliz. Não sei como ela foi parar aqui. Eu não esperava por isso. Uma torrente de lembranças vem a minha mente. Dor. O que pensei superado, vem a tona. Com força e ímpeto. Sentimentos que pensei superados, ressurgem das cinzas. Por que ele foi embora, por que me abandonou. Havia uma vida juntos. Anos de dedicação e convivência. Noites velando o seu sono. O afastamento dos amigos por conta do seu ciúme idiota. A desconfiança. As traições. A deslealdade, A insensatez. E o amor avassalador que ainda guardo, que punge no meu peito, que me deixa ofegante, que me faz suspirar, se confunde, na mesma proporção, com a raiva, a dor e o ódio que igualmente sinto. Eu me segurei, mas caiu uma lágrima. A lágrima – a desesperança que ele volte.

(Felipov)

Ela falava inglês (*)

Ela falava inglês, mal, mas mesmo assim eu me apaixonei.
Poderia ficar horas contando as horas que corriam nos segundos do sorriso dela, sempre que eu bancava o trouxa e ela reconhecia na minha estupidez algo que comprasse um sorriso pelo preço módico de um idiota. E isso, longe de me atormentar, só me trazia sossego à alma e ao coração e ao ponto cinzento onde ambos se encontram.
Morávamos num apartamento pequeno, ela e eu, embora ela sempre desse um jeito de me fazer sentir numa mansão, digna de um Rockfeller. Nem ele, na verdade, seria mais feliz que eu, quando ela embalava nossos sonhos na rede dos carinhos e palavras de amor. Juras eternas de sermos felizes, terminando com um “ai lóve iu”, tão desajeitado, tão espontâneo, que Shakespeare teria inveja da doçura empregada em tão poucas sílabas.
Mas o diabo não dorme neste hemisfério.
Um dia desses, numa foda, ela por cima, e eu já me preparando pra comê-la de quatro, como sempre fazíamos, eu segurava firme na sua cintura, ela se balançando naquele vai-e-vem frenético. Eu sabia todos os seus movimentos, conseguir ler aquela mulher como a Bíblia, decorando todos os seus versículos que se traduziam em centenas de caras e bocas, jogadas de cabelo, o suave balé animalesco que o seu corpo executava quando estávamos fodendo. Eu conhecia aquela mulher. Sabia os seus jeitos. Como se ela fosse o Bairro do Reduto, eu estava a par de todos os seus becos, vielas, ruas estreitas, úmidas, de cheiro forte,  quentes como o inferno nos verões mais violentos. Eu provava do mel do apiário que ficava entre suas coxas com a segurança de um degustador experimentado naquele sabor puro da mulher que eu conhecia melhor que a minha alma.
No entanto, neste dia ela dançou uma dança desconhecida. Não  chegou a ser uma dança, mas um pedaço de sua coreografia que eu nunca havia visto. Jogou seu corpo para trás e pegando no colchão ficou indo de cima a baixo, cavalgando de maneira inédita.
Minha primeira reação foi de surpresa com a cena que se apresentava. Mais tarde algo estava mudado. Eu não era o mesmo. Ela não era a mesma. Não a conhecia mais e tendo sido eu seu único homem, não havia motivos para que ela apresentasse algo que eu não a havia ensinado.
Plantou-se nesse dia o germe da nossa desgraça. Na casa onde pairava outrora a paz, só restava a desconfiança, o ódio velado do ciúme. Mas algo me detinha de segui-la ou de confrontá-la com os fatos. Como a hesitação diante de uma roleta russa, quando sabemos que a bala está engatilhada, pronta para levar o cristão da Terra para o resultado de suas boas ou más ações.
Coisa engraçada, o destino. Que nos conduz de um extremo ao outro, sem grandes explicações, nem compromisso com coesão, coerência, método, disciplina.
Faz um mês que a matei e ainda hoje me sinto bem.

Abraços,

do teu pai.



Americano, 23 de agosto de 2010

(Igor Farias)

(*) Este é mais um texto do colaborador-simpatizanate deste blog - o punk Igor Farias. Apenas dois esclarecimentos para os leitores não residentes na cidade de Belém. Primeiro: o bairro do Reduto é um dos bairros da cidade que nos tempos da Belle Époque abrigou as primeiras fábricas e no qual viveu e morreu o maestro Carlos Gomes, e que em tempos atuais fica uma das áreas centrais da cidade, onde reside a classe média-alta. Segundo: "Americano", ao final do texto, refere-se a Penitênciaria do Americano, a maior do Estado do Pará, localizada perto do município de Castanhal, região metropolitana de Belém.  

sábado, 14 de maio de 2011

Idéia-fixa





Gordo, desgrenhado e decrépito. Barbudo e cabelos grandes. Um pouco desorientado e com uma idéia-fixa. Um cigarro na ponta dos dedos, para não deixar cheiro – detesto cheiro de cigarro. Sandália de dedo, bermuda e uma camisa dos Beatles. Sento no boteco. Uma tragada – o cigarro está no começo.  Peço uma dose para o garçom, meu camarada. Alhures, várias pessoas conhecidas e estranhas – iguais a mim. Sinto-me incluído. Está calor, começo a suar. Passo a mão na testa, tiro o excesso de suor, e limpo na bermuda – em um bolso, um livro de bolso do Bukowski, e no outro, uma carteira de Marlboro vermelho. Tento arrumar meu cabelo, desarrumando mais. Enquanto espero a dose, observo. Apenas observo, sentado só, em uma mesa, no boteco – um pouco afastado do burburinho das conversas, em um canto mais escuro, fico incógnito. A desorientação passou, sinto-me bem agora – mas, a idéia-fixa continua. Achei meu lugar, mesmo que parcial, no mundo. Outra tragada. E a minha dose não chega. Sempre é assim, demora o atendimento, mais estou muito tranquilo para me irritar. O boteco me passa paz. “Rapaz, desculpe, mais aquela branquinha que gostas, acabou” – disse-me Arnaldo, o garçom. “Sem problemas, meu caro. Traga-me uma cerveja mesmo. Estou com sede e calor” – respondi com parcimônia. “Tá certo, meu padrão. Vou trazer uma bem gelada” – Arnaldo replica, solícito.  “Isso, bem gelada” – digo, com o sinal positivo. Arnaldo faz um sinal de positivo com o dedo e segue em meio às pessoas, cadeiras e mesas.  Volto a mim, e a minha idéia-fixa: o esforço de adaptação, de inclusão. A necessidade de se adaptar para (sobre) viver em sociedade. De conseguir um emprego. De livremente ser forçado a vender a minha força de trabalho, de alienar-se do produto do seu trabalho em troca de um irrisório salário para sobreviver – frise-se: sobreviver. Comprar. Comprar mercadorias que dizem satisfazer necessidades. Necessidades impostas e arbitrarias. Ter que casar. A única relação estável legítima em uma sociedade promíscua e machista. Monogamia oficial. Promiscuidade relacional. Seguir a moda. Seguir as regras. Pensar igual. Agir igual. Reproduzir. Adaptar-se. Há dois meses, foi outorgado-me pelo Estado o título de Doutor. Agora, sou Doutor. Grandíssima merda. Um douto ignorante. Um douto que apenas aprendeu a justificar teoricamente os seus vícios e mazelas. Alguém que explica o desemprego versando sobre teoria do valor e do modo de produção capitalista com riqueza de detalhes marxista. Alguém que justifica a sua perversão sexual com chatas exposições psicanalíticas. A academia apenas me ensinou a ser um cínico com aporte teórico. Um hipócrita com título. Um idiota douto. A me adaptar. Em meio as minhas esquizofrênicas elucubrações teóricas, percebo a minha hipócrita posição de classe média, que senta em um bar para pensar sobre a vida, a teorizar inutilidades sobre não-adaptação. No local no qual falar um monte de merdas intelectualizadas é legal, fazer críticas à sociedade é legal, ser jogado é legal, querer não ser adaptado é legal, falar de arte, de cinema, de música é legal. Sinto-me incluído por conta de ser uma adaptação alternativa. Quando chego a essa constatação óbvia, levanto o olhar. Mais uma tragada. O cigarro acabou. A cerveja chegou, enfim – gelada, ao menos. Primeiro gole: precisava disso. Novamente, observo alhures. Percebo que também sou observado. Ela está em pé, conversando com uma amigas, bebendo, fumando e me olhando de lado. Linda e gostosa. Cabelos negros, branquinha, de vestido e tatuagem no braço – não é muito alta. Ela é gostosa, belo decote, e bunda marcada no vestido. Ela sabe o que provoca em quem a olha. Ela sabe o que provocou em mim – fiquei de pau duro. Ajeitei-me na cadeira, sem graça – sou tímido. Mais um gole. E ela me observa. Abaixo o olhar. Pego a carteira, coloco em cima da mesa, tiro um cigarro e levanto meu olhar para acendê-lo, ela está na minha frente. Pego um susto, e ela percebe. “Tem um cigarro?” – pergunta, provocante. “Não tenho” – respondo, ríspido. Ela cerra os olhos, dá um riso sacana. Aproxima-se mais, sinto seu cheiro de canela e cigarro. E senta no meu colo. “Eu sei que estais de pau duro. Eu saco o seu tipo. Baixinho, gordinho, barbudo e distante. São esses os putos. Os putos que gosto. Estou toda molhada aqui. Excitada com o teu charme e a putaria que sei inerente ao teu ser pervertido”.  Enquanto falava isso, abria o meu zíper, colocava meu pau para fora, apertava-o e batia. “É uma filha da puta” – pensei comigo. Ao mesmo tempo, coloco minha mão entre as suas pernas, e sinto sua buceta abundantemente molhada. Passo a ponta dos dedos, afasto a calcinha, sinto os pêlos molhados, os lábios e enfio dois dedos. Vejo sua cara de satisfação. Sinto-a quente e molhada. “Eu sabia que eras um puto” – ela me diz sôfrega de prazer. “És uma filha da puta” – digo puxando-a pelo cabelo e mordendo a orelha. Penetro-a com os dedos, com movimentos marcados. A penumbra e o afastamento da mesa nos dá impunidade. Tirei os dedos, e os chupo, sentindo o seu gosto e dou para ela chupar, e ela chupa com vontade. “Sinta o seu gosto” – digo-a. “Vamos embora daqui” – ela diz. “Vamos” - concordo. “Não, meu carro fica por aqui, vamos para o meu apartamento” – falou, pegando na minha mão. É, meu caro leitor, o acaso tem dos seus sortilégios. Deixe-me ir. Contudo, fica a reflexão, a idéia-fixa. Ou não.


(Felipov)

terça-feira, 10 de maio de 2011

Unilateral



Era unilateral. Uma paixão adormecida por longo tempo. E sem aviso, surgiu tomando um lugar que não existia para tal sentimento. A confusão foi inevitável. As dúvidas, as expectativas. Tudo se tornou muito movediço. Sem referência, sem trato. Era algo muito novo. E unilateral. Ela não sabia como lidar com aquilo: com essa paixão fulminante. Não era apenas carnal, era, sobretudo, espiritual – leia-se: pensamento. Havia entre eles uma afinidade incrível. Sem explicação. Fugia a qualquer lógica. Conversavam, conversavam, conversavam. Porém, não era qualquer conversa. Era um diálogo no sentido genuíno, no qual se constrói idéias, gostos, afinidades, dialeticamente – tese-antítese-síntese. Entre goles de cerveja, vinho, cachaça – pois, conversar seca a garganta. Sobretudo, por intervalos ininterruptos de baforadas de cigarro – fumavam carteiras juntos. Equivaliam-se até nos vícios. Música era um dos vícios compartilhados. Ela ficava impressionada com o seus conhecimentos sobre música, que não eram restritos apenas a letra, cantores e cantoras, bandas, grupos, nacionais e internacionais, ele explicava tudo sob a luz da teoria musical, em termos de harmonia, ritmo e melodia. Esmiuçava os elementos ideológicos e o contexto no qual as músicas foram produzidas. Ela ouvia atenta, discordava no que podia, mas concordava com tudo – e ficava encantada com tanta inteligência, sem demonstrar seu encantamento. Em contrapartida, ele ouvia, sem muito discordar dos conhecimentos dela sobre cinema. Era uma cinéfila. Discutia por tendências e diretores. Cinema alemão, italiano, russo e francês eram as suas especialidades. Apresentava julgamentos técnicos sobre enredo, fotografia, trilha sonora e a inflexão que cada filme representava na história do cinema ocidental – ele ficava muito impressionado, mas não demonstrava também. Por um lado, espirituais. Por outro, obviamente, carnais. Havia uma atração irresistível entre os dois de desejos ligados ao primeiro olhar. Ele olhava-a, seus seios tímidos, coxas grossas, bunda farta, sua boca carnuda, seu jeito de falar, dissimulando vontades e desejos. Ela apenas olhava a sua bermuda pontiaguda, deverasmente pontiaguda. Claro estava: ambos estavam excitados. Bicos visivelmente arrebitados. Ela de calcinha molhada. Ele de pau para fora. Primeiro ato: um beijo tácito. Um beijo penetrante. O beijo. Segundo ato: mãos descontroladas, dedos, línguas, mordidas, chupadas, por todo o corpo. Mão na pica, língua na buceta. Gemidos. Gritos. Prazer. Mordidas nos peitos - faltavam na sua mão, mas sobravam na sua boca. Chupadas, chupadas, chupadas no pau, ele segurava-a pelos cabelos, com rigor, e guiava o ritmo, e dizia: “chupa, chupa, chupa”. Tapas, abria as nádegas – ela sentia os seus dedos. Tapas, dedo no cú – ela arfava de prazer, com o pau na boca. Era algo que fugia a qualquer racionalidade. Totalmente instintivo. Como dois animais – diria Alceu Valença. Só interrompidas pela urgência animalesca da penetração. O clássico pica na buceta. Terceiro ato: penetração. O encaixe era perfeito. Corpo a corpo. Coro a coro. De quatro. Animal. Ancas abertas. Ele dentro dela. O suspiro dela. O puxar de cabelo dele. Pausa. Cadência. Choque. Corpos se chocando. Pausa. Cadência. Choque. Ritmo, ritmo, ritmo. Violência. Tapas, tapas, tapas – violentos tapas. Gemidos, urros, gritos – de ambos. Suor, muito suor. Pingavam. “Mais forte, mais forte” – ela dizia. E ele ia mais forte. Mais forte, forte. Ela gemia estridentemente. E ele ficava mais excitado. Sincronicamente, ambos gozavam. Cansados. Entorpecidos. Olharam-se. Ela com amor. E ele com satisfação. Era unilateral. Espiritual e carnal recíproco – tese-antítese. Amor unilateral – síntese parcial.

(Felipov)